Mostra CineBH transforma-se em vitrine e maior pólo irradiador do cinema latino-americano no Brasil
Foto: Cena de “El Reino de Diós”, de Cláudia Sainte-Luce © Jaqueca Films
Por Maria do Rosário Caetano, de Belo Horizonte-MG
Quatro longas-metragens vindos do México, Paraguai, Chile e Colômbia marcaram a abertura das duas principais mostras do Festival CineBH, que prossegue em oito telas da capital mineira (de centros culturais à Praça da Liberdade) até domingo, primeiro de outubro.
Na mostra principal – a competitiva Território – serão exibidos (e os melhores premiados com o Troféu Horizonte) oito longas vindos de sete países (porque o Chile conquistou vaga dupla). No segmento Continente, de caráter informativo, serão exibidos mais 14 filmes. Um total de 22 longas-metragens vindos da América Hispânica para somar-se à América Lusitana.
Tal abundância de títulos transforma o festival mineiro na maior vitrine, em solo brasileiro, do audiovisual do subcontinente. Maior que o Festival do Rio (que outorga o Troféu Fipresci a filmes latino-americanos), que a Mostra Internacional de Cinema São Paulo, que o Cine Ceará (de recorte ibero-americano) e que o Festival de Gramado. Registre-se: o evento gaúcho, que conta com Soledad Villamil, atriz argentina e musa de Luís Fernando Verissimo, em sua trinca curatorial, abriu mão, este ano, de sua competição hispânica (mas promete retomá-la ano que vem. Será?)
Na manhã de ontem (27 de setembro), os curadores das mostras Território e Continente (Cleber Eduardo, Ester Marçal Fér e Leonardo Amaral) mantiveram debate dos mais francos com a imprensa e o público. Admitiram que foi “difícil (impossível) encontrar um filme brasileiro 100% inédito” para a nascente competição latino-americana da Mostra CineBH. Afinal, o Festival do Rio realmente passou o rodo. Com sua rede, o evento carioca pescou longas ficcionais e documentais de todos os cantos geográficos (e propostas estéticas) do país.
O escolhido para representar o Brasil na Território foi o batido (e já premiado) “Toda Noite Estarei Lá”, das capixabas Suellen Vasconcelos e Tati Franklin (protagonizado pela carismática cabeleireira transexual Mel Rosário).
Por que não se escolheu, para a competição, o excelente documentário “Nada sobre meu Pai”, de Susanna Lira, que estabelece fértil diálogo entre o Brasil e a América Andina?
A cineasta carioca cresceu sem conhecer o pai, nascido e criado no Equador. Um dia, provavelmente fugindo de período ditatorial no país andino, ele veio dar com os costados no Rio de Janeiro. Engravidou a namorada brasileira, mas desapareceu da vida de ambas. Já diretora reconhecida por muitos filmes (como “Torre das Donzelas”) e séries (“Adriano, o Imperador” e “Casagrande”), Susanna resolveu buscar o pai na América Andina. O resultado é um filme apaixonante.
A própria diretora, que participa da CineBH (na mostra Continente) orgulha-se de dizer que este é seu “melhor filme”. Está certa.
Antes de enunciar a resposta da trinca curatorial belorizontina, vale conhecer inquietação de Susanna Lira. Ela percebeu que, depois do Festival É Tudo Verdade, no qual estreou, o interesse dos festivais brasileiros por seu filme mais pessoal minguou.
“Em breve vamos participar do Festival de Documentários do Equador” – conta a cineasta – “e todos os meus ‘pais’ vão assistir ao filme (ela se refere aos homens hispano-americanos que poderiam ser seu pai biológico). Temos mais convite para festivais internacionais que brasileiros”.
Susanna levanta outra questão que a tem inquietado: “algumas pessoas já vieram me dizer que esse negócio (tema) de buscar o pai já deu”. Sabe o que eu respondi? ‘Pode ter dado para você, que teve pai, mas não para mim, que não conheci o meu”. E mais, diz com firmeza: “meu filme é dedicado à minha mãe. Fiz esse filme por (para) ela e por mim”.
Em nome da trinca de curadores, Cleber Eduardo justificou a não-escolha de “Nada sobre meu Pai” para a competição da CineBH: “nossa seleção se fez, pelo Regulamento, com a escolha de filmes de jovens realizadores, aqueles que estão no primeiro, segundo ou, no máximo, terceiro longa. Como Susanna Lira realizou mais de dez filmes, não poderia estar na competição. Mas a prova de nosso interesse pelo documentário ‘Nada sobre meu Pai’ está em sua seleção para a Mostra Continente, esta sim, mais aberta em sua abrangência. Nela estão também diretores com longa trajetória no cinema, como o argentino Raul Perrone e a mexicana Cláudia Sainte-Luce”.
Cleber Eduardo aproveitou a oportunidade para destacar o longa colombiano “Utopia”, de Laura Gómez Hincapié, também selecionado para a mostra Continente, lembrando o que ele tem em comum com o filme brasileiro-equatoriano de Susanna: a relação pai e filha. No caso do filme de Laura, um pai real, que viveu o sonho revolucionário de uma América Latina livre (ao que tudo indica o mesmo sonho do pai desconhecido da carioca). No caso brasileiro, um pai ausente.
No documentário vindo da Colômbia, ficamos sabendo que, depois de uma vida inteira juntos, Laura decide conversar com o pai Fernando sobre militância política e os movimentos libertários dos anos 1960. O diálogo geracional permitirá à filha-cineasta encontrar pistas para entender suas próprias utopias e ideais diante do que recebeu do pai. Ela poderá rever o passado e redefinir o presente. Inclusive a memória de Fernando, que vai se esvaindo com o passar do tempo.
“Utopia” foi um dos quatro filmes inaugurais do segundo dia da Mostra CineBH. O primeiro – dia de festa e entrega do Troféu Horizonte ao cineasta Rafael Conde e à atriz Yara de Novaes (ambos do longa “Zé”) – foi marcado pela dissonância política. Um manifestante solitário tachou de “mentiroso” o ator Caio Horowicz, que interpreta o protagonista absoluto de “Zé” (o militante político José Carlos Novais da Mata Machado, morto aos 27 anos nos porões da ditadura militar). Horowicz, formado pela Escola de Arte Dramática da USP (em greve pela contratação de novos professores), de 27 anos, como o Zé que ele interpretou, não perdeu a calma e deu uma verdadeira aula de civilidade. Educadamente prosseguiu com sua fala politizada e solidária (tanto com aqueles que tombaram vítimas da ditadura, quanto com os grevistas uspianos).
Os outros três filmes latino-americanos da CineBH foram assistidos pela Revista de CINEMA. Dois integram a Competição Território: o paraguaio “Guapo’y”, de Sofia Paoli Thorne, e “Outro Sol”, do chileno Francisco Rodríguez Teare. O outro na Continente (o mexicano “El Reino de Diós”, de Cláudia Sainte-Luce).
Os três filmes têm muitas qualidades e comprovam o que a trinca curadora afirmou na conversa com a imprensa e o público: o identitarismo não se sobrepôs à qualidade estética dos filmes.
O curador Cleber Eduardo enfatizou “a abertura das propostas (temáticas, estéticas, etárias e de representatividade) visíveis na Mostra Continente”. E garantiu que houve momento em que ele, Ester e Leonardo pensaram em rechear a mostra informativa só com filmes assinados por nomes femininos. Mas, no frigir dos ovos, concluíram que “nem todos os longas-metragens dirigidos por mulheres somavam as qualidades estéticas buscadas”. Optou-se então, por mostra sem a hegemonia do recorte feminino.
Mesmo assim, a presença feminina na programação do festival aproxima-se dos 40%. Tanto que três dos filmes exibidos no segundo dia da CineBH traziam assinaturas de realizadoras-mulheres. Caso do citado “Utopia”; do paraguaio “Guapo’y” e de “El Reino de Diós”. Comecemos por esta pequena joia mexicana, selecionada pela mostra Generation, do Festival de Berlim. Sim, aquela destinada a filmes voltados à infância e à adolescência.
O filme mexicano só não entrou na competição – temos que deduzir – porque sua diretora Cláudia Sainte-Luce é uma realizadora “veterana” (ou prolífica). O IMDb registra dez títulos em seu currículo (a maioria de longa duração).
Como diz o título do sintético filme de Cláudia, a trama vai desenvolver-se no “Reino de Deus”. Neimar (o carismático, encantador e rechonchudo Diego Armando Lara Lagunes) tem oito anos e submete-se, com seus coleguinhas, às aulas de Catecismo. Os que forem aprovados (bem doutrinados) farão a primeira comunhão. Ele vive com a mãe e a avó num fim de mundo mexicano e ama cavalos e éguas que participam de corridas. Não dá bola para futebol (mas o filme encantará boleiros brasileiros com saborosa sequência, que aqui não será revelada). No dia de seu primeiro encontro com Deus (pela hóstia sagrada) Neimar espera “sentir” em seu corpo a força do Todo-Poderoso. Os infortúnios que virão a interpor-se na vida humilde do menino permitirão o encontro com o Divino?
Só vendo (atenção, distribuidores brasileiros!) para saber. Mas dá para adiantar que, atrás de um filme de aparência juvenil, estão reflexões agudas sobre a vida social e religiosa em Nuestra América católica (atualmente, já nem tão católica assim). Sem esquecer característica que Luís Buñuel (de dupla cidadania espanhola e mexicana) dizia ser constitutiva dos habitantes (em especial os machos) da pátria de Zapata e Pancho Villa: o culto às armas de fogo.
“Guapo’y” (o nome de árvore muito importante no espaço geográfico que ambienta o filme) é outra pequena joia assinada por nome feminino, a paraguaia (nascida no Peru) Sofía Paoli Thorme. Ele estreou no poderoso IDFA (Festival Internacional de Documentários de Amsterdã), que o laureou como “opera prima” (diretor estreante), e passou por outros festivais internacionais.
O verdejante guapo’y, que batiza o filme, fornecia sombra (e sementes) aos encarcerados pela longeva ditadura Strossner (1954-1989) no Peñal Emboscada, situado em Itá, a duas horas de distância da capital Assunção. Lá a militante política Celsa Ramírez Rodas foi presa e deu à luz seu filho. Ela, que perdeu o marido, também militante político, vítima da repressão strossneriana, transformou-se, depois de sua libertação, em ativista dos Direitos Humanos. Mas que ninguém espere um filme marcado pela retórica política.
A cineasta peruano-paraguaia, que contou com assessoria criativa de Paz Encina (“Hamaca Paraguaya”) e Martha Andreu (produtora de “Oleg and The Rare Arts”), realizou um filme sensorial, de falas secas e potentes. E fez da relação de Celsa, talentosa harpista, com a Natureza (e plantas curativas) a sua força-motriz. Mas sem cair no formalismo estéril. Estão lá, nas frestas contextualizadoras, todas as cicatrizes políticas herdadas dos 35 anos em que Alfredo Strossner governou com mão de ferro, o país hispânico-guarani.
“Guapo’y” se fez representar, na CineBH, pela produtora argentina Gabriela Cueto, qualificadíssima para responder a todas as perguntas do público (no debate que se seguiu à exibição do filme na Sala Humberto Mauro, no Palácio das Artes). E o público ficou encantado (e tomado por ânimo “perguntador”) com “Guapo’y”. Apreciou, em especial, a interpretação que Celsa faz da guarânia “Índia”, em arranjo erudito para sua harpa paraguaia.
O filme chileno “Outro Sol” é um documentário de tema explosivo: o roubo, por originários do Chile, de objetos de arte sacra em templos europeus. Espanhóis, no caso principal. O cineasta Francisco Rodríguez Teare trabalha com premissa perturbadora: “os chilenos seriam os melhores ladrões do mundo”. E “cultivariam tal vocação com certo orgulho”.
Quem quiser, que aceite esta premissa. O filme, sem ser explícito, a incorpora em narrativa que mescla ficção e casos reais (em especial o roubo da Catedral de Cádiz, na Andaluzia espanhola, ocorrido na década de 1980). No centro deste roubo espetacular estava o chileno Alberto Cándia.
Um dos atores do filme, o jovem Iván Cáceres, oriundo de favela de Santiago, interpreta aprendiz de ladrão, ao lado de colega também jovem. Coube a ele representar o filme na CineBH e debatê-lo com o público. Contou que sua carreira como ator desabrochou depois de “Outro Sol” e “Meus Irmãos Sonham Acordados”. E que está estudando Cinema, pois além de ator, quer ser diretor e roteirista. E ironizou a “fama de ladrões” de seu conterrâneos. “Nada mais fazemos que resgatar o ouro que os colonizadores roubaram de nossos países”.
Um apêndice às reflexões curatoriais da Mostra Cine BH: Cleber Eduardo, em resposta à questão levantada pelo distribuidor Sandro Fiorini, da FiGa Filmes – este constatara a presença de “poucos filmes da América Central e Caribe” na CineBH –, avisou que, tão logo termine a décima-sétima edição do festival mineiro, ele e seus parceiros Ester e Leonardo já começarão a buscar novos filmes para a edição de 2024.
“Este ano” – assegurou o curador – “mergulhamos na plataforma Festival Scope, que nos permitiu ver centenas de filmes”. Mas, “conhecemos o olhar (ou recorte) europeu sobre os filmes nela contidos”. Além das inscrições, “vindas em maior número de países da América do Sul, que da América Central e Caribe, estamos abertos a novas fontes de filmes”. Como “nossa competição é nova, ela receberá mais inscrições à medida que o tempo for passando e a CineBH tornar-se mais conhecida e reconhecida”.
A se julgar pela qualidade dos primeiros filmes exibidos nas mostras Território e Continente, os festivais brasileiros de recorte ibero e latino-americano terão que rebolar para superar a ousadia qualitativa e quantitativa da Mostra CineBH.
Nasce, enfim, entre nós um festival de cinema vocacionado a ser fulgurante vitrine do cinema contemporâneo latino-americano. Uma mostra que soma temas políticos e sociais a procedimentos estéticos renovados e instigantes.
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