Transexual evangélica, “Disco Boy” legionário, ritual do AI-5 e Salomé ‘queer’ agitam Olhar de Cinema
Foto: “Disco Boy”, de Giacomo Abbruzzese
Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba
A programação do XII Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba tem sido prestigiada por significativas plateias, muitas vezes com sessões lotadas, seguidas de animados debates.
Na terceira noite da competição brasileira e da internacional foram exibidos dois filmes mobilizadores – o documentário capixaba “Toda Noite Estarei Lá”, sobre a transexual Mel Correia do Rosário, e a ficção franco-italiana “Disco Boy”, um “apocalipse now” ambientado no Delta do Níger africano.
Para animar a festa cinematográfica curitibana, a mostra Novos Olhares, também competitiva, apresentou um documentário que além de mobilizador, se mostra muito oportuno e necessário: “A Portas Fechadas”. O filme de sintéticos 64 minutos registra, com a ressignificação de imagens de arquivo, verdadeira exegese de reunião do Conselho de Segurança Nacional, presidida pelo ditador e marechal Arthur da Costa e Silva, origem do Ato Institucional Número 5 (AI-5). O decreto-lei que transformou, na precisa definição de Elio Gaspari, a “ditadura envergonhada”, instalada pelo golpe militar de 1964, em “ditadura escancarada”.
No campo do diálogo com o passado, a mostra Olhares Clássicos surpreendeu o público com raridade que festeja seu centenário: “Salomé”, produção muda de 1923, inspirada na célebre peça teatral de Oscar Wilde e protagonizada pela diva russo-estadunidense Alla Nazimova.
“Toda Noite Estarei Lá”, primeiro longa-metragem das capixabas Suellen Vasconcelos e Tati Franklin, é fruto dos esforços persistentes de pequena equipe (Tati, além de dirigir, assume a fotografia, e Suellen, o som). O filme não se ocupa em buscar inovações da linguagem documental, mas sim em abrir espaço nobre para a causa de sua protagonista, a cabeleireira transexual Mel, nascida Robson, numa família de oito irmãos e mãe religiosa, seguidora do restritivo credo das Testemunhas de Jeová.
E qual é a causa da cabeleireira Mel, hoje com 54 anos? Professar sua fé na igreja evangélica de sua escolha. Só que o comando da instituição religiosa não deseja ter entre seus fiéis uma transexual. Mel não se dá por vencida e entra na Justiça. Um templo é, afinal, um lugar público e a Constituição brasileira proíbe discriminação de pessoas por raça, credo ou opção sexual.
Enquanto espera a tramitação do processo judicial, Mel protesta, pacificamente, em frente ao templo, com imensos cartazes, nos quais defende seus direitos. O faz com fé, elegância, sem armar nenhum barraco. Não grita, não dá show. Reivindica e chama atenção para sua causa.
A Justiça garante seu direito de frequentar o templo. Ela assiste a um culto, mas logo a igreja dirá que ela não é bem-vinda, pois não é “membro da instituição”. Mel volta a dedicar-se às suas performances, com novos cartazes, que ela mesma confecciona, e com frases cada vez mais criativas. Afinal, não entende como uma igreja, que deve pregar o amor e a tolerância, faz dela motivo de ódio.
O documentário capixaba acompanhou Mel por quase cinco anos. Tudo começa em 2017. Em 2018, a cabeleireira participa da campanha presidencial em manifestações de rua, em apoio ao candidato do Partido dos Trabalhadores. Externa suas opiniões contrárias a Bolsonaro, outro combatente das fileiras homofóbicas. Ele triunfa no pleito.
Mel segue sua rotina no salão e nas performances frente à igreja. Chega a pandemia. De máscara no rosto, ela continua tentando ser aceita. A enxuta equipe do filme busca soluções para sequenciar “Toda a Noite Estarei Lá” em tempo epidêmico. A mãe de Mel, já octogenária, sugere à filha que compre um carro para com ele realizar fretes. Uma forma de enfrentar agruras econômicas. É o que ela faz.
No debate do filme, após a sessão, Mel, acompanhada das diretoras, revelou trechos de sua vida que não estão na narrativa de Suellen e Tati: ela foi presa por envolvimento com drogas. Pegou 6 anos de reclusão. Seu bom comportamento e seus dons culinários (cozinhava na prisão) diminuíram a pena. Ela voltou para a vida em sociedade e para a prática religiosa. Até ser discriminada pelo pastor e recorrer à Justiça.
O documentário, que pela primeira vez traz uma igreja evangélica para o centro de sua narrativa, tem em sua personagem seu maior trunfo. Mel é carismática e expõe seu discurso de forma espirituosa e cativante. O filme ganharia mais densidade se se aprofundasse na trajetória da própria Mel, que, como mostrou no debate, não tem nada a esconder.
“Disco Boy”, primeiro longa ficcional do italiano, radicado na França, Giacomo Abbruzzese, de 39 anos, chegou ao Olhar de Cinema com ótimas credenciais. Participou da disputa pelo Urso de Ouro em Berlim 2023 e ganhou o Urso de Prata pela melhor fotografia (da craque francesa Hélène Louvart, parceira de grandes nomes do cinema europeu e diretora de fotografia de “A Vida Invisível” e “Firebrand”, ambos de Karim Aïnouz).
Com lançamento garantido no circuito brasileiro (pela Pandora, de André Sturm), “Disco Boy” tomou anos de labor e pesquisas de Abbruzzese. Para escrever o roteiro, ele mergulhou na estrutura da Legião Estrangeira, força auxiliar do Exército francês, que transforma párias sociais (em especial imigrantes ilegais) em legítimos cidadãos, desde que prestem cinco anos de serviço em conflitos armados à pátria bleu-blanc-rouge.
Pesquisou também a vida de quem dança em casas noturnas movidas a música tecno e bebidas extasiantes. E mais, os conflitos na conflagrada África (no caso específico no Delta do Níger, país de 20 milhões de habitantes, que faz fronteira com a Nigéria, de 205 milhões de almas).
“Disco Boy” começa, de forma sensorial e perturbadora, com massa corpórea de pessoas negras, amontoadas em ambiente pouco definido. São corpos que dormem? Ou corpos de imigrantes mortos?
Corte brusco nos transportará para um ônibus repleto de jovens bielorrussos, que parecem torcedores de futebol rumo a jogo que antagonizará a Polônia à antiga república soviética. Logo descobriremos que dois dos passageiros pretendem entrar clandestinamente na França, pelos caminhos mais tortuosos e perigosos.
Um deles irá se engajar na Legião Estrangeira, essa nebulosa de tempos imperiais-coloniais, que dará aos que não têm nacionalidade francesa, tal direito, se lutarem pelo país de Napoleão Bonaparte. Como diz um de seus textos constitutivos – a cidadania francesa será atribuída aos que não a conquistaram pelo nascimento, mas pelo sangue derramado em nome da França.
O filme dialoga abertamente com “Apocalipse Now”, o lisérgico filme de Francis Ford Coppola. E, em certa medida, com “Beau Travail”, de Claire Denis. O cineasta e roteirista de “Disco Boy” preferiu declinar suas matrizes literárias – “No Coração das Trevas”, de Joseph Conrad (matriz do filme de Coppola!), “Viagem ao Fim da Noite”, de Louis Ferdinand Céline, e “Eu Matei”, de Blaise Cendrars. Este, um francês que conheceu a guerra por dentro e nela perdeu um braço.
Giacomo Abbruzzese convocou para protagonizar seu filme três atores: um europeu, o alemão Frank Rogowski, que interpreta o bielorrusso Aleksey, e os africanos Laetitia Ky (a dançarina da feérica casa noturna frequentada pelos legionários) e Jomo (Morr Ndiaye, ator estreante senegalês de apenas 19 anos, quando atuou no filme). Um imenso elenco multilíngue completará o cast.
No debate, o realizador ítalo-francês garantiu que sua intenção era dar rosto aos dois lados do conflito bélico que compõe o “coração das trevas” de sua narrativa. Ou seja, a Legião Estrangeira, com seus soldados submetidos ao brutal treinamento que lhes garantirá, depois de cinco anos, a cidadania francesa, e os africanos do Delta do Níger. Afinal, sentiu-se, sempre, incomodado com a invisibilidade dos contendores das guerras empreendidas por europeus ou norte-americanos. O realizador conseguiu em parte seu intento. Deu rosto e algumas fortes sequências aos guerrilheiros do Delta. Mas o herói (ou anti-herói) do filme continua sendo o jovem Aleksey, de pele branca e eslava.
Dois atenuantes ajudam Giacomo Abbruzzese a atingir parte de seu intento – a rebeldia incendiária de Aleksey e o final utópico num território (pista de dança) encadeado por movimentos que beiram o transe.
A surpresa brasileira da terceira noite (quarta, se contarmos com a apoteótica abertura na Casa de Izabel/Ópera de Arame) foi mesmo “A Portas Abertas”. O filme do jovem João Pedro Bim, seu primeiro longa (de apenas 64 minutos) poderia até estar na mostra principal.
Ao vê-lo, nos questionamos: por que foram necessárias tantas décadas para que alguém tivesse ideia tão brilhante?
Por que, nos anos da abertura política, algum documentarista não mergulhou nos arquivos da AERP (Agência de Relações Públicas da Presidência da República), o poderoso braço publicitário do governo dos generais?
Por que ninguém trabalhou cinematograficamente com o revelador áudio da reunião do presidente da República (Costa e Silva), seu vice (o civil Pedro Aleixo), do titular do SNI (Garrastazu Médici) e ministros de Estado que aprovaram a instituição do AI-5?
Como diz o ditado, antes tarde do que nunca. João Pedro Bim o faz agora, e de forma brilhante. Construiu com sua pequena e engenhosa equipe um documentário que revê brechtianamente (com recurso de distanciamento crítico que nasce de “defeito técnico” intencional) um filme que serve como poderoso espelho para o que se passa nesse nosso conturbado tempo verde-oliva.
Num recuo a passado bem mais longínquo – exatos cem anos – nos deparamos com um filme da era muda norte-americana: “Salomé”, de Charles Bryant (segundo o catálogo do Olhar de Cinema, com direção também de sua protagonista, a atriz russa Alla Nazimova).
Público dos mais significativos foi assistir à extravagante (bota extravagante nisso!) adaptação cinematográfica de “Salomé”, a peça de Oscar Wilde, escrita em 1891. A história bíblica da enteada de Herodes, filha de Heródia, que, por despeito amoroso, pediu a cabeça do profeta Yokaanan (João Batista) exposta numa bandeja de prata, resulta em espetáculo ‘queer’ avant la lettre. Figurinos que misturam vanguarda e adereços kitsch (na cabeça de Salomé vemos micro-e-reluzentes bolinhas que parecem retiradas de árvore natalina) se somam a interpretações de exagero paroxístico.
Os guardas do tetrarca Herodes parecem saídos de um ballet da Paris dos anos de invenção cubista. A presença de homens negros é de tal exotismo que chega a constranger.
O filme, de 72 minutos, ainda assim, constitui-se em exultante curiosidade. Sua alma “queer” (Nazimova, diva homoafetiva da era muda hollywodiana) lhe empresta poder de atração especialíssima em nosso tempo de afirmação identitária. E o protagonismo magnetizante da diva russa, de origem judia, nascida na simbólica Yalta-Crimeia (palco de reunião histórica de Churchill, Roosevelt e do anfitrião Stálin) justifica esse reencontro com a vanguarda cinematográfica dos distantes (e subversivos) anos vinte (do século passado).
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