Festival de Gostoso apresenta 26 filmes, na praia do Maceió, em telão a céu aberto
Foto: “Saudade Fez Morada Aqui Dentro”, de Haroldo Borges
Por Maria do Rosário Caetano
Os espectadores da décima edição da Mostra de Cinema de Gostoso têm uma certeza: não sofrerão com as temperaturas abrasivas dessa primavera, que só terminará dia 22 de dezembro. Afinal, todas as sessões do festival acontecerão, como nos anos anteriores, num imenso cinema a céu aberto, na Praia do Maceió, cartão postal do município de São Miguel do Gostoso. Por situar-se no ponto em que “o vento faz a curva”, o balneário potiguar carrega o título de “capital do kitesurf” e de outros esportes eólico-marítimos.
Para celebrar sua primeira década de existência, a Mostra de Cinema de Gostoso, que acontece dessa sexta-feira, 24 de novembro, até dia 28, vai exibir nove longas-metragens e 17 curtas escolhidos pelos curadores Eugenio Puppo e Matheus Sundfeld.
A dupla, que festeja a chegada de um novo patrocinador, a septuagenária Petrobras, selecionou os filmes sob diretriz norteadora do festival potiguar desde sua criação: “priorizamos filmes brasileiros independentes, capazes de dialogar com o público de São Miguel do Gostoso e destacar questões prementes da contemporaneidade”. E sem esquecer o aspecto regional: “temos produções vindas de 11 unidades da Federação”.
Quatro dos longas selecionados estarão na disputa pelo Troféu Luís da Câmara Cascudo (tributo ao grande folclorista potiguar). Outros quatro participam da Mostra Panorama (de caráter informativo) e um, o derradeiro – o belo e fascinante “Samuel e a Luz”, de Vinicius Girnys – da noite de encerramento e entrega de prêmios.
Na sessão inaugural da Mostra de Gostoso será exibido, no telão da Praia do Maceió, um curta mato-grossense “As Marias”, de Danton Lacerda, e o longa baiano “Saudade Fez Morada Aqui Dentro”, de Haroldo Borges. Este filme vem causando sensação por onde passa. Tudo começou em 2022, quando sagrou-se vencedor do Festival de Mar del Plata, feito que o Brasil não realizava desde 1969, quando o festival argentino laureou “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade. Depois do prêmio no país hermano, “Saudade” triunfou na Mostra Rumo, do Festival do Rio. No começo deste mês, recebeu dois prêmios na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O primeiro veio da plataforma Netflix, que o programará em 190 territórios. O outro, o Paradiso, ajudará em sua distribuição no circuito cinematográfico (salas físicas).
E, afinal, o que é que esse filme baiano tem? Acima de tudo, uma história comovente. Bruno (Bruno Jefferson), garoto de 15 anos, vive em um meio machista, preconceituoso e violento. Ele, que fazia vista grossa para seu entorno, terá que mudar seu comportamento, pois doença degenerativa começa a impor limites aos seus olhos. Portanto, ao essencial sentido da visão. Em sua travessia da adolescência, o garoto será obrigado a enxergar a vida com outros olhos.
Os três concorrentes que disputam com o filme baiano o Troféu Cascudo chegam de Minas Gerais (“O Dia que te Conheci”, de André Novais Oliveira) e, em dose dupla, do Ceará (“Estranho Caminho”, de Guto Parente, e “Quando Eu me Encontrar”, de Amanda Pontes e Micheline Helena).
O longa mineiro resulta em sintética e cativante história de amor entre Zeca, um bibliotecário (o ator Renato Novaes, irmão do diretor) e Luísa (Grace Passô), uma funcionária da escola que os emprega. No caso do rapaz, a situação engrossa e ele é dispensado. Motivo: “seguidos atrasos”. Remédios ingeridos para debelar quadro de depressão seriam a razão da imensa sonolência, causa dos frequentes atrasos do rapaz. Durante 71 minutos, André Novais, da produtora Filmes de Plástico (nascida em Contagem), constrói narrativa marcada por pequenas surpresas e banhada por seu saboroso senso de humor. Um filme que faz bem à alma do espectador.
“Estranho Caminho” é o longa mais elaborado e desafiador de Guto Parente, um dos criadores do Coletivo Alumbramento, hoje desmembrado em algumas produtoras cearenses. A trama soma realidade e imaginação, borrando fronteiras. O jovem David (Lucas Limeira) regressa a Fortaleza, partindo de Lisboa, onde se radicou, para apresentar seu novo filme num festival. Mal chega e a pandemia do coronavírus se espalha. Vem o lockdown. Desnorteado (o festival foi adiado e os vôos de regresso a Portugal interrompidos), o rapaz não sabe a quem recorrer. Resolve procurar o pai, o excêntrico Geraldo (Carlos Francisco, de “Marte Um”), com quem mantinha relação trincada e distante.
O que acontecerá dali em diante há de impressionar (intrigar) os espectadores. As imagens da diretora de fotografia Linga Acácio são arrebatadoras e, assim como a trama, nos confundem. O que é real? O que é onírico?
O filme conquistou quatro prêmios no Festival de Tribeca-NY (melhor realização, melhor ator para Carlos Francisco, melhor roteiro e fotografia).
“Quando Eu me Encontrar” é a promissora estreia no longa-metragem das roteiristas Amanda Pontes e Micheline Helena (elas roteirizaram o ótimo “A Filha do Palhaço”, de Pedro Diógenes). A atriz baiana Luciana Sousa, do Bando de Teatro Olodum, interpreta Marluce, uma mãe que sofre com o repentino desaparecimento da filha mais velha, Dayane (voz de Larissa Goes).
Cada um dos principais personagens do filme vive o desaparecimento ao seu modo. A filha mais nova de Marluce, Mariana (Pipa), enfrenta problemas na escola. O companheiro abandonado por Dayane, o jovem vendedor de sapatos Antônio (David Santos), não se conforma com o desaparecimento da noiva e tenta, descompensado, entender o que aconteceu.
Na trilha sonora de “Quando Eu me Encontrar”, além da cena musical cearense, brilham duas canções de Chico Buarque e parceiros – “Trocando em Miúdos” e “ Uma Canção Desnaturada”. Ambas cumprem importante papel dramático. Especialmente a “Canção Desnaturada”, que servirá a mais um show de interpretação interiorizada de Luciana Sousa.
Os curadores Eugenio Puppo e Matheus Sunfeld traçam a base conceitual da Mostra Panorama: “destacamos filmes que apostam na pesquisa das fronteiras da linguagem audiovisual e na pluralidade de abordagens dos debates da atualidade”.
Para este ano foram escolhidos “A Flor do Buriti”, produção luso-brasileira dirigida por Renée Nader Messora e João Salaviza, “Pedágio”, da paulista Carolina Markowicz, “Sem Coração”, dos pernambucanos Nara Parente e Tião, recriado, agora com atores, a partir de premiadíssimo curta (de animação) de mesmo nome, e “Tudo o que Você Podia Ser”, do mineiro Ricardo Alves Jr. Esta programação informativa se fará acompanhar de sete curtas-metragens.
Os quatro longas da “Panorama” serão exibidos no recém-criado Espaço Petrobras, sob tenda coberta e climatizada, em formato geodésico, localizada também nas areias da Praça do Maceió. Se o cinema ao ar livre pode abrigar mais de 800 espectadores, a tenda recebe média de 80 pessoas. Todas as atividades são gratuitas.
Além da exibição de 26 filmes, a Mostra de Cinema de Gostoso promoverá debates, seminários, oficinas e concorrido Working in Progress comandado pelo BrLab (debate e aperfeiçoamento de filmes em fase de estruturação de roteiro e produção). E, mais uma vez, prestará atenção especial à formação da prata da casa, o coletivo Nós do Audiovisual.
O grupo tem como integrantes jovens moradores de São Miguel do Gostoso e adjacências (zona rural e distritos vizinhos). Eles aprendem ofícios cinematográficos e já realizaram dezenas de curtas-metragens. Tais produções são as mais mobilizadoras do festival potiguar. A população delira ao ver suas histórias e seus amigos ou vizinhos no gigantesco telão ao ar livre, na caliente Praia do Maceió.
Esse ano, além da ficção “Maremoto”, de Cristina Lima e Juliana Bezerra, será exibido um documentário que narra a trajetória do próprio coletivo. O nome não poderia ser outro, “Nós do Audiovisual”. Serão 20 minutos de rememoração de história curta, mas importante da trupe. Na direção, mais duas mulheres, Maísa Tavares e Clara Leal.
Os dados da parte pedagógico-formadora das oficinas ligadas ao festival e ao coletivo Nós do Audiovisual são eloquentes. Em sua primeira década, o evento somou 148 jovens alunos de São Miguel do Gostoso e arredores em seus cursos. Eles frequentaram 52 oficinas e, o que mais impressiona, produziram dois ou três curtas-metragens por ano.
A terceira turma dos Cursos de Formação Técnica e Audiovisual realizou, em 2023, seus novos trabalhos, após frequentar oficinas ministradas pelos professores Rodrigo Almeida, Daniel Rone e Guilherme Xavier Ribeiro. Este último, integrante da Cooperativa Oeste de Cinema, teve (e tem) muito a intercambiar com os moradores de São Miguel do Gostoso, pois seu coletivo (o Oeste) vem desenvolvendo significativo trabalho no interior de São Paulo, fixando a cidade de Assis como base.
MOSTRA COMPETITIVA (longas)
O Dia que te Conheci – ficção, 70 min, MG, 2023, 14 anos – Direção: André Novais Oliveira
Estranho Caminho – ficção, 83 min, CE, 2023, 12 anos – Direção: Guto Parente
Quando Eu me Encontrar – Ficção, 77 min, CE, 2023, 10 anos – Direção: Amanda Pontes e Michelline Helena
Saudade Fez Morada Aqui Dentro – Ficção, 110 min, BA, 2022, 12 anos – Direção: Haroldo Borges
MOSTRA PANORAMA (longas)
Crowrã (A Flor do Buriti) – Ficção, 124 min, TO, 2023, Livre — Direção: Renée Nader Messora e João Salaviza
Pedágio – Ficção, 101 min, SP, 2023, 14 anos – Direção: Carolina Markowicz
Sem Coração – Ficção, 93 min, PE, 2023, 14 anos. Direção: Nara Normande e Tião
Tudo o que Você Podia Ser – Ficção, 82 min, MG, 2023, 12 anos – Direção: Ricardo Alves Jr.
CURTAS-METRAGENS (competição)
Quinze quase Dezesseis — Ficção, 20 min, SP, 2023, Livre – Direção: Thais Fujinaga
A Edição do Nordeste – Doc. , 20 min, RN, 2023, 12 anos – Direção: Pedro Fiuza
Lapso – Ficção, 24 min, MG, 2023, 10 Anos – Direção: Caroline Cavalcanti
Cabana – Ficção, 14 min, PA, 2023, 12 anos – Direção: Adriana de Faria
As Marias – Doc., 16 Min, MS, 2023, Livre – Direção: Dannon Lacerda
Moventes – Ficção, 11 Min, RN, 2023, Livre – Direção: Jefferson Cabral
Navio – Ficção, 11 Min, RN, 2023, Livre – Direção: Alice Carvalho, Larinha R. Dantas e Vitória Real
MOSTRA PANORAMA (curtas-metragens)
Cama Vazia – Doc., 6 min, SP, 2023, 14 anos – Direção: Fábio Rogério e Jean-Claude Bernardet
Diálogos Indígenas do Nosso Tempo – Doc., 26 min, RN, 2023, Livre – Direção: Gustavo Guedes
Engole o Choro – Ficção, 11 min, SP, 2023, Livre — Direção: Fabio Rodrigo
Ramal — Ficção, 16 min, MG, 2023, 14 anos – Direção: Higor Gomes
Thuë Pihi Kuuwi – Uma Mulher Pensando – Doc. , 9 min, RR, 2023, Livre – Direção: Aida Harika Yanomami, Edmar Tokorino Yanomami E Roseane Yariana Yanomami
Última Vez Que Ouvi Deus Chorar – Ficção, 20 min, MG, 2023, Livre – Direção: Marco Antonio Pereira
SOLMATALUA – Doc., 15 min, SC, 2023, Livre – Direção: Rodrigo Ribeiro-Andrade
ENCERRAMENTO
Mãri Hi – A Árvore do Sonho – Doc., 17 min, RR, 2023, Livre – Direção: Morzaniel Ɨramari
Samuel e a Luz – Doc., 70 min, SP, 2023, 12 anos – Direção: Vinícius Girnys
MOSTRA COLETIVO NÓS DO AUDIOVISUAL
Nós do Audiovisual – Doc. , 20 min, RN, 2023, Livre – Direção Maisa Tavares e Clara Leal
Maremoto – Ficção, 20 min, RN, 2023, Livre – Direção Cristina Lima e Juliana Bezerra