Tony Tornado de cafetão no Harlem a detentor de troféu na Vila Rica, na CineOP
Foto: Tony Tornado e seu filho, Lincoln Tornado, no placo da mostra © Leo Lara/Universo Produção
Por Maria do Rosário Caetano, de Ouro Preto
Três músicos brilharam na noite de abertura da CineOP, a Mostra de Cinema de Ouro Preto: os cantores-atores Tony Tornado, laureado com o Troféu Vila Rica, e Maurício Tizumba e Gabriel Martins, diretor de “Marte Um”, um dos filmes mais premiados do cinema brasileiro contemporâneo.
Mas o que tem Gabriel a ver com música?
Muito a ver. Além de roteirista e diretor, ele é baterista da banda Diplomattas, que recria clássicos da soul music, do jazz, do samba e da MPB. Ao lado dos “colegas diplomattas” (Hebert Almeida, Kim Gomes e Robert Frank), Gabriel frequenta o circuito de shows há 10 anos. O quarteto assina intervenções sonoras nos curtas e longas que o jovem cineasta realiza na produtora Filmes de Plástico, orgulho da cidade de Contagem, na grande Belo Horizonte.
O primeiro artista a subir ao palco do gelado Cine Praça, plantando ao ar livre na histórica Praça Tiradentes, foi Maurício Tizumba. O ator de cinema (“Narradores de Javé”), teatro (recriou Grande Otelo em montagem antológica) e protagonista de espetáculos que resgatam cantos da liturgia afro-brasileira, comandou como mestre de cerimônia, trajando vistoso terno vermelho, um grupo de congada (Guarda do Congo Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia) e um de moçambique (Guarda de Moçambique, também dedicado às mesmas santas). Depois da exibição de “Baile Soul”, o filme escalado para noite inaugural no Cine Praça, a banda Diplomattas apresentou o show “Uma Viagem pela Música Preta”, tendo Tizumba como convidado.
Como a décima-oitava edição da CineOP é dedicada à “MP no B” (Música Preta no Brasil), nada mais natural que o homenageado da noite inaugural fosse um astro da soul music brasileira, Tony Tornado, ex-militar (e colega de Silvio Santos nos tempos verde-oliva), ex-cafetão no Harlem nova-iorquino, ex-ator de pornochanchada e, acima de tudo, cantor, dançarino e coadjuvante em filmes de empenho artístico como “Pixote, a Lei do Mais Fraco”, “Quilombo”, “Redentor”, “Carcereiros” e no delicado e, infelizmente, pouco visto “Helen”, no qual atuou ao lado de Marcélia Cartaxo.
Quem é do ramo musical se lembra do imenso Tornado, paulista do interior e “diplomado nas ruas” do Rio de Janeiro e de Nova York, interpretando (ao lado do Trio Ternura) a lisérgica “BR 3”, de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar. Ele venceu, naquele ano de 1970, com sua dança de passos robóticos, figurino arrematado por um sol pintado no peito nu, o Festival Internacional da Canção. Virou símbolo do “black power” e da “black music” brasileiros. E modelo para o orgulho de jovens pretos das periferias brasileiras.
Aos 93 anos – “faltam só sete para os 100, e quero chegar lá”, avisou ele no palco do Cine Praça – Tornado é um livro aberto. Não edulcora suas mais de nove décadas de existência, que somam momentos difíceis a imensas alegrias. A maior delas, ser um ator contratado pela Rede Globo, emissora na qual interpretou papéis que lhe garantiram fama popular, como o capanga Rodésio, apaixonado pela viúva Porcina, em “Roque Santeiro”, e Gregório Fortunato, o “anjo negro” da guarda de Getúlio Vargas. Atualmente, vive um frade na telenovela “Amor Perfeito”, inspirada livremente no filme católico “Marcelino Pão e Vinho” (Espanha, 1956).
E os momentos difíceis? Foram muitos. Viveu na rua, vendeu amendoim na Central do Brasil, foi camelô (infelizmente sem a trajetória fulgurante do hoje milionário colega Silvio Santos) e desempenhou ofício de cafetão no Harlem, mais famoso bairro afro do mundo. Na Big Apple, na condição de ilegal e com o aveludado apelido de “Comfort”, ele protegeu prostitutas que exerciam seu ofício milenar. Passou drogas e ainda deu uma ajuda ao amigo Tim Maia, também ilegal e tentando a vida no submundo nova-iorquino. Acabaram, ambos, expulsos da maior cidade dos EUA.
E Tornado envergonha-se de ter sido cafetão e vendedor de drogas nas ruas do Harlem?
Em corajosa entrevista ao imenso (440 páginas) catálogo da CineOP, ele garante ao documentarista Bernardo Oliveira, que não. Que protegia as moças dos perigos das ruas. E que, se vendeu drogas, orgulha-se de nunca ter cheirado, fumado ou bebido produtos ilícitos. “Nunca fui bandido”. No Harlem, quando não estava protegendo as prostitutas, ele lavava carros, fachada “legal” para seus obscuros ofícios em território norte-americano. Ao contrário do amigo Tim Maia (1942-1998), que gostava de dizer que no Brasil “traficante cheira e prostituta goza” e nunca posou de bom-moço, Tornado garante que era um pequeno repassador de substâncias proibidas, mas que jamais as experimentou. Jura que é um homem pautado pelo amor ao próximo e ao trabalho, seja no cinema, na TV ou nos palcos.
Um momento que ele gosta de recordar tem Elis Regina (1945-1982) como personagem. E resultou de soma de alegria e decepção. Não com a estrela da MPB, a quem ele admira, mas com o resultado de sua performance. “Elis” – relembra o cantor – “estava cantando ‘Black is Beautiful’ no palco nobre do FIC, em 1971. Ao ouvir os versos da composição dos Irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, Tornado encarnou o personagem (“Eu quero um homem de cor/ um deus negro/ do Congo ou daqui”) e subiu de supetão ao palco. Foi detido na hora e arrancado do Maracanãzinho. Sob os protestos da Pimentinha, que o conhecia e se indignara com sua brutal retirada do proscênio. O próprio Marcos Valle diria, depois, a Tony Tornado que ele era sim, “um Deus negro do Congo ou daqui”, uma fonte de inspiração para a badalada canção setentista”.
Antes de receber o Troféu Vila Rica das mãos do filho, Lincoln Tornado, de 38 anos, o ator-cantor esbanjou suas costumeiras franqueza e bondade: “fiz bons filmes como ‘Quilombo’ e ‘Pixote’, embora poucas pessoas se lembem de mim no filme do Babenco. Fiz também filmes medianos e péssimos. Alguns, mais que péssimos. Mas o que fazer? Tinha que garantir a sobrevivência”. E derramou sua gratidão pelo reconhecimento recebido do comando da CineOP, do prefeito de Ouro Preto, Ângelo Oswaldo, e da ministra Margareth Menezes, representada pela secretária do Audiovisual Joelma Gonzaga
O artista de 1m90, que já não consegue mais repetir os passos acrobáticos que o consagraram (passou por cirurgia no joelho em 2017), se referia, ao citar “filmes mais que péssimos”, às pornochanchadas que o tiveram em seus elencos na década de 1970 (entre elas, “A Virgem”, “Clube das Infiéis”, “Pesadelo Sexual de uma Virgem”, “Uma Cama para Sete Noivas”, “Tráfico de Fêmeas”).
A dupla Tornadão & Tornadinho cantou, na Praça Tiradentes, os versos mobilizadores e suingados de “Pode Crer, Amizade”. Lincoln fez os passos que evocavam a histórica dança do pai nos tempos de astro da black music. Tony olhava, satisfeito, para o filho, que sequencia sua carreira, também como ator e cantor (Lincoln atua em novelas do SBT). Juntos, convocaram o público para show que os dois farão na CineOP, após a exibição de “Quilombo”, de Cacá Diegues, para que todos possam reviver o auge dançante da Black Music.
Tony Tornado voltou, depois de receber o Troféu Vila Rica, ao palco do Cine Praça na companhia do cineasta Cavi Borges, para apresentar “Baile Soul”, resgate documental do auge de festas suburbanas do Rio de Janeiro da década de 1970. Bailes que mobilizavam milhares de jovens negros, com “pisantes cavalo de aço” (sapatos com até cinco “andares” na sola), cabelos black power e roupas que seguiam figurinos consagrados por James Brown (1933-2006). O astro supremo da soul music norte-americana dá régua e compasso ao filme.
O cantor-ator brasileiro é evocado em “Baile Soul” em sua performance de peito nu no ano festivaleiro de “BR 3” e arrasa, no auge de sua forma física, dançando como o ídolo James Brown. Mas quem arrasa, de forma incontornável, em “Baile Soul” é Dom Filó. Articulado e sereno, o instrumentista e cantor relembrará a gênese da Black Music no Brasil, a proliferação de bailes pelos subúrbios, o “abrasileiramento” do gênero que a turma do samba (os cultores de Cartola, Nelson Cavaquinho, da Mangueira, Portela, Império e Salgueiro) via como cópia ou imitação acrítica da poderosa música norte-americana.
Outro artista que brilha quase tanto quanto Dom Filó no documentário de Cavi Borges é o dançarino Doutor Sidney, o verdadeiro “sex machine” dos bailes suburbanos. Ele dançava como um deus de ébano. E continua dançando. Com seu corpo esguio repete as acrobacias corporais que fizeram dele o mais invejado das pistas, aquele a quem todos deviam (e queriam) imitar.
O radialista Big Boy, da Rádio Mundial, também ocupa espaço significativo no documentário de Cavi Borges, pois trouxe para as galeras do Catumbi, Borel, Macaco, Salgueiro, Mangueira e outros bairros habitados por gente de pele preta, os últimos lançamentos de James Brown e outras estrelas do Soul.
O prolífico cineasta carioca, ex-lutador de judô, além de botar o som para ferver com os maiores hits de James Brown, seleciona imagens de séries e filmes blaxploitation (incluindo “Shaft” e sua trilha arrebatadora) e a tudo tempera com imagens e discursos anti-racistas do rebelde personagem de Antonio Pitanga em “Jardim de Guerra”, de Neville de Almeida. E resgata, ainda, imagens do jovem Reverendo Jesse Jackson (futuro candidato à presidência dos EUA) em manifestação temperada com música e discurso libertário.
“Baile Soul” compõe com “Chic Show”, de Emilio Domingos e Felipe Giuntini, e “Trem do Soul”, de Clementino Junior, trinca de documentários dispostos a resgatar a era que fertilizou o renascimento de movimentos negros no Brasil. O MNU (Movimento Negro Organizado) tornou-se o mais importante deles.
Os três filmes dão sua contribuição para que o Brasil reconheça a importância de nomes famosos como Tony Tornado, Sandra de Sá, Carlos Dafé, Hyldon e o grande Gerson King Combo. E também artistas que não conseguiram a notoriedade merecida, caso do próprio Filó, que nos anos 1980 trilharia outros caminhos. Sem falar nos balançantes discos gravados por equipes como Furacão 2000, Cash Box, cujo slogan era “o som acima do normal”, e Soul Grand Prix. Como repetirá Dom Filó ao longo do filme, com seu potente depoimento, “criávamos o som que fazia a galera cair dentro”.
Um tema poderá enriquecer, doravante, os filmes sobre a Black Music e suas diferenças com o mundo do samba. O assunto é levantado por Cavi Borges em seu “Baile Soul”, mas não é aprofundado. A jornalista Lena Frias, ligada ao mundo do samba, realizou, para o glorioso JB (Jornal do Brasil) da década de 1970, matéria de cinco páginas, nas quais discutia a conflituosa relação entre sambistas e adeptos da Soul Music. Para dar conta do descompasso, ela batizou sua extensa reportagem com título irônico: “O Orgulho (Importado) de Ser Negro no Rio”. Seu trabalho jornalístico é valorizado, mas sua posição pró-samba é lembrada como “limitadora”. Inclusive, ironizam os “brownsistas”, ela se definia como “uma mulata” e não uma preta que se esbaldava nas pistas dos bailes Soul. Aliás, Lena Frias preferia as quadras das escolas de samba.
Em novo encontro com o público, que contou com a participação da DJ Black Josie e do cineasta Bernardo Oliveira, Tony Tornado reavivou memórias dos tempos da Soul Music. E aproveitou para sugerir que não se confundam os sons da gloriosa e black década de 1970 com o funk atual. “Que Jojô Todinho e Negro do Borel ganhem seu dinheirinho, tudo bem! Mas a música que eles fazem nada tem a ver com Soul Music. É música de pouca qualidade, massificada”.
O nonagenário Tornado, aplaudido calorosamente pela plateia que lotou o lounge do Centro de Convenções de Ouro Preto, respondeu a duas perguntas da Revista de CINEMA:
— Você interpretou muitos escravizadas, bandidos, capitães-do-mato e até garanhões sexuais em filmes, séries e telenovelas. De todos os seus papéis, qual você destaca como o mais elaborado, o mais nuançado?
— Foi, sem dúvida, o Gregório Fortunato, da guarda presidencial de Getúlio Vargas. Quando Carlos Manga me convidou para integrar o elenco de “Agosto” (série baseada em obra de Rubem Fonseca) ele me disse: “olhe Tornado, você é uma pessoa muito alegre, de riso largo. Deixe essas características de lado. Fortunato era sério, compenetrado, de poucas palavras”. Eu mergulhei na personagem, que conheci na vida real, nos meus tempos de paraquedista. Ele costumava frequentar o quartel para escolher militares para a guarda presidencial. Li tudo que pude sobre o anjo da guarda de Vargas. Me concentrei. Creio que foi realmente meu melhor desempenho. Ele era uma espécie de guarda-costas, um serviçal do Presidente. E Vargas tinha total confiança nele e o ouvia muito. Um personagem complexo. Por meu tipo físico, um homem de quase dois metros de altura, sempre fui escalado para papéis de bandidos, policiais e, até, capitão-do-mato, este na novela “Sinhá Moça”. Não reclamo, pois embora sonhasse com papeis de mocinho, partner da linda Vera Fischer, eu sei que meu tipo físico não me permitia esse caminho. Já pensou se me escalam como par romântico dessa atriz que é apresentadora, sim a Tatá Werneck?!!! Os problemas começariam até no enquadramento. Ela é pequenina e eu sou imenso. Faço questão de registrar que sou muito agradecido à TV Globo. Nesse exato momento vivo um padre, o Frei Thomé, na novela das seis. Um padre muito bonzinho, que tem ótima relação com o Marcelino, esse menino genial (de nome Levi Asaf). Como ele sabe que não pode pular em cima de mim, pela idade e pela cirurgia ortopédica a que me submeti, ele me vê carinhosamente como seu frade-protetor.
— Num de seus últimos filmes, “Helen”, de André Meirelles Colazzo, você interpreta Antônio, um homem sensível e prestativo, que convive com Dona Graça, personagem de Marcélia Cartaxo, e com a Helen do título, a menina Thalita Machado. Como se deu essa experiência cinematográfica ambientada no Bexiga Paulistano?
— Adorei fazer o filme, pois gosto muito de contracenar com crianças, e a menina que interpretava a Helen era ótima. E meu personagem também era muito interessante. Mas vou lhe confessar: nada posso dizer sobre o filme, pois nunca o assisti. Se você souber de um jeito de eu assisti-lo, no streaming, por exemplo, eu agradeço. Soube que esse longa-metragem ganhou prêmios no exterior, mas teve lançamento tão modesto no Brasil, que nem integrando seu elenco, eu pude assisti-lo. Mas quero muito ver o resultado do nosso trabalho com Collazzo.
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