“Outro País” registra anos febris da Revolução dos Cravos vista por artistas internacionais
Por Maria do Rosário Caetano
Portugal homenageia Chico Buarque com entrega tardia de seu Prêmio Camões de Literatura, enquanto a Cinemateca Brasileira homenageia o cineasta Sérgio Tréfaut com a exibição de seu longa documental “Outro País”, em sessão especial, nessa terça-feira, dia do aniversário da quase cinquentenária Revolução dos Cravos.
O realizador, português por reconhecimento, é na verdade um cidadão do mundo. Nasceu no Brasil, em São Paulo, onde seu pai, o intelectual e militante comunista Miguel Urbano Rodrigues, vivia (e trabalhava no Estadão) exilado da ditadura salazarista. Filho de mãe francesa, ele viveria e estudaria em Paris. Correu mundos. Hoje reside no Rio de Janeiro, onde realizou, no Palácio do Catete, durante a pandemia, o saboroso documentário “Paraíso”.
Tréfaut, um cidadão inquieto, comunica-se em português intermediário entre o lusitano e o brasileiro (nem tão consonantal quanto o da Península, nem tão vocálico quanto o nosso). Comunica-se, também, em francês, inglês, italiano e espanhol. E entende árabe, russo e alemão. O que é normal num cineasta que fez muitos filmes em Portugal, mas sempre esteve em fina sintonia, além do Brasil, com o mundo árabe (vide “A Noiva”, sobre o Daesh, e “A Cidade dos Mortos”, este sobre imensa necrópole egípcia) e a tragédia do povo judeu (“Treblinka”).
A sessão de “Outro País”, o registro dos anos febris da Revolução dos Cravos – ele acompanhará a projeção junto com o público, nessa terça-feira, 25 de abril – mostra o cosmopolitismo de Tréfaut. Para narrar o que se passou em Portugal nos anos de 1974 e 1975, o cineasta recorreu ao testemunho (visual e vocal) de mais de uma dezena de artistas estrangeiros. Um time formidável que une brasileiros (Chico Buarque, Glauber Rocha, Sebastião Salgado, Lélia Wanick), franceses (Jean Gaumy, Guy Le Querrec, Dominique Issermann, Michel Lequenne e Daniel Edinger), sueco (Pea Holmquist), alemão (Thomas Harlan), estadunidense (Robert Kramer), cubano (Santiago Álvarez) e soviéticos (um coletivo de documentaristas).
Em 1999, a Revolução dos Cravos festejava 25 anos e estava distante de seus anos rubro-febris, aqueles em que jovens capitães se rebelaram contra 13 anos de guerra colonial, mantida pela elite político-financeira portuguesa, empenhada em não perder seus territórios na África (Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde).
Como registra o documentário soviético “Portugal – Primeiros Dias de Liberdade” – já na vibrante abertura de “Outro País” – crescia, a cada novo dia, “o número de viúvas e órfãos” lusitanos. Estes “recebiam condecorações em nome dos pais mortos numa guerra suja”. Os combatentes, jovens soldados, lutavam e começavam a perceber que “aquela guerra não tinha sentido”. Por longos anos, o regime (salazarista) “sustentou a guerra colonial sem resultados”, sem conseguir “apagar o fogo da luta de libertação das colônias africanas”. Não bastaram os 150 mil homens enviados pelas Forças Armadas à África, pois as operações custavam ao País “milhões de dólares e milhares de vidas”.
Depois de assistirmos aos testemunhos de Chico Buarque (sintetizados nos versos de “Tanto Mar”), Sebastião Salgado e Lélia Wanick e às imagens colhidas no calor da hora pelo “repórter-cineasta” Glauber Rocha (“As Armas e o Povo”, filme-cooperativa), entra em cena o germânico Thomas Harlan, diretor de “Torre Bela”, épico de muitas horas. Ele, que acompanhara o desmonte e queda do Governo Allende pelas Forças Armadas chilenas comandadas pelo General Pinochet, não acreditava no que estava vendo. Afinal, “militares, jovens capitães e soldados desmontavam o exército colonial e faziam uma revolução”.
Ao longo de sintéticos e poderosos 70 minutos, Sérgio Tréfaut, que veremos em cena fuçando arquivos internacionais e entrevistando cineastas e fotógrafos movidos pela paixão, comporá rico painel dos “loucos anos revolucionários” (foram apenas dois). Portugal, aquele pequeno país banhado pelo Atlântico, que parecia esquecido do mundo, virara o centro gravitacional da esquerda planetária.
Para a nação ibérica corriam jovens artistas politizados, os maiores fotógrafos e cinegrafistas do mundo, todos queriam ser testemunhas daquela experiência única. Uma revolução feita por jovens capitães, que estavam socializando fábricas e promovendo a reforma agrária. Enfim, dando concretude ao que o cubano Santiago Álvarez, cineasta e médico ateu, chamou de “Milagre na Terra Morena”.
Daniel Edinger foi para Setúbal, sua “Ville Rouge”. O sueco Pea Holmquist (“Em Portugal Ainda Há um Sonho”) regressa ao país ibérico para encontrar sua protagonista, a idosa Custódia Piriquito Passinhas. Kramer e Philip Spinelli preferiram título mais de acordo com aqueles anos para seu documentário (“Portugal – Cenas da Luta de Classes”). O estadunidense contará a Tréfaut que retirou da montagem final deste filme determinada sequência. Aquela que, com certeza, seria utilizada de forma negativa pela poderosa mídia de seu país, marcada por histórico anticomunismo: cinco líderes da Revolução dos Cravos dançavam, muito bêbados, ao som do hino partigiano “Bella Ciao”.
Os dois anos (1974 e 1975) foram febris, mas muito breves. Cineastas e fotógrafos relembram que redações europeias pediam registros fotográficos de convulsões e confusões revolucionárias, desavenças, projetos de estatização e reforma agrária que não davam resultados satisfatórios. As forças outrora hegemônicas foram retomando o controle institucional do país. E o sonho dos Capitães de Abril e de seus “Homeros das imagens e sons” foram se desmanchando no ar.
Tréfaut, porém, fez questão de, passados 25 anos, recuperar aqueles dias que não vivenciou, pois era uma criança de nove anos. E de protestar contra a situação dos arquivos de seu país, que não guardaram “milhares de fotografias e os 40 filmes produzidos por cineastas estrangeiros sobre a revolução portuguesa de 1974-75”. Para arrematar: “Em 1999, quando esse filme ficou concluído, praticamente nada deste material tinha cópias nos arquivos portugueses”.
Por sorte, “Outro País” construiu-se com a recriação de tais materiais e buscou respostas para as perguntas que, então, ocorriam ao jovem realizador luso-franco-brasileiro: “quais eram os sonhos e expectativas daquele momento? O que ficou do sonho da revolução?”
Outro País
Portugal, 1999, 70 minutos
Direção: Sergio Tréfaut
Participação: Chico Buarque, Sebastião Salgado, Glauber Rocha, Pea Holnquist, Thomas Harlam, Robert Kramer, Dominique Issermann, entre outros.
Exibição: Cinemateca Brasileira, Sala Grande Otelo (Largo Senador Raul Cardoso, Vila Mariana, São Paulo) às 20h / Gratuito – retirar ingresso a partir das 19h
Classificação indicativa: 14 anos
FILMOGRAFIA
Sérgio Tréfaut (São Paulo/SP, 23 de fevereiro de 1965)
2022 – “A Noiva” (ficção)
2021 – “Paraíso” (doc)
2018 – “Raiva” (ficção)
2016 – “Treblinka” (doc)
2014 – “Alentejo, Alentejo” (doc)
2011 – “Viagem a Portugal” (ficção)
2009 – “A Cidade dos Mortos” (doc)
2004 – “Lisboetas” (doc)
2022 – “Florette” (doc)
1999 – “Outro País” (doc)