“Vernon Subutex” mistura rock, cinema e sexo em badalada série francesa

Por Maria do Rosário Caetano

Quem gosta de correr riscos será recompensado, caso sintonize o serviço de streaming da Reserva Cultural para acompanhar a série “Vernon Subutex”, protagonizada por Romain Duris, o “gadjo loco”, o Molière, o Eiffel, enfim, o protagonista de dezenas de filmes franceses.

A trama, desenvolvida em nove capítulos, que duram em média 35 minutos, baseia-se nos dois primeiros volumes da trilogia “A Vida de Vernon Subutex”, da escritora homoafetiva Virginie Despentes, que vendeu mais de um milhão de exemplares em seu país. O primeiro volume foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras (2019).

Os livros de Despentes, cujo nome civil é Virginie Daget, causaram imensa polêmica entre os integrantes de uma França ainda muito católica, conservadora (incluindo até seus segmentos bem-pensantes). Afinal, a escritora é dona de uma voz transgressora.

A minissérie – garantem os leitores da autora de “Transe Comigo” (“Baise-Moi”), “Teoria King Kong” e “Apocalypse Bébé” – amacia o que está contido nos dois primeiros volumes de “Vernon Subutex”.

Antes de tudo, há que se entender o título dessa ficção seriada. Trata-se da identificação do protagonista, vivido com total entrega por Romain Duris, hoje com 48 anos, portanto, um quarentão (quase cinquentão) como seu personagem (e seus principais amigos). Vernon presta homenagem a Boris Vian, que assinou “A Espuma dos Dias” com o pseudônimo de Vernon Sullivan. E “subutex” é um fármaco usado no tratamento de viciados em heroína. Estamos, pois, apresentados ao personagem que acompanharemos de perto do primeiro ao último capítulo.

Tudo começa quando ele é despejado de seu apartamento, pois sem grana nenhuma, não tem a mais remota condição de saldar suas dívidas. E isto acontece no momento em que menos esperava. Na hora da morte de seu maior amigo, o astro do rock Alex Bealch (Athaya Mokonzi). Vernon, há que se lembrar, era o influente proprietário de uma loja de discos, aquela que todos frequentavam e amavam. Aquele cara simpático e sedutor, que conhecia os melhores sons, as melhores novidades e os melhores artistas. Só que a indústria fonográfica ruiu. E ele ficou sem chão. Continuou fiel a seu mundo e ideário, enquanto seus amigos de outrora – um roteirista de cinema alternativo, uma groupie, uma ex-contrabaixista e assemelhados – se aburguesaram.

Na rua da amargura, só resta a Subutex, sem um tostão furado, pedir pouso no sofá deste (ou desta) amigo (amiga) de outrora. O primeiro é o roteirista Xavier Fardin (Philippe Rebbot), casado com uma burguesa e louco por ser reconhecido pelo sogro e, melhor ainda, assinar um filme de sucesso. Com o Festival de Cannes acontecendo na Côte d’Azur, ele convence a esposa a deixar o cachorro de estimação aos cuidados de Vernon enquanto passam um final de semana entre celebridades cannoises.

Antes de partir para a aventura na Riviera, Fardin ouvirá Vernon Subutex contar que o rock star morto o fizera depositário de três fitas gravadas com seu testamento existencial. Mas que nada ouvira (ou vira), pois não tinha ânimo para tanto, tão arrasado estava com a perda do amigo. Aliás, nem dispunha de uma mini-DV…

Em tom de comédia dramática marginal, com sexo, droga, prostituição e rock and roll, veremos Vernon Subutex perambular de sofá em sofá, até apaixonar-se perdidamente pela “brasileira” Marcia (Inès Rau). Ninguém espere história romântica, porque Virginie Despentes, que foi companheira da filósofa espanhola Beatriz Preciado (hoje Paul B. Preciado, nome da linha de frente dos estudos de gênero), não está no mundo para repetir fórmulas narrativas, nem histórias de papai-e-mamãe. Ela está, isto sim, em fina sintonia com as novas sexualidades. Mas sem fazer proselitismo. Tudo se processa, em sua narrativa, de forma complexa e com diálogos desconcertantes. Antes de fazer sexo, duas mulheres, uma experiente e uma iniciante, se submetem a um jogo de três perguntas. A última das indagações coloca de chofre: “Você já matou alguém?” Ao que a outra responde: “Pulo!”.

A Paris vista na série é multicultural e multiétnica. Há brancos, árabes, negros. Há um deslocamento a Barcelona, onde vive um núcleo de prostitutas, no qual se destaca a atriz pornô Pamela Kant (o torpedo colombiano Juana Acosta). Mas não há olhar piedoso sobre a prostituição. Ela faz parte da vida e pronto. Pamela quer atuar no filme que o ardiloso Laurent Dopalet (Laurent Lucas) promete produzir a partir das fitas legadas a Vernon Subutex que – primeiro, pelo desaparecimento dele, depois pelo desaparecimento das tais fitas – movimentará a parte digamos “noir” da trama francesa.

Xavier planeja escrever o roteiro sobre o “sub-Jimi Hendrix francês” a partir de sua expertise, pois conviveu com o artista. Não liga muito para possíveis revelações das fitas. Para ele, Alex Bealch não passava de um junkie maluco. Mas o interesse de Laurent Dopalet, também homem de negócios escusos, pelas gravações é colossal. Mostrava mais interesse pelo que podia estar registrado naquelas três pequeninas fitas, que no filme propriamente dito.

Com sua trama povoada por certa marginalidade parisiense contemporânea e pelos caminhos trilhados por aqueles que curtiram as loucas baladas da década de 1980 e hoje vivem a acomodação burguesa (o roteirista Xavier tornou-se defensor da extrema-direita, o que não impede que ele tome uma surra de skinheads!), Virginie Despentes nos revela um mundo fascinante. Seus personagens são contraditórios, imperfeitos, nada previsíveis. Talvez por isto a série não tenha feito o sucesso de público que merecia. De crítica foi muito bem. Ganhou 4 estrelas e meia do L’Humanité, o jornal comunista, e do L’Express. Do respeitado Le Monde foram 4. Do Les Inrockuptibles, o veículo da juventude francesa, 3 e meia.

Ah, um lembrete. Alguns, ao assistir a “Vernon Subutex”, poderão lembrar-se de dois filmes: o britânico “Alta Fidelidade”, de Stephen Frears (2000), e o brasileiro “Durval Discos”, de Anna Muylaert (2002). Eles são muito diferentes. Mas algo, por tênue que seja, os une.

 

Vernon Subutex
Série francesa em nove capítulos (duração média de 35 minutos cada
Baseado em obra de Virginie Despentes
Direção: Cathy Verney
Elenco: Romain Duris (Vernon Subutex), Céline Sallette (La Hyéne), Laurent Lucas (Laurent Dopalet), Flora Fischbach (Anaïs), Philippe Rebbot (Xavier Fardin), Florence Thomassin (Sylvie Langlois), Juana Acosta (Pamela Kant), Athaya Mokonzi (Alex Bealch), Márcia, a brasileira (Inès Rau), Iman Amara-Korba (Aïcha)
Onde: streaming Reserva Imovision

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