CineBH transforma-se em palco de “Diógenes” e protesto contra projeto-de-lei antipovos originários do Peru
Foto: “Diógenes”, de Leonardo Barbuy © Andres Ernesto Jimenez Suarez
Por Maria do Rosário Caetano, de Belo Horizonte-MG
O cineasta Leonardo Barbuy, diretor de “Diógenes”, longa-metragem que representa o Peru na competição latino-americana da Mostra CineBH, viveu uma sexta-feira movimentada na capital mineira. Além de apresentar e debater seu filme na Sala Humberto Mauro do Palácio das Artes, ele participou de seminário e das atividades do Brasil CineMundi, evento que discute oportunidades de coprodução entre países da América Latina e Europa.
No começo da noite, ao lado da produtora peruana Enid “Pink” Campos e junto a produtores e realizadores latino-americanos, Leonardo participou de “ato em defesa da diversidade linguística e cultural” do cinema de seu país.
Como os argentinos, os peruanos fizeram do recém-concluído Festival de San Sebastián, na Espanha, palco de protesto contra ameaças sofridas por suas cinematografias. Os primeiros protestam contra a candidatura de Javier Milei à presidência da República. Filiado à extrema-direita, o candidato já avisou: se eleito colocará em prática seu projeto econômico ultraliberal e acabará com o INCAA (Instituto Nacional de Cinema e Artes Visuais), organismo que vem fomentando o desenvolvimento do cinema na pátria de Ricardo Darín. Registre-se que a Argentina é o único país latino-americano laureado com dois Oscar de melhor filme internacional (”História Oficial” e “O Segredo dos seus Olhos”).
Os peruanos protestaram em San Sebastián, poderosa vitrine europeia, e agora em Belo Horizonte. A razão deles também tem a ver com fomento à sua cinematografia e com temores advindos da força crescente de políticos de direita. No caso, a parlamentar Adriana Trudela, da frente Avanza País. Ela deseja modificar a recente Ley del Cine, aprovada depois de anos de debate, pois um de seus artigos estimula a produção de filmes em línguas indígenas ou originárias. Não só no idioma oficial do Peru, o espanhol.
Trudela entende que tal como estão dispostos os mecanismos de fomento, há “desperdício de recursos com filmes que privilegiam guetos de populações específicas e marginais”. Se o projeto-de-lei da parlamentar, apresentado junto com dois colegas (Alejandro Cavero e Patricia Chirinos), for aprovado, filmes falados em quéchua, aymara e outras línguas originárias da nação peruana não poderão mais receber fomento do Estado.
O próprio “Diógenes”, de Leonardo Barbuy, seria impedido de obter recursos para sua produção, pois é integralmente falado em quéchua e ambientado nas montanhas de Ayacucho. Seus três protagonistas são indígenas.
Outros filmes peruanos – como “Retábulo” e “A Passageira” (este com Magali Soller, do premiado “La Teta Asustada”), lançados no circuito comercial brasileiro, e “Wilkaq Pirqa”, “Um Mundo sem Julius” e “Wiñaypacha” – seriam impedidos de solicitar recursos financeiros ao Estado.
Oitocentos diretores, produtores e técnicos cinematográficos do Peru criaram, para travar combate contra o projeto, o movimento “Em Defesa do Cinema Peruano”. Desde então, combatem sem descanso (em foros internos e em festivais no exterior) a proposta de Adriana Trudela, atualmente em análise na Comissão de Economia do Congresso Nacional do Peru. Que, registre-se, conta (junto com México, Guatemala, Bolívia e Equador) com a maior população de origem indígena da América Latina.
O movimento “En Defensa del Cine Peruano” se posiciona em suas páginas nas redes sociais, com discurso sintético e veemente: “Esse projeto-de-lei se opõe diretamente ao cinema em línguas originárias”, por isso “violenta o reconhecimento da pluralidade étnica e cultural de nossa Nação, tornando vulnerável a Declaração Universal da Unesco e a Declaração da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre os direitos dos Povos Indígenas”.
Depois de assistir ao protesto-performance comandado pelos peruanos na CineBH, o público assistiu ao filme “Diógenes”, um dos favoritos ao Prêmio Horizonte da competição Território, a principal do festival mineiro.
Fotografado em preto-e-branco, com imagens que evocam as imortalizadas por Martín Chambi (Puno, 1891-Cuzco, 1973), “Diógenes” soma realidade e sonhos (ou fantasmagorias) de três moradores de lugar ermo e solitário, escondido nos Andes peruanos. Pai (Jorge Pomacanchari), o Diógenes do título, e seus filhos Sabina (Gisela Yupa), de 11 anos, e Santiago (Cleber Yupa), de seis, vivem do pouco que ganham com a venda de tábuas pintadas (las tablas de Sarhua). Sempre cercados pelos cães domésticos.
Diógenes evoca a memória de seu povo em suas pinturas. Vai ao povoado vendê-las, ou melhor, trocá-las por querosene (para o lampião) e alguns itens necessários à modesta alimentação familiar. Um dia, ele não acorda. Os filhos esperam, por três noites, que o pai abra os olhos. Como isto não acontece, eles enterram o corpo de Diógenes. Sem a figura paterna, a pré-adolescente e o irmão menor terão que continuar vivendo. Sobrevivendo.
O filme, que contou com coprodução colombiana e francesa, vem destacando-se em festivais como o de Málaga, na Espanha, Guadalajara, no México, e Toulouse, na França. Tem chances de ser laureado com um dos quatro prêmios da CineBH (melhor filme, personalidade/presença, prêmio técnico, prêmio da Crítica-Abraccine). Até seu roteiro original foi premiado no famoso “Concurso de Guiones Inéditos” do Festival del Nuevo Cine Latinoamericano de la Habana.
A maioria dos candidatos ao Troféu Horizonte do festival mineiro é composta de documentários. Caso do paraguaio “Guapo’y”; dos chilenos “Outro Sol” e “A Sombra da Luz”; do argentino “Moto”; do cubano “Llamadas desde Moscú” e do brasileiro “Toda Noite Estarei Lá”. Ficção, só o peruano “Diógenes” e o colombiano “Puentes en el Mar”.
A presença chilena na CineBH é das mais vistosas. O país andino ocupa quatro vagas nas mostras Território e Continente. Entre os latino-americanos, trata-se do único país com dois títulos selecionados para a primeira edição da mostra competitiva mineira.
Em seus primeiros 16 anos, a mostra belo-horizontina focou nos temas do mercado cinematográfico e da coprodução entre Brasil, países latino-americanos e europeus. A partir deste ano, preservando integralmente o segmento Brasil CineMundi-Mercado, o festival transformou-se na maior vitrine brasileira do cinema latino-americano (foram mostrados 22 longas-metragens, a maioria hispano-americana).
“A Sombra da Luz”, documentário observacional das primas Isabel Reys Bustos e Ignacia Merino Bustos, nos conduz a envolvente imersão em pequeno lugarejo na zona rural chilena (Charrúa), que passa a conviver com imensa central elétrica. A empresa é responsável pela distribuição de energia para outras regiões do país. Gigantescos transformadores alimentam a termoelétrica e passam a interferir no dia a dia dos moradores. Estes, porém, não desfrutam de iluminação em boa parte das ruas de seu vilarejo.
Um menino inquieto da outrora bucólica Charrúa passa a viver suas pequenas aventuras nas cercanias da onipresente e imensa usina elétrica. Ele monta armadilhas para pegar coelhos, nada no riacho, enfim, vive seus sonhos miúdos naquele mundo em transformação.
Um locutor de rádio soma notícias e músicas rancheiras. E vê-se obrigado a explicar as razões de recentíssima ausência do ar: falta de energia elétrica!!!
A natureza mostra-se (ainda) viva com seus animais (atentas corujas, cães de olhos apichatponguianos, pássaros) e sua paisagem vegetal. Mas a usina, portadora de sofisticada engenharia técnico-industrial, parece indiferente a tudo. Inclusive às grandes transformações que provocou (e continuará provocando) na paisagem física e humana da região.
Com sutileza e imagens mais sensoriais que informativas, as primas-documentaristas desenham o contraste entre o mundo da potente indústria de energia elétrica e o dia-dia dos moradores do pequeno povoado.