“O Mel É Mais Doce que o Sangue” promove mergulho poético no canto gitano de Lorca e resgata discurso de Neruda
Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba
“Há dois Federicos: o da verdade e o da lenda. E os dois são um só.
Há três Federicos, o da poesia, o da vida e o da morte. E os três são um só ser.
Há cem Federicos e todos eles cantam. Sua poesia, sua vida e sua morte estão repartidas pela terra. Seu coração destroçado estava repleto de sementes: não sabiam os que o assassinaram que o estavam semeando, que fincaria raízes, que seguiria cantando e florescendo em todas as partes, e em todos os idiomas, cada vez mais sonoro, cada vez mais vivo”.
Esse poderoso discurso de Pablo Neruda foi pronunciado em São Paulo, em 1968, na inauguração de monumento a Federico García Lorca, criado pelo escultor Flávio de Carvalho. Consta que Chico Buarque, cujo pai Sergio Buarque de Holanda era amigo pessoal de Flávio de Carvalho, também esteve presente à solenidade.
O triunfo do AI-5, que transformou a “ditadura envergonhada” em “ditadura escancarada”, causou imensos estragos à vida pública brasileira e ao monumento-escultura criado para homenagear também os refugiados da Guerra Civil Espanhola. Transformada em “sucata”, a criação do vanguardista Flávio foi abandonada e encaminhada para um depósito em Cotia.
A obra só seria resgatada e reinstalada na Praça das Guianas paulistana, em 1979, por “sequestro” engendrado pelo estudante de Arquitetura da USP, Fernando Meirelles (futuro diretor de “Cidade de Deus”), que se fez acompanhar de 14 colegas espremidos numa camionetezinha. Tal resgate é evocado subliminarmente pelo filme “O Mel É Mais Doce que o Sangue”, de André Guerreiro Lopes, forte concorrente ao prêmio do Festival Internacional de Curitiba, o Olhar de Cinema (concorre na mostra Novos Olhares). Quem quiser conhecer, em narração detalhada, o episódio protagonizado por Meirelles pode (e deve) ler reportagem da BBC Brasil.
Que ninguém espere de “O Mel…”, um documentário jornalístico. Longe disso. O segundo longa-metragem de Guerreiro (“Siron. Tempo sobre Tela!”, parceria com Rodrigo Campos) é um objeto poético de imensa potência inventiva. E temática, pois o filme – que se constrói sob inspiração de Federico García Lorca, o artista andaluz assassinado pela falange franquista – comete belas ousadias formais, sem perder a sintonia as questões sociais. A luta pela terra, em especial dos povos indígenas, e a busca incessante pela liberdade de expressão e manifestação do pensamento estão no coração do projeto. Liberdade que os fascistas de Espanha negaram a um de seus artistas mais inspirados e amados,
A sessão de “O Mel É Mais Doce que o Sangue” no festival curitibano terminou sob intensos aplausos. Afinal, André soube tirar da prosa (em verso) de Pablo Neruda – aquela que evoca o “destroçado coração” de Lorca, “cheio de sementes”, que fincariam raízes, cantando e florescendo em todos os cantos – a mais profunda emoção.
A mostra Novos Olhares do festival curitibano é destinada a filmes que apostam na radicalidade da linguagem. André Guerreiro, multiartista – ele assina, além da direção, a fotografia, o roteiro (com Antônio Arruda) e a direção de arte (em parceria com Léo Ceolim) – fez um filme marcado pela radicalidade.
Para o elenco, o cineasta, também ator de muitas peças e filmes, convocou Helena Ignez, Djin Sganzerla, Michele Malaton, Samuel Kavalersky e Daniel Wera. E colocou sua imaginação à flor da pele.
“O Mel…” constitui-se como uma ficção profundamente fincada na realidade. Numa São Paulo contemporânea, caminha, qual uma andarilha-menestrel, uma mulher (Helena Ignez), que empurra uma carroça mágica. Transeuntes curiosos miram seu interior e descobrem maravilhas. Um, porém, diz nada ver.
Entre as maravilhas, vemos duas cabeças (das atrizes Djin Sganzerla e Michele Matalon) que parecem brotadas de tempos imemoriais. Lembram, em certa medida, as cabeças de Ney Matogrosso e seus colegas secos & molhados na capa do primeiro disco do trio andrógino. Mas sob a luz de uma lâmpada elétrica, elas parecem geradas pela terra argilosa, quem sabe da Andaluzia lorquiana. A beleza das cabeças falantes e geradoras de metáforas nos deixam em estado de poesia.
A andante carroceira de Helena Ignez segue pelas ruas esburacadas da megalópole paulistana. Canta e dança com indígenas. O filme vai a uma aldeia Guarani. A andarilha penetrará, inclusive, numa celebração patriótico-direitista no Sete de Setembro, em tempos conturbados e verde-oliva (de Bolsonaro). Quem não está acostumado aos procedimentos do cinema de invenção estranhará a opção do diretor. O que a luta dos Guarani por sua terra tem a ver com García Lorca?
Para o diretor, tem a ver justo com a luta pela terra ancestral. Afinal, foi no poeta andaluz que ele buscou livre inspiração para tentar compreender o Brasil contemporâneo. Um país que abraçou (via eleitoral) um dirigente-praticante do credo franquista. Foi o fascismo, que triunfou na Guerra Civil Espanhola, que matou o bardo gitano. E o matou por seus versos e peças dramáticas, por suas ideias e por sua homossexualidade. Os que atiraram e ocultaram o corpo de Federico García Lorca (1898-1936), cujos restos mortais nunca foram encontrados, o mataram por ser “comunista (Republicano) e homossexual”.
Quem se dispuser a ver o filme como um poema composto de imagens e sons inesperados, e não como uma narrativa tradicional, será altamente recompensado.
O título que embala a viagem de André Guerreiro Lopes – que somou tantos ofícios nessa narrativa tão inquieta e pessoal (até a carroça mágica surgiu de vivências dele, quando estudante de poucos recursos em país estrangeiro) – vem de obra de outro espanhol, da geração de Lorca, o pintor Salvador Dalí.