O amazônico “Noites Alienígenas” pousa como um ovni em Gramado
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado
Gramado viveu um domingo dos mais agitados. Um filme-ovni, vindo do Acre, causou furor na tela do Palácio dos Festivais e aplausos calorosos no debate do dia seguinte. Até o nome do terceiro longa brasileiro da competição — “Noites Alienígenas”, de Sérgio de Carvalho — atraiu curiosas e boas vibrações.
Para deixar a plateia acesa, o filme amazônico começou com Chico Diaz na pele de um maluco-beleza de nome Alê — aliás, único ator conhecido do elenco — em trip raul-seixiana. Coube a ele cantar “Cachorro-Urubu”, uma das maluquices sonoras da dupla Paulo Coelho e Raul Seixas. Aquela que diz “Baby isso só vai dar certo/ Se você ficar por perto/ Eu sou índio Sioux/ Eu sou cachorro-urubu/ Em guerra com Zéu”.
Chico “Alê” Diaz somou à letra exotérico-romântica da composição nomes de nações indígenas da Amazônia (como os Ashaninka). Lado a lado com os Sioux. E o fez em longo plano-sequência registrado por Pedro Von Krueger, diretor de fotografia e parceiro da aventura acriana comandada por Sérgio de Carvalho e Karla Martins na produção.
Mais tarde, em momento já adiantado da narrativa, outra canção ganharia relevo: “Porto Solidão”, de Jessé. Os versos “Rimas de ventos e velas/ Vida que vem e que vai/ A solidão que fica e entra/ Me arremessando contra o cais”. No debate gramadiano, a sequência, protagonizada pelo Alê de Chico Diaz e pela Bia de Joana Gatis, em dança aliciante, causou furor.
O “ovni acriano”, primeiro longa-metragem produzido para cinema no Estado, com grana de edital (o B.O. — Baixo Orçamento do MinC), é um filme meio selvagem, meio maluco, meio desconcertante. Mas emana dele uma pulsão de vida e fome de expressão que nos fascina.
“Noites Alienígenas” nasceu de romance do próprio diretor, um paulista, que estudou Cinema no Rio e adotou o Acre há 20 anos. Com o projeto de descentralização cultural do MinC da era Lula-Dilma, a ideia era livrar o cinema da hegemonia do Eixo Rio-São Paulo e levá-lo ao Brasil profundo. A Saci Filmes, embrenhada na Amazônia, ganhou recursos para que o livro se transformasse em filme.
Sérgio de Carvalho entendeu que a trama de seu romance necessitava de atualização. Afinal, na última década, a chegada de facções criminosas ao Acre mudara o estado das coisas. A periferia da Amazônia urbana era outra. Houvera “agravamento dos índices de violência na fronteira entre cidade de floresta”, jovens se envolviam com o tráfico, morriam de morte matada.
Com auxílio do cineasta pernambucano Camilo Cavalcante (“King Kong en Asunción“) e de Rodolfo Minari, reescreveu sua obra ficcional. Além da “dependência química”, entravam as facções exportadas pelo Sudeste, a cultura hip hop, o slam (poesia cantada), a busca do “etnografite”. Quando o Crime Organizado transformou Rio Branco, capital acriana, em praça de guerra, e muito jovens (de origem indígena ou negra) foram exterminados, Sérgio decidiu por um verdadeiro mergulho no mundo caboclo. Ninguém espere um filme que se deixe decifrar de saída. No primeiro momento, o que encanta são o uso das canções, o personagem Alê (Chico Diaz, notável), a pulsão das cenas. “Noites Alienígenas” é imperfeito, mas muito vigoroso, instigante, desconcertante.
O diretor diz que “o realismo mágico” é um ponto de partida de sua narrativa. Afinal, o Acre situa-se na magia da Amazônia, é famoso por mobilizar comunidades do Santo Daime, gente que busca experiências permitidas pelo consumo do chá de ayahuasca. Um Brasil pouco conhecido. “Somos” — lembra a trupe acriano-amazônica — “60% do território brasileiro e seguimos desconhecidos. Queremos contar nossas histórias, mostrar nossa região e sua rica cultura”.
A vitrine de Gramado deixou os criadores do ‘filme ovni’ muito felizes. “Só se fala de nosso ‘Noites Alienígenas’ no Acre, todo mundo orgulhoso por ver nossos atores (caso do rapper Gabriel Knoxx), nossos realizadores, nossos produtores representando nossa região num longa-metragem selecionado por um dos festivais mais importantes do país”.
Três nomes ‘forasteiros’ exerceram papeis essenciais em “Noites Alienígenas”: além do ator Chico Diaz, a atriz pernambucana Joana Gatis e o diretor de fotografia Pedro Von Krueger, baiano radicado no Rio, com passagem pela TV Zero. Como o escritor Euclides da Cunha, autor da frase “ninguém vai ao Acre impunemente”, Krueger foi “abduzido” pelo estado amazônico.
“Quero estar com a galera acriana em todos os momentos audiovisuais por eles concebidos. É só me chamar”. A atriz (figurinista e cineasta) Joana Gatis também aderiu ao bando. Com uma cobra tatuada no braço e camiseta de grife olindense na qual se lê “Lula para presidente, Anita para vice”, ela externou sua alegria por interpretar Bia, mãe que perde um filho em meio à violência do Acre tomado pelas facções sudestinas.
O envolvimento de Von Krueger com o filme foi tamanho, que além de diretor de fotografia e câmara, ele desempenhou, ainda, o papel de co-produtor e “negociador” com herdeiros de Raul Seixas. Neste caso, em busca de autorização de uso de “Cachorro-Urubu”. Todo mundo sabe que não são baixos os preços cobrados pelos detentores dos direitos autorais do pai de “Gita”.
“Começamos o filme” — contou Pedro Von Krueger — “com Chico Diaz cantando ‘Cachorro-Urubu’. Um plano-sequência de mais de 10 minutos. O diretor e equipe ficaram apaixonados pelo que viram. Como conseguir o direito de uso da canção, se nosso filme não passava de um B.O.?”
O jeito foi apelar para a D.J. Kika Seixas, filha de Raul. Krueger integrara a equipe do documentário “Raul, o Fim, O Início e o Meio”, de Walter Carvalho, produzido por Denis Feijão, e conhecia a herdeira. “A família pediu um preço que não cabia no nosso orçamento. Conversei com Kika, mostrei a sequência para ela, que gostou muito. Expliquei nossa situação financeira e ela compreendeu: um B.O., produzido no Acre, por equipe majoritariamente acriana, um filme que prestava homenagem a Raul, ídolo do personagem Alê. Conseguimos por preço módico, com apoio da Som Livre e da Warner”.
Já “Porto Solidão”, de Jessé, foi conseguida sem maiores dificuldades e a bom preço. O diretor Sérgio de Carvalho contou que a sequência original da dança fora embalada pela voz de Clara Nunes. Depois, descobriu, na finalização do filme, que “o tom meio-brega e meio-apoteótico de ‘Porto Solidão’” caíra como luva na dita sequência. Fez a troca e, a partir dali, os elogios à sequência se fizeram notar. Jessé e a gravadora Fermata adoraram ver-ouvir a canção no filme”.
A trupe que realizou “Noites Alienígenas” mantém, no Acre, um festival regional que já soma dez anos e chama-se Pachamama. Com o ‘longa- ovni’ pronto, a festa deve ganhar impulso. Mesmo que “o momento seja difícil e os recursos escassos”.
Sérgio de Carvalho desabafa: “Quando cheguei ao Acre, no governo Jorge Vianna (PT), o Estado vivia clima de euforia. Os Pontos de Cultura (criação da Gestão Gilberto Gil) fervilhavam, o movimento artístico-cultural se enriquecia com a Escola Livre de Cinema de Maurice Capovilla, grandes profissionais ministravam oficinas artísticas, incluindo Chico Diaz. Ser chamado de seringueiro deixava de ser algo pejorativo e passava a identificar nossa identidade. Hoje, infelizmente, o Acre está entre os Estados campeões de desmatamento da floresta. Mas estamos lutando para ver se conseguimos mudar este estado das coisas”.
A equipe do ‘ovni movie acriano’ começou a deixar a sala de debates sob aplausos e assediada pela plateia. A equipe do festival teve que pedir ao público e aos artistas que continuassem conversando lá fora, pois era hora de iniciar o debate do terceiro concorrente da mostra ibero-americana, o mexicano “O Caminho de Sol”, de Claudia Sainte-Luce. O filme, um drama social sobre sequestro de criança numa megalópole (no caso a capital do México), comoveu o público feminino. Representado pela protagonista Sol (Anajosé Aldrete) e pelo produtor Christian Kregel (a diretora não pôde vir ao Brasil), o debate transcorreu com depoimentos emocionados.
Claudia Sainte-Luce, também roteirista de “O Caminho de Sol”, constrói trama sólida. Uma mãe, a Sol do título, separada do marido, cria o filho de cinco anos, com imensa dedicação. Brinca com ele e o cerca de carinho. Um dia, numa praça, ela discute com o ex-marido, de quem o filho sentia falta. O menino, que brincava nas proximidades, é levado subitamente por uma camionete preta (de tipo utilitário), que passa veloz.
Desesperada, a mãe vai à Polícia, que lhe dá pouca atenção. Mais desesperada ainda, ela começa a buscar o menino, por todos os caminhos e vias possíveis. Recorre à religião, aos amigos, a patrão (um ginecologista), pede dinheiro emprestado. Desespera-se de forma angustiante, ao perceber que pessoas que procuram seus cães desaparecidos são mais exitosas que mães de crianças e adolescentes sequestrados. E que os que devolvem os animais recebem boas recompensas de seus donos. Resolve, então, sequestrar cães para conseguir resgates financeiros. Com o dinheiro, chegaria aos cem mil pesos exigidos por possíveis sequestradores do filho. Nem tudo sairá como deseja Sol. E ela passará por momentos muito difíceis. O desempenho da atriz é soberbo e ela é forte candidata ao Kikito.
Dois curtas-metragens brasileiros agitaram a terceira noite do festival: o sergipano “Imã de Geladeira”, de Carolen Meneses e Sidjonathas Araújo, e o paulistano “O Elemento da Tinta”, de Luiz Maaudonnet e Iuri Salles.
O primeiro é uma comédia-poltergeist, narrada com ajuda de “tradutor de libras” dos mais descolados. Postado no canto da tela, ele faz espécie de “sonoplastia muda” de filme que aposta nos ruídos da cidade (sons de rádio-postes, máquina de costura, etc., etc).
Os protagonistas são uma costureira e seu marido, ambos afro-sergipanos (Margot Oliveira e Ícaro Olavo), que vivem modestamente. E com o incômodo de constantes apagões, que causam graves estragos aos eletrodomésticcos. Um dia, com a geladeira queimada, a dupla vai comprar outra em loja de produtos de segunda mão. O que eles não sabiam é que a máquina oferece graves riscos a pessoas de pele negra.
No elenco, o veterano Severo D’Acelino, o protagonista de “Chico Rei”, coprodução brasileiro-germânica, que Walter Lima Jr dirigiu em 1985. O ator, além de interpretar um senhor idoso, que vê seu rádio encrencar na hora de seu programa predileto, respondeu pela preparação do elenco sergipano.
“O Elemento Tinta” apresenta-se como um curta explosivo, vindo da periferia de São Paulo, onde vivem jovens que se dedicam ao “pixo”. Ou seja, rapazes que arriscam a vida para imprimir suas mensagens em paredes de imensos prédios ou viadutos. Um dos pichadores, dos mais ativos, morre vítima de Covid-19. Tal fato serve como elemento detonador da ira dos pichadores. Eles se unem em ação direta contra “o governo genocida de Bolsonaro”, presidente indiferente ao destino dos brasileiros nos momentos mais terríveis da pandemia.
Realizado com apoio do núcleo audiovisual do The Intercept Brasil, o curta custou apenas R$4 mil. Seus diretores, ambos voltados a intervenções estético-políticas em zonas de risco (como a Cracolândia), sem descuidar do crime organizado e da omissão do Estado em áreas carentes, fizeram um filme urgente, disposto a questionar os descaminhos trilhados pelo país. Sua proposta é clara e já está anunciada no título do filme, que contém a condenação dos bem-nascidos e do aparelho do Estado ao “Elemento Tinta”. Ou seja, ao conteúdo envasado em frascos de spray, usado para protestar contra sociedade estruturada na marginalização dos filhos na periferia.
A noite de domingo encerrou-se com a entrega dos prêmios da décima-nona edição do Troféu Assembleia Legislativa aos melhores curtas rio-grandenses. A festa, conhecida popularmente como Gauchão, transmitida pela TV Educativa e pela TV Assembleia, foi, pela primeira vez na história do Palácio dos Festivais, animada por trinca de rappers. Ou seja, por artistas afro-gaúchos. Em breve o Estado sediará o primeiro Museu do Hip-Hop da América do Sul.
Não há nada mais vibrante que a festança do Gauchão. Sala lotada, torcidas organizadas, protestos, acontece de tudo. E não foi diferente na noite do último domingo, quando se prestou emocionante tributo à memória e trajetória do ator afro-gaúcho Sirmar Antunes, falecido semanas atrás. Ano passado, no Gauchão 28, ele recebeu o Troféu Leonardo Machado. Este ano, integraria o juri da competição de longas gaúchos. Estava feliz com o novo desafio, mas infarto o matou aos 66 anos.
Segue a lista de filmes premiados da noite do Gauchão:
. “Sinal de Alerta Lory F” (de Fredericco Restor) – melhor curta, melhor montagem (Fredericco Restori)
. “A Diferença Entre Mongóis e Mongolóides” – melhor diretor (Jonatas Rubert), roteiro (Jonatas Rubert), direção de arte (Gabriela Burck)
. “Possa Poder” – melhor atriz (Valéria Barcellos), melhor ator (Victor di Marco)
. “Drapo A” (de Alex Georges e Henrique Lahude) – Menção honrosa do Júri, melhor produção-executiva (de Henrique Lahude)
. “Apenas para Registro” (de Valentina Ritter Hickman) – Prêmio da Crítica (ACCIRS)
. “O Abraço” – melhor fotografia (Flora Fecske)
. “Fagulha” – desenho de som (Andrez Machado)
. “MBy’ Nhendu – O Som do Espírito Guarani” – melhor trilha sonora (Gutcha Ramil, Andressa Ferreira e Ivan Kuaray)