“La Nuit du 12” triunfa na noite do César e derrota os favoritos “O Inocente” e “Pacifiction”
Por Maria do Rosário Caetano
O grande vencedor da quadragésima-oitava cerimônia dos Prêmios César, o “Oscar francês”, foi Dominik Moll, um francês adotivo (de origem germânica). Moll derrotou, com “La Nuit du 12” (foto), trama policial centrada num feminicídio, o favorito “L’Innocent”, ficção com ingredientes biográficos do astro Louis Garrel. O placar foi de 6 x 2.
Além de conquistar os dois prêmios principais (melhor filme e melhor diretor), Dominik Moll viu seu belo drama judicial-feminista somar troféus César por roteiro adaptado (de Gilles Marchand e dele), ator revelação para o protagonista, um investigador obcecado e celibatário (Bastien Bouillon), ator coadjuvante (o ótimo Bouli Lanners) e som (François Maurel, Luc Thomas e Olivier Mortier).
Saiu-se bem melhor que o filme de Garrel (que obteve o maior número de indicações, onze) e o belo e perturbador “Pacifiction – Tourment sur les Îles”, do espanhol Albert Serra, laureado pela brilhante atuação de Benoît Magimel (que repetiu feito do ano passado, por “Enquanto Vivo”), e fotografia, registro arrebatador de Arthur Tort de paisagens (humana e física) de ilha do Pacífico Sul.
Para o favorito, a comédia policial “L’Innocent”, dirigida, protagonizada e coescrita por Louis Garrel, só sobraram melhor atriz coadjuvante (Noémi Merlant) e roteiro original (escrito pelo cineasta-ator com os parceiros Tanguy Viel e Naïla Guiguet). O filme, que vendeu 700 mil ingressos na França, inspira-se em fato da vida real da atriz Brigitte Sy, mãe de Louis e ex-mulher de Philippe Garrel, que uniu-se, para desespero da família, a um egresso do sistema prisional francês.
O triunfo de “La Nuit du 12” é merecido. O filme, que vendeu 500 mil ingressos, traz um sopro de vida ao gênero polar (policial-judiciário). Baseado em capítulo do livro “18.3 – Une Année à la PJ”, de Pauline Guéna, Dominik Moll começa sua narrativa quebrando regras. Anuncia, de chofre, que o crime ocorrido na “Noite do Dia 12” não foi solucionado. Como centenas de outros.
E quem é a vítima? Uma jovem linda, loura, libertária e namoradeira.
Na primeira sequência do filme, ela caminha, à noite, plugada na telinha de seu celular, por rua deserta. De repente, um homem mascarado joga material inflamável sobre o corpo dela e acende o isqueiro. O cadáver da jovem transforma-se na obsessão de jovem inspetor (Bastien Bouillon), que tentará decifrar o que se passou, ao lado de colega (Bouli Lanners), em crise pelo abandono da mulher, grávida de outro. Os dois foram premiados e são notáveis. Dominik Moll, aliás, fez questão de trabalhar com atores pouco conhecidos. Não há um astro sequer em seu elenco.
Os diálogos de “La Nuit du 12” são primorosos e sutis. Os personagens problemáticos e matizados. E o feminicídio é tratado nas entrelinhas, potencializando assim a força da narrativa. E as imagens são vigorosas e reveladoras.
A obsessão pela elucidação do crime encontra na devoção do inspetor ao ciclismo em pista olímpica (e depois na ampla paisagem física que circunda Grenoble) belíssima metáfora. Nos depoimentos dos suspeitos de ter matado a jovem (queimada viva) vai descortinando-se, sem nenhum panfletarismo, o olhar masculino sobre os procedimentos de uma mulher livre. Moll, de 60 anos, que ganhou um César de melhor diretor, 21 anos atrás, com “Harry Chegou para Ajudar” (2 milhões de espectadores), volta com força total à cena cinematográfica do país adotivo.
Vale registrar que um dos filmes indicados à categoria principal (longas de ficção) – “O Primeiro Passo” (“En Corps”), de Cédric Klaplisch – foi totalmente ignorado pela Academia de Artes e Técnicas Cinematográficas da França. Mesmo caso de “Novembre”, de Cédric Jiménez, que ocupou vaga feminina na categoria melhor direção. E esteve em outras categorias, sendo também ignorado na hora agá.
A grita feminista, este ano, mais que nunca, foi fincada na qualidade (e quantidade) dos filmes dirigidos por mulheres. “Saint Omer”, da afro-francesa Alice Diop, triunfou como melhor filme de diretor estreante, mas poderia tranquilamente estar entre os cinco finalistas a melhor longa e entre os candidatos à melhor direção.
A cineasta-atriz italiana (com dupla cidadania francesa) Valeria Bruni Tedeschi, de 58 anos, indicada entre os cinco melhores filmes (com “As Amendoeiras”, sobre sua experiência na escola teatral de Patrice Chéreau), negou-se a comparecer ao Olympia, de Paris, palco da cerimônia. Ela foi preterida como melhor diretora e viu o mundo desabar sobre sua cabeça, quando o namorado, o jovem Sofiane Bennacer, presença marcante em seu elenco, foi acusado de assédio e descartado da categoria “melhor ator revelação”. Ela e a irmã, a ex-primeira dama francesa Carla Bruni, mulher de Nicolas Sarkosy, protestaram contra a decisão da Academia.
E o direito universal da “presunção de inocência”?, bradaram. Se o processo, ao seu término, revelar que Bennacer é inocente? Quem lhe restituirá as perdas sofridas neste momento difícil?
A noite não teve protestos midiáticos como os de 2019, quando Adèle Haenel e Céline Sciamma (casadas na vida real) usaram o palco do César para ruidoso protesto contra os prêmios atribuídos ao octogenário Roman Polanski por “O Oficial e o Espião”.
Neste ano em curso, os protestos reduziram-se a uma jovem manifestante ecológica, que subiu ao palco (pegando a todos de surpresa) para performance contra a emergência climática. Ela exibiu frase apocalíptica “Nos restam 761 dias”.
Uma diretora (Alice Diop) e uma atriz (a platinada Virginie Efira, que triunfou por seu trabalho em “Revoir Paris”) fizeram discursos femininos, mas contidos. Diop avisou aos presentes: “Não estamos de passagem, nem somos um modismo”. Ou seja, as mulheres chegaram à direção para valer, custe o que custar.
Efira, a freira “Benedetta” de Paul Verhoeven, dedicou seu prêmio à diretora Justine Triet, que a dirigiu em “Na Cama com Vitória” (2016). E, por extensão, às outras realizadoras pouco destacadas (as feministas cobraram visibilidade para seis diretoras e criaram o Prêmio Cleópatra, que vem somar-se ao Prix Alice Guy, ambos destinadas ao cinema no feminino).
O triunfo de dois poderosos documentários – ambos conhecidos pelos frequentadores de festivais brasileiros – só engrandece o César. “Retorno à Reims (Fragmentos)”, de Jean-Gabriel Périot, exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, mergulha na vida proletária francesa e constitui programa obrigatório. Mesmo caso do curta “Maria Schneider, 1983”, de Elisabeth Subrin, que revisita entrevista da partner de Marlon Brando no magnífico e eternamente inquietante “O Último Tango em Paris”, de Bertolucci. O filme foi exibido no Curta Kinoforum paulistano.
Como o Oscar, o César restringe aos filmes históricos e mais comerciais os prêmios técnicos. Caso, este ano, de “Simone – Viagem no Século”, sobre a grande ativista (e política francesa – ela foi ministra da Saúde) Simone Veil. O longa teve figurinos e direção de arte laureados.
Já “Notre-Dame Brûlé”, que pode ser encontrado no streaming com o nome de “Notre-Dame em Chamas”, recebeu o prêmio de melhores efeitos especiais. Este filme, feito no calor da hora, recria ficcionalmente a tragédia (novembro de 2020) que se abateu sobre a velha catedral parisiense (cenário de “O Corcunda de Notre Dame”, de Victor Hugo).
E, por fim, dois registros necessários: o triunfo de “Las Bestias”, do espanhol Rodrigo Sorogoyen, como melhor filme estrangeiro comprova que a França é mesmo a capital da cinefilia mundial. Percebeu e, corajosamente, laureou um dos melhores representantes da primavera cinematográfica vivida pelo país ibérico nos dois últimos anos. “Las Bestias” é realmente “the best”.
Embora “Contratempo” (“À Plein Temps”) tenha conquistado apenas dois prêmios secundários – melhor música original (Iréne Drésel) e montagem (Mathilda van de Moortel) – faz bem ver este pequeno filme protagonizado por Laure Calamy, uma das musas do novo cinema francês, ganhando destaque. A jovem estrela da série “Dix pour Cent” interpreta uma mãe de família que corre (como a germânica “Corra Lola Corra”) do subúrbio à Paris central, para garantir a sobrevivência material dos filhos. Se o eletrizante longa alemão é uma metalinguagem de gênero, “À Plein Temps” é um delicado (e atordoante) mergulho no mundo do trabalho precarizado.
Na lista dos premiados, as leitoras (e leitores) encontrarão alguns nomes femininos que vão além das atrizes (protagonista, coadjuvante e revelação). Principalmente entre os curtas-metragens. Sinal que Alice “Nós chegamos para ficar” Diop está certa.
Confira os vencedores:
. “La Nuit du 12” – melhor filme, diretor (Dominik Moll), roteiro adaptado (Gilles Marchand e Dominik Moll), ator revelação (Bastien Bouillon), ator coadjuvante (Bouli Lanners), som (François Maurel, Luc Thomas e Olivier Mortier)
. “Pacifiction – Tourment sur les Îles”, de Albert Serra – melhor ator (Benôit Magimel), fotografia (Arthur Tort)
. “L’Innocent”, de Louis Garrel – melhor atriz coadjuvante (Noémi Merlant), melhor roteiro original (Louis Garrel, Tanguy Viel e Naïla Guiguet)
. “Revoir Paris”, de Alice Winocour – melhor atriz (Virginie Efira)
. “Les Amandiers” (As Amendoeiras), de Valeria Bruni Tedeschi – melhor atriz revelação (Nadia Tereszkiwiez)
. “Saint Omer”, de Alice Diop – melhor filme de diretor estreante
. “Retour à Reims (Fragments)”, de Jean-Gabriel Periot – melhor longa documentário
. “Ma Famille Afghane”, de Michaela Pavlatova – melhor longa de animação
. “Las Bestias” (Espanha), de Rodrigo Sorogoyen – melhor filme estrangeiro
. “Contratempo” (À Plein Temps) – melhor música original (Iréne Drésel), montagem (Mathilda van de Moortel
. “Simone, Le Voyage dans le Siècle” (Simone Veil, A Viagem no Século”) – melhor direção de arte (Christian Marti), figurino (Gigi Lepage)
. “Notre Dame – Desastre em Paris” (Notre Dame Brûle) – Melhores efeitos especiais (Laurens Ehrmann)
. “Maria Schneider, 1983”, de Elisabeth Subrin – melhor curta-metragem (documentário)
. “Partir un Jour”, de Amélie Bonnin – melhor curta-metragem (ficção)
. “La Vie Sexuelle de Mamie”, de Urska Djukic e Emilie Pigeard – melhor curta de animação