“Peréio, Eu te Odeio”, “A Planta” e “Pulmão de Pedra” causam furor no Festival Aruanda
Foto: “Peréio, Eu te Odeio”, de Allan Sieber e Tasso Dourado
Por Maria do Rosário Caetano, de João Pessoa-PB
Três filmes mexeram com o público da décima-oitava edição do Festival Aruanda do Audiovisual Brasileiro, que entrega seus troféus aos vencedores de suas quatro competições na noite dessa quarta-feira, seis de dezembro.
O que provocou mais risadas e cumplicidade do público foi o longa documental “Peréio, Eu te Odeio”, de Allan Sieber e Tasso Dourado. É forte candidato ao prêmio do Júri Popular.
Outro documentário – “A Planta”, de Beto Brant –, exibido em caráter hors concours, também mobilizou o público por sua apaixonada defesa do uso medicinal da cannabis sativa. A planta, cujo nome popular varia de maconha a marijuana, de erva maldita a bendita (dependendo do ponto de vista), deveria motivar debate de sintéticos 15 minutos. Durou três vezes mais. A plateia entrou em sintonia fina com um dos personagens do filme, Cassiano Teixeira, presidente da Abrace Esperança, organização da sociedade civil sediada em João Pessoa, que defende o uso medicinal do canabidiol. E que presta assistência a 45 mil famílias.
O terceiro filme a encantar o público foi o documentário paraibano “Pulmão de Ferro”, de Torquato Joel. Em apenas 14 minutos, o cineasta nos apresenta um personagem apaixonante – o poeta popular “compulsivo-espontâneo” e, também, garimpeiro solitário, Joãozinho –, que vemos metido em loca de mina de cassiterita (ou mica) nos arredores de Nova Palmeira, município paraibano de apenas 5 mil habitantes. O curta, por suas qualidades, arrebatadora beleza visual e por seu tema relevante (a doença do pulmão de ferro, que acomete trabalhadores em busca de tal minério) deve ser o grande vencedor do Fest Aruanda. No recém-concluído Cine Ceará, ele conquistou o Prêmio Canal Brasil, Prêmio da Crítica (Abraccine) e roteiro (do Júri Oficial). Por total merecimento, pois Torquato, diretor dos longas “Ambiente Famíliar” (2019) e “Corpo da Paz” (em finalização), faz de “Pulmão de Pedra” um filme tão arrebatador quanto “Transubstancial” (sobre a poesia de Augusto dos Anjos).
“Peréio, Eu te Odeio” tem um forte rival pela frente – o documentário “Othelo – O Grande”, de Lucas H. Rossi, sobre a trajetória do ator Grande Otelo. Este resulta em filme-tributo a Sebastião Prata, menino preto de Uberlândia, em Minas Gerais, que um dia deixou sua família adotiva e partiu (para não mais voltar) com uma trupe mambembe. Conquistou palcos de teatros e cassinos, cantou e dançou nos mais badalados cenários, trabalhou com Orson Welles e Werner Herzog, e tornou-se protagonista de chanchadas e dramas sociais cinemanovistas.
Já Paulo César de Campos Velho, o Peréio, nasceu em Alegrete, no Rio Grande do Sul, e radicou-se no eixo Rio-São Paulo para fazer teatro e, principalmente, cinema. Brilhou em clássicos do Cinema Novo (“Os Fuzis” e “Terra em Transe” são os pontos mais luminosos). E também em blockbusters como “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, de Hector Babenco, e “Eu Te Amo”, de Arnaldo Jabor. E filmes underground como “Bang Bang”, de Andrea Tonacci, e pornochanchadas (como “O Bom Marido”).
“Peréio, Eu te Odeio” foi concebido há 23 anos, pelo cartunista e cineasta gaúcho Allan Sieber. Mas não chegava a termo. Malucão como seu protagonista, Sieber nunca se dava por satisfeito. E sua trupe na produtora Toscographics se desagregou.
Eis que entra em cena um jovem baiano, de nome Tasso Dourado, com muitos serviços prestados à TV, como montador (ou editor). Fã de Peréio, de quem se aproximou quando o ator aceitou participar de um videoclipe de sua (de Tasso) banda musical, interpretando uma hilária e irreverente velha, das mais doidonas.
O baiano foi atrás de Allan Sieber disposto a concluir o filme. De cara, impôs sua condição: montaria o material coletado ao longo de quase duas décadas e produziria novas entrevistas. Seria fiel ao espírito do projeto original, mas em troca exigia liberdade total. Não aceitaria veto do cartunista-cineasta.
Pacto firmado, Tasso caiu na estrada. E encontrou o produtor ideal, Camilo Cavalcanti (não confundir com o cineasta pernambucano). Além de profissional escolado na produtora LC Barreto, Camilo dirigiu, com Natália Dias, o documentário “Belchior – Apenas um Coração Selvagem”. Ou seja, um cara talhado para enfrentar adversidades, já que Belchior sempre fôra uma pessoa de temperamento difícil. E errâncias, mistérios existenciais e herdeiros complicadíssimos. Um peregrino festejado, post mortem, com a promessa de três ou quatro projetos de longas-metragens e séries. Só Camilo concluiu o seu.
Tasso começou sua jornada gravando depoimento do próprio Allan Sieber, que narrou, com sua irreverência herdada de Peréio, a gênese de seu sonhado (mas inconcluso) longa documental. E o baiano botou o pé na estrada. Entre os melhores depoimentos que ele colheu está o do ator Stepan Nercessian. Que dramatiza subida dos dois, ele e Peréio, ao morro, para compra de ativos sensoriais. Stepan, montado numa moto, só queria deixar o ator e amigo na boca de fumo, mas os dois acabaram pegos, quando tentavam dar “um teco” numa carreira de pó branco. Pegos no ato, receberam ordem de prisão. Para se saber o final da história, só assistindo ao delirante relato do Bereco de “A Rainha Diaba”.
Impressionante, também, é o depoimento da atriz e ex-mulher de Peréio, Cissa Guimarães. Um dos filhos do casal (são dois, Thomaz e João Velho) lembra de ouvir contar que o pai, Peréio, incendiara o Túnel Rebouças. Cissa detalha a loucura incendiária de forma detalhada. Peréio pegou o carro dela e subiu o morro em busca de novos aditivos. O automóvel foi mal estacionado e, com o freio avariado, caiu sobre a caixa de luz que clareava o túnel. Resultado, pane total, imenso engarrafamento. Até aulas foram suspensas.
Para compor os 100 minutos da narrativa assinada por Sieber e Tasso, foram utilizadas imagens de 60 filmes de longa, média e curta-metragem, nos quais Peréio foi protagonista (ou coadjuvante) e aos quais emprestou sua poderosa voz de locutor. Voz que sofreu forte abalo, quando grave acidente de carro o vitimou. Perdeu os dentes e seu maxilar sofreu danos irreparáveis. A voz sedutora e aliciante que encantava os publicitários já não era mais tão requisitada.
O louco ator-locutor iniciava, depois das trágicas consequências do dia em que arrebentou o carro num obstáculo, seu crepúsculo profissional. Hoje, aos 83 anos, vive no Retiro dos Artistas, instituição dirigida pelo amigo Stepan Nercessian.
“A Planta” é a segunda incursão de Beto Brant no universo da cannabis sativa. A primeira aconteceu anos atrás, quando o Governo de Pepe Mujica legalizou a venda da maconha em seu país, o Uruguai. O cineasta, autor do formidável “O Invasor”, foi até lá conhecer o que se passava no pequeno, mas atrevido e progressista, país sul-americano.
O que Beto viu e documentou deu origem ao filme “La Planta” (2014, 50 minutos, disponível no YouTube). Os dois documentários são bem diferentes. “O primeiro” – explica Beto Brant – “mostra a regulamentação do plantio e do uso da maconha no Uruguai e a intenção primeira do Governo Mujica, que era tirar o poder financeiro do tráfico” e, assim, “combater a violência”. Tais propósitos, na avaliação do cineasta, não incluíam o uso medicinal da cannabis, nem estimulou “o fomento de pesquisas científicas em universidades”.
Já o brasileiro “A Planta” tem outro propósito: dar voz a pais, médicos e associações (como a paraibana Abrace Esperança), que buscam no óleo da cannabis o conforto para várias doenças. Os depoimentos colhidos pelo cineasta são impressionantes. Ele filmou em Minas Gerais, São Paulo (capital e Marília) e em João Pessoa. Só lamenta a ausência de Sidharta Ribeiro que, baseado no Rio Grande do Norte, tem assumido importante papel na defesa do uso e da pesquisa da cannabis sativa.
O público, que dirigiu muitas perguntas ao cineasta e ao presidente da Abrace Esperança, quis saber se “A Planta” seria distribuído nos cinemas e em redes de streaming como a Netflix, a Amazon ou a Globoplay.
Beto afirmou que as grandes plataformas de streaming ainda não mostraram interesse pelo filme. E que, infelizmente, são muito grandes os preconceitos e restrições ao assunto por ele abordado, mesmo que com foco na saúde, na medicina e na pesquisa. Há restrições, também, no Parlamento, em universidades (exceção especial para Unifesp, UFMG e poucas outras), nos meios de comunicação e em diversos segmentos sociais. “Sensibilizar o público é nosso maior objetivo”, postulam o documentarista paulistano e o diretor da Abrace, o paraibano Cassiano Teixeira.
Se não conseguir colocar “A Planta” numa grande plataforma de streaming, Beto Brant vai dialogar com Bruno Wainer, diretor da plataforma Aquarius, criada para difundir filmes do nicho saúde e bem-estar.
Durante o debate, Cassiano Teixeira disse que ficaria muito feliz se o presidente Lula assistisse ao documentário “A Planta” numa sessão mensal, com convidados, no Cineminha do Palácio da Alvorada, reinaugurado recentemente com o longa ficcional “Saudosa Maloca”, de Pedro Serrano. A sala de cinema da residência niemárica do presidente foi reequipada e modernizada pela Abraplex (Associação dos Exibidores Brasileiros de Complexos Cinematográficos). Mas não se sabe se Lula e Janja, anfitriões do Cine Alvoradinha, terão coragem de enfrentar o conservadorismo brasileiro e assistir a um documentário que abraça a luta pela pesquisa científica e uso medicinal da cannabis.
FLASHES ARUANDEIROS
. GONZAGA DE LUCA – A gigantesca tela da sala Macro XE da rede Cinépolis Manaíra é o palco vespertino e noturno de todas as sessões do Festival Aruanda. Nas primeiras edições, o evento aconteceu em sala modesta num shopping situado próximo à UFPB. Depois migrou para o auditório do Hotel Tambaú (hoje de portas cerradas e paralisado por imbróglio judicial). Chegaria ao seu terceiro palco – o Espaço Itaú, de Adhemar Oliveira, onde aconteceram três ou quatro de suas 18 edições. Até encontrar duradoura guarida na rede mexicana e em seu imenso telão. Comandada por Luiz Gonzaga De Luca, a Cinépolis estabeleceu sólida parceria com o Aruanda. Este ano, De Luca recebeu prêmio especial para marcar tal parceria. O seu Troféu Aruanda foi entregue pelo governador do Estado, João Azevedo. Conhecido como “o intelectual da exibição”, o diretor brasileiro da empresa mexicana , oriundo dos quadros da Embrafilme, é doutor em cinema pela USP e autor de vários livros. Sua especialidade é o cinema digital.
. SOIA LIRA – TROFÉU HOMENAGEM – A atriz paraibana Soia Lira recebeu um Troféu Aruanda por sua imensa dedicação ao teatro e ao cinema. Oriunda de Cajazeiras, onde se iniciou no teatro nos tempos “em que andava de calcinha pelas ruas” (ou seja, na infância, em grupo chamado Mickey), ela agregou-se com irmãos e amigos ao Coletivo Terra, que gerou o espetáculo “Beiço de Estrada” (Eliezer Rolim, década de 1980). Como a peça circulou pelas grandes capitais brasileiras no Projeto Mambembão, da Funarte, a fama do grupo cresceu. Depois do Terra, veio a experiência no Grupo Piolim, comandado por Luiz Carlos Vasconcelos. E um novo sucesso se fez notar – “O Vau da Sarapalha”. No cinema, Soia atuou em vários curtas e longas. E por seu trabalho em “Pacarrete”, ganhou o Troféu Kikito de melhor atriz coadjuvante no Festival de Gramado. Os paraibanos se referem aos irmãos Soia, Buda, Nanego e Bertrand Lira, todos artistas, como a “Lirolândia de Cajazeiras”. A atriz homenageada integra o júri da competição nacional do Aruanda com os colegas Rafael Conde e Beto Brant.
. QUATRO ATRIZES – Quatro integrantes de elencos de filmes que participam das quatro competições do Aruanda (curta e longa nacional; curta e longa nordestino) chamaram atenção do público e da crítica e responderam a diversas perguntas nos debates matinais do evento. Caso da mineira Zora Santos, do longa “Levante”; da carioca de origem grega Helena Varvaki, do curta “O Presente”; da brasileiro-francesa Bianca Joy Porte, de “Citrotoxic”, e da paraibana Mayara Santos, de “Flora, a Mãe do Rei”. Zora, de 70 anos, interpreta a tia de uma das atletas da equipe de vôlei que protagoniza o filme paulistano-periférico (direção de Lillah Halla). A atriz, que trabalhou com Joaquim Pedro de Andrade, em “Os Inconfidentes”, e com Walter Lima Jr, em “Chico Rey”, foi escolhida para atuar em “Levante” depois de ser vista em espetáculo-tributo a Itamar Assumpção, concebido por sua conterrânea (e amiga) Grace Passô. Já Helena, de meia-idade, cruzou seu destino com os da diretora Ursula Marini na Rede Globo. Senhora do ofício da representação, a filha de pais gregos presta serviços à emissora do Jardim Botânico na área da preparação de atores. Com a pandemia, Ursula resolveu contar a história de uma atriz, chamada Pillar Vitória, que se entrega de corpo e alma à composição da personagem Hécuba, protagonista de uma das tragédias de Ésquilo. Mas o projeto sofre solução de continuidade e Pillar, sozinha em sua casa, precisa se recuperar da dolorosa perda profissional-emocional. Bianca Joy interpreta uma aeromoça que leva a filha, uma criança asmática, para temporada num aprazível sítio, mas é surpreendida por venenos pulverizados em imenso laranjal. Por fim, o público viu o talento promissor da jovem Mayara Santos, aluna de teatro da UFPB, que interpreta, em “Flora, a Mãe do Rei”, justo a genitora de Jackson do Pandeiro. Mulher pobre, que enviuvou muito cedo, Dona Flora trabalhava na roça e inseminava no filho o amor por danças e ritmos nordestinos, em especial o côco.
. PARCERIA ANIMADA – O cineasta mineiro Saulo Leite participa do Fest Aruanda com o curta-metragem “José Sette Cinema Infernal”, mix de documentário e animação. Autor de quatro livros sobre Cinema Animado, diretor do Festival MUMIA de Animação e professor da escola de cinema de Cataguases, em Minas Gerais, ele está envolvido com a realização de seu primeiro longa-metragem — “O Filho da Puta”. Trata-se de obra dirigida a oito mãos — as dele, as de Tânia Anaya, Otto Guerra e Érika Maradona. O quarteto conta a história de um garoto, filho de uma prostituta, que sonha conhecer seu pai. Para dar voz ao menino, foi escalado o cineasta Gabriel Martins, o Gabito (diretor de “Marte 1”). Outras vozes terão intérpretes conceituados. A mãe do “filho da puta” será Zora Santos. Adyr Assunção fará (o possível) pai do garoto. E Matheus Nachtergaele dará voz a um cachorro. O filme ficará pronto em 2024. E Sávio conta que, findo “O Filho da Puta”, ele vai dedicar-se a projeto que acalanta há anos: uma versão animada do romance “O Amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos.
. NÚCLEO REFLEXIVO – Os seminários do Fest Aruanda estão mobilizando o público de forma significativa. O primeiro discutiu a série “Cangaço Novo” com o cineasta Fábio Mendonça e seis dos atores paraibanos presentes na trama (entre eles, Marcélia Cartaxo, que interpreta a tia dos Vaqueiros, Ubaldo, Dinorah e Dilvânia, os protagonistas). O segundo encontro prestou tributo a Silvino Santos e seu centenário documentário “Amazonas, o Maior Rio do Mundo”, desaparecido desde os anos 1930, e reencontrado na Cinemateca Tcheca, meses atrás. A descoberta rendeu matéria no The Guardian britânico e excelente reportagem no Jornal Nacional, na TV Globo. Com ricas imagens e depoimentos internacionais e brasileiros (a tcheca Klara Trstová, Jay Weissberg, curador italiano do Festival de Cinema Mudo de Pordenone, e o brasileiro Sávio Stocco). Nessa quarta-feira, o núcleo reflexivo traz mais dois eventos. Primeiro, debate sobre “Cinema e Ditadura: Interfaces da da Estética e da Política na Produção Brasileira”, que terá três filmes como pontos de partida: “Nada Sobre Meu Pai”, de Susanna Lira, “Zé”, de Rafael Conde, e “Destino Brasília – Vinte Anos Depois”, de Kalyne Almeida, Leandro Cunha e Sandro de França. Para o debate, além dos cineastas, foram convocados os professores Kristal Bibona, da Universidade de San Diego, na Califórnia, e Rodrigo Freire, da UFPB. Fechando o ciclo, haverá debate com Geraldo Vandré. Será exibido e discutido documentário de média-metragem, que o tem como protagonista, realizado em 1973, por emissora de Tv, de Munique, na Baviera alemã.