Mostra SP serve de vitrine a favoritos ao Oscar de melhor filme internacional
Foto: “Ervas Secas”, de Nuri Bilge Ceylan
Por Maria do Rosário Caetano
Quem vai ganhar o Oscar de melhor filme internacional em 2024?
Quem acompanhou a “Safra da Estatueta” (dourada, assexuada e careca) na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo teve chance de assistir ao filme que lidera a lista de favoritos – o britânico “Zona de Interesse”, de Jonathan Glazer, baseado em romance de Martin Amis.
Antes de prosseguir com a lista de favoritos apresentada pela maratona paulistana, façamos um breque indagador: o que está fazendo um filme britânico na lista de finalistas ao Oscar internacional?
Todo mundo que acompanha a disputa promovida pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood sabe que EUA-Reino Unido-Austrália-e-Nova Zelândia formam um conjunto – o dos países anglo-saxões, portanto de expressão inglesa – que tem vaga garantida na categoria principal – melhor filme (é assim que acontece há mais de 90 anos).
Quem fala o idioma de Shakespeare já sai em ampla vantagem. Para o resto do planeta – Europa, Ásia, África e América Latina – resta brigar por uma disputadíssima vaga (são apenas cinco) no “Oscar internacional”, categoria que já foi conhecida como Oscar de produções em língua estrangeira e, depois, “melhor filme estrangeiro”.
Pois o Reino Unido, com seu Film 4 (e Channel 4), fez, com parceiros (EUA e Polônia), uma jogada de mestre: produziu um sólido longa-metragem falado integralmente em alemão, com atores germânicos (incluindo a talentosíssima Sandra Hüller, “a filha de Tony Erdmann”), embora baseado em narrativa de um dos grandes escritores britânicos (Martin Amis, que morreu um dia antes do filme ser exibido – e depois premiado – no Festival de Cannes, em maio último).
Por ser integralmente falado na língua de Goethe, “Zona de Interesse” pôde ser inscrito pelo Reino Unido na categoria “filme internacional” (em tempos de xenofobia tornou-se politicamente incorreto falar em filme “estrangeiro”). As chances do longa-metragem de Jonathan Glazer são realmente imensas. A originalidade de sua trama traz “frescor” (palavra cabível nesse contexto?) ao surrado filão dos filmes sobre o nazismo e a perseguição aos judeus.
Como não ver originalidade na história de um casal nazista (Christian Friedel, o militar Rudof Höss, e sua esposa Sandra Hüller), que mora em ampla, confortável e ajardinada casa ao lado do campo de concentração de Auschwitz. O pai da numerosa e ariana família germânica, que parece saída de um comercial de margarina, é fiel a Hitler. Höss comanda o campo de extermínio. Veremos poucas suásticas ao longo dos 106 minutos da narrativa. E poucos, raros, uniformes listrados dos judeus. Vez ou outra um deles irá prestar algum serviço (compulsório) ao doce lar do comandante. O extermínio promovido pelo Terceiro Reich será visto por densas nuvens de fumaça escura que saem dos crematórios nazistas.
As chances de “Zona de Interesse” são tão grandes que ele deve figurar, inclusive, na lista principal (a dos concorrentes a melhor filme). Se isto acontecer, ele repetirá o desempenho de outra produção europeia que uniu muitos parceiros ano passado e triunfou no Oscar internacional – “Nada de Novo no Front”, de Edward Berger.
E “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça, o representante brasileiro na disputa pelo Oscar, tem alguma chance?
O belo documentário pernambucano, com vivências e memórias cinéfilas do diretor de “Aquarius” e “Bacurau”, será obrigado a enfrentar um caminho de pedras dos mais íngremes. A concorrência é poderosa. A começar por “Ervas Secas”, de Nuri Bilge Ceylan, mais uma obra de tirar o fôlego do realizador turco. O filme dura quase quatro horas. Isto é um impedimento? Parece que não, pois com a chegada das plataformas de streaming, fazer filme longo, longuíssimo, já não constitui problema (vide “Assassinos da Lua das Flores”, de Scorsese). E há precedente – “Drive my Car”, do japonês Ryusuke Hamaguchi, era imenso e foi laureado com a estatueta internacional.
Sobre “Ervas Secas”, mais um filme situado por seu genial criador nos cafundós da Anatolia, um registro: se ele chegar a finalista ao Oscar e conseguir derrotar “Zona de Interesse” (este sobre temática-fetiche da Academia de Hollywood – a tragédia do Holocausto), quem sairá ganhando é o Oscar. Como é que um diretor de obra monumental e apaixonante como a de Ceylan ainda não foi reconhecido? Ele e o chinês Jia Zhang-Ke são nomes incontornáveis do cinema contemporâneo.
O novo filme de Hamaguchi (“O Mal Não Existe”) foi preterido na escolha da Academia Japonesa. A vaga ficou com “Perfect Days”, do alemão Wim Wenders. Um filme 100% japonês, faz-se necessário frisar, que rendeu a Palma de Ouro de melhor ator ao astro nipônico Koji Yakucho (“A Enguia”, “Dança Comigo?”, “Tampopo” e “Babel”). Ele interpreta um zelador de banheiros e o filme vem causando sensação por onde passa. Está entre os títulos mais cotados para uma das cinco vagas ao Oscar internacional.
Outra escolha que causou espanto (se é que a japonesa assim o fez!) foi a francesa. O país dos Lumière trocou o vencedor da Palma de Ouro (“Anatomia de uma Queda”, de Justine Triet, que abriu a Mostra SP) por um “culinária movie” – “La Passion de Dodin Bouffant”, do vietnamita Tran Ang Hung.
A Academia gaulesa preferiu apostar em trunfos conhecidos. Primeiro, a presença de Juliette Binoche, que guarda um Oscar em seu lar parisiense. Segundo: no poder de sedução planetária da culinária francesa, razão de Estado em terra gaulesa. E terceiro, no charme vietnamita de Tran Ang Hung. Afinal, o discreto cineasta oriental encantou a Academia com seu filme mais famoso – “O Cheiro da Papaya Verde” (que, em 1993, concorreu ao então Oscar estrangeiro). Para não dizer que a França cuspiu no prato do cinema feminino (e poderoso) de Justine Triet, “Anatomia de uma Queda” está cotado para a categoria principal (melhor filme, ao lado dos poderosos “Oppenheimer” e “Assassinos da Lua das Flores”).
Outro filme bem cotado para a lista de finalistas ao Oscar internacional é “Folhas de Outono”, do finlandês Aki Kaurismaki. Com legião de fãs conquistada na Mostra SP, que o exibiu em sessões lotadas, essa pequena obra-prima do realizador nórdico integra a série “Proletários” (em deriva para o “Precariado”). Concebida como uma trilogia, a série cresceu. Já temos uma tetralogia. Os anteriores são “Sombras no Paraíso” (1986), “Ariel” (88) e “A Moça da Fábrica de Fósforos” (90). Trinta e três anos depois, ele volta ao mundo dos trabalhadores. Em “Folhas de Outono”, os protagonistas (Alma Pöysti e Jussi Vatanen) vivem uma história de amor minimalista, devotada ao culto ao cinema e à melancolia. Eles se esfalfam em trabalhos precários, sem direitos sociais assegurados (daí o termo “precariado”). Suas existências se resumem ao trabalho duro, a uma alimentação e lazer precários. Ele tempera sua rotina miserável com muito álcool. Ela, que teve um pai alcoólatra, prefere viver sozinha, a viver ao lado de contumaz bebedor de vodka. Mesmo apaixonada por ele. Com muitas citações ao cinema (e a Chaplin), dois atores excepcionais, diálogos econômicos (e geniais), Kaurismaki realiza uma pequena maravilha. Irresistível. Venceu o Prêmio do Júri em Cannes e chega em breve ao streaming (MUBI).
A América Latina, além de “Retratos Fantasmas”, conta com dois candidatos que não devem ser ignorados, já que são muitas as suas qualidades. O primeiro deles é o argentino “Os Delinquentes”, de Rodrigo Moreno. O filme está em cartaz nos cinemas brasileiros e é imperdível. Quem começa a vê-lo (ele dura 3h08’), pensa tratar-se de um filme que seguirá pelos caminhos de “O Clã”, o vigoroso filme de Pablo Trapero. Mas não. “Os Delinquentes” de Moreno, que também integra a cartela da MUBI, são dois bancários de cara comum, bem ordinária, que todo dia saem, de terno, para dar duro numa instituição financeira. E em troca de modesto salário. Um deles resolve roubar 800 mil dólares do banco que o emprega. E acabará por envolver o colega.
Esse é o ponto de partida, pois o que virá, depois, é uma surpreendente história de vida de dois homens comuns que sonhavam trocar ternos sem grife e dura labuta com dinheiro alheio, por uma existência feliz. De preferência no campo, nadando em águas cercadas de saudável vegetação e bafejada por ar puro. E, se possível, experimentar novas aventuras amorosas. Roteiro esperto, com dois grandes e fascinantes flashbacks. A Argentina tem, mais uma vez, um concorrente a se notar. O país platino conta com dois Oscar na estante e ano passado ficou entre os finalistas com o Darín movie “1985”.
O outro país latino-americano com um Oscar na estante (por “Uma Mulher Fantástica”) é o Chile. E ele marca presença com um belo concorrente: “Los Colonos”, de Felipe Gálvez Harbeale, premiado em Cannes (na mostra Un Certain Regard).
Em 97 sintéticos minutos, Gálvez realiza poderoso painel da conquista de novas terras (nas lonjuras da Tierra del Fuego) a mando de insaciável latifundiário chileno (Alfredo Castro). Para dizimar povos originários do lugar (indígenas, claro!), ele contrata um mercenário norte-americano e um imprudente tenente britânico, que se farão acompanhar por mestiço de pele castanha, destaque por sua boa pontaria.
Os brancos se sentirão, naquele Chile do comecinho do século XX, como “civilizadores” de “selvagens. E dar-se-á a carnificina. O filme atinge os mesmos objetivos de “Assassinos da Lua das Flores”. Ou seja, constitui-se em potente retrato do extermínio de indígenas, tratados como “bestas” e empecilhos ao “progresso” trazido pelos “civilizados” colonizadores.
A Mostra SP apresentou, também, outro filme latino-americano que merece atenção: “A Ereção de Toríbio Bardelli”, do peruano Adrián Saba. Suas chances são pequenas na corrida pelo Oscar estrangeiro. Mas vale assisti-lo, pois tem distribuição garantida no Brasil (pela Livres) e nasceu de parceria entre produtores do Peru e do Brasil. E traz Lucélia Santos, de 66 anos, contracenando com um dos maiores atores do país andino – Gustavo Bueno, de 71. Quem conhece os três melhores filmes de Francisco Lombardi – “La Ciudad y los Perros” (baseado em livro de Vargas Llosa), “A Boca do Lobo” e “Caídos del Cielo” – sabe do que Bueno é capaz.
O ator interpreta Toríbio Bardelli, viúvo septuagenário que tem uma obsessão – ter uma ereção. Consome pílulas azuis, frequenta prostíbulos, contrata garotas de programa, faz o possível e o impossível. Ele é pai de uma moça cega, de uma jornalista que conversa com a mãe morta e de um varão que passou por transplante de coração. Pai e filhos não se entendem. A família é disfuncional em larga medida e eles vivem trocando impropérios e pequenas agressões. Um dia, um antigo amor de Toríbio (Lucélia Santos, que víramos em foto da juventude admirada pelo septuagenário viúvo) aparece em Lima para visitá-lo. Uma coroa sexagenária e bonita. Será com ela que ele terá a sonhada ereção?
O filme que começa num prostíbulo, com cenas picantes e música dolente-erótico vai transformar-se em envolvente história de pessoas que, ao viver o luto pela perda da esposa-mãe, tentarão entender o estranho desejo do pai e a si mesmas.
O australiano “Shayda”, de Noora Niasari , também exibido pela Mostra, figura entre os principais favoritos ao Oscar internacional. Sua protagonista é uma mãe iraniana, que encontra refúgio em abrigo para mulheres no país dos cangurus.
Depois de fugir de sua terra de origem e pedir o divórcio a Hossein, seu marido, Shayda luta para manter rotina de normalidade com Mona, sua filha de seis anos. Com a proximidade do Nowruz, o Ano Novo persa, ela se anima com a possibilidade de recomeçar uma nova vida. Só que um juiz concede o direito de Hossein visitar a filha. E ele ressurge na vida de Shayda. E cresce o temor da refugiada de que o ex-marido tente levar Mona de volta para o Irã.
Como se vê, a Austrália, anglo-saxã, também busca vaga no Oscar com filme que tem uma língua estrangeira (o farsi ou persa) como idioma dominante. Sua diretora é iraniana, radicada na Austrália, e o filme tem a poderosa Sony como distribuidora.
Outro postulante a uma vaga entre os finalistas ao Oscar é o romeno “Não Espere Muito do Fim do Mundo”. Seu diretor, o anarquista Radu Jude, já ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim com o instigante e obrigatório “Má Sorte no Amor ou Pornô Acidental”. Seu novo filme, o escolhido pela Academia Romena, é doidaço, criativo, desbocado, instigante e muito politizado. Um retrato alucinado e desmedido de nossos tempos de cacofonia e polarização digital. Apimentado com ingredientes sexuais. Dura 2h43’. Não deve cativar os integrantes da Academia, que parecem preferir filmes de narrativa mais clássica, humanista, organizada e assexuada. Há muito palavrão no filme de Radu. Mas bem que um pouco de loucura, como a do indomável romeno, faz bem ao cinema. E aos espectadores.
SAFRA OSCAR 2024:
. “Ervas Secas”, de Nuri Bilge Ceylan (Turquia)
. “Zona de Interesse”, de Jonathan Glazer (Reino Unido)
. “La Passion de Dodin Bouffant”, de Tran Ang Hung (França)
. “Perfect Days”, de Wim Wenders (Japão)
. “Folhas de Outono”, de Mika Kaurismaki (Finlândia)
. “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho (Brasil)
. “Os Delinquentes”, de Rodrigo Moreno (Argentina)
. “ Los Colonos”, de Felipe Gálvez Harbeale (Chile)
. “Lo Capitano”, de Matteo Garrone (Itália)
. “A Ereção de Toribio Bardelli”, de Adrián Saba (Peru)
. “The Teachers’ Lounge”, de Ilker Çatak
. “Oponente”, de Milad Alami (Suécia)
. “Não Espere Muito do Fim do Mundo”, de Radu Jude (Romênia)
. “The Peasants”, de DK e Hugh Welchman (Polônia)
. “Four Daughters”, de Kaouther Ben Hania (Tunísia)
. “The Promised Land”, de Nikolay Arcel (Dinamarca)
. “Terra de Deus”, de Hlynur Pálmason (Islândia)
. “The Monk and The Gun”, de Pawo Chouning Dorji (Butão)
. “Voy! Voy! Voy”, de Omar Hilal (Egito)
. “Tótem”, de Lula Avilés (México)
. “A Sociedade da Neve”, de J.A. Bayoma (Espanha)
. “Mal Viver”, de João Canijo (Portugal)
. “Um Homem”, de Fabián Hernandez (Colômbia)
. “Álbum de Família – Temas Próprios”, de Guillermo Rocamora (Uruguai)
. “O Visitante”, de Martin Boulovo (Bolívia)
. “Tito, Margot e Eu”, de Mercedes Árias e Delfina Vidal (Panamá)
. “Leal 2 – Comando Yaguateté”, de Armando Aquino e Maurício Rial (Paraguai)
. “2018”, de Jude Anthany Joseph (Índia)
. “House for Beginners”, de Goran Stolevski (Macedônia do Norte)
. “Four Souls of Coyote”, de Aron Gaudério (Hungria)
. “Thunder”, de Carmen Junquier (Suíça)
. “Excursão”, de Una Gunjak (Bósnia e Herzegovina)
. “Lições de Blaga”, de Stephan Komandarev (Bulgária)
. “Devagar”, de Marija Kavtaradze (Lituânia)
. “Fotofobia”, de Ivan Ostrochovský e Pavol Pekarcík (Eslovaquia)
. “Irmandade da Sauna a Vapor”, de Anna Hints (Estonia)
. “Cidadão Santo”, de Tinatin Kajrishvili (Geórgia)
. “Bons Sonhos”, de Ena Sendijarevic (Holanda)
. “Tiger Stripes”, de Amanda Nell Eu (Malásia)
. “20 Dias em Mariupol”, de Mstyslav Chernov (Ucrânia)
. “Glorious Ashes”, de Bui Thais Chuyen (Vietnã)
. ”Bye, Bye Tiberias, de Lina Soualem (Palestina)
EXIBIDOS NA MOSTRA SP:
. “Ervas Secas”, de Nuri Bilge Ceylan (Turquia)
. “Folhas de Outono”, de Aki Kaurismaki (Finlândia)
. “Los Colonos”, de Felipe Gálvez Harbeale (Chile)
. “Não Espere Muito do Fim do Mundo”, de Radu Jude (Romênia)
. “Shayda”, de Noora Niasari (Austrália)
. “A Ereção de Toribio Bardelli”, de Adrián Saba (Peru)
. “Oponente”, de Milad Alami (Suécia)
. “Excursão”, de Una Gunjak (Bósnia e Herzegovina)
. “Lições de Blaga”, de Stephan Komandarev (Bulgária)
. “Fotofobia”, de Ivan Ostrochovský e Pavol Pekarcík (Eslovaquia)
. “20 Dias em Mariupol”, de Mstyslav Chernov (Ucrânia)
. “Irmandade da Sauna a Vapor”, de Anna Hints (Estonia)
. “Cidadão Santo”, de Tinatin Kajrishvili (Geórgia)
. “Devagar”, de Marija Kavtaradze (Lituânia)
. “Bons Sonhos”, de Ena Sendijarevic (Holanda)
. “Tiger Stripes”, de Amanda Nell Eu (Malásia)