“Eu, Capitão” e “A Sala dos Professores”, candidatos ao Oscar internacional, estreiam nos cinemas
Foto: “Eu, Capitão”, de Matteo Garrone
Por Maria do Rosário Caetano
Os cinco candidatos ao Oscar Internacional estarão, a partir dessa quinta-feira, 29 de fevereiro, disponibilizados para fruição do público brasileiro, graças à estreia (tardia, mas em tempo hábil) do italiano “Eu, Capitão”, de Matteo Garrone, e “A Sala dos Professores”, de Ilker Çatak.
“Dias Perfeitos”, o filme japonês do alemão Wim Wenders, vem de temporada de pré-estreias e faz, também, sua estreia oficial nessa quinta-feira.
O britânico-polonês “Zona de Interesse”, de Jonathan Glazer, segue sua trajetória nos cinemas (já foi visto por 110 mil espectadores brasileiros). E o espanhol “A Sociedade da Neve”, de José Antonio Bayona, passou rapidamente pelos circuito exibidor, para fixar-se na grade da Netflix. O diretor assegura que o filme já foi visto por 100 milhões de espectadores, nos 190 países atingidos pela poderosa rede de streaming, e quase 500 mil nas salas de cinema da Espanha.
Três dos candidatos a melhor filme estrangeiro têm relações com a Alemanha. “Zona de Interesse”, “A Sala dos Professores” e “Dias Perfeitos”. O primeiro é protagonizado por dois atores germânicos – Sandra Hüller e Christian Friedel – e falado em alemão. Afinal, embora inspirado livremente em romance homônimo do britânico Martin Amis, a trama se passa em aprazível casa ajardinada, onde o oficial alemão Rudolf Höss, representante do governo nazista, gerencia um campo de concentração. E vive a “normalidade” de uma existência burguesa com a esposa e filhos. Enquanto densa fumaça emerge de chaminés, pois fornos crematórios são o instrumento de extermínio de prisioneiros.
O filme continua cotado para vencer na categoria internacional. Afinal, seus produtores são os mesmos de “Nada de Novo no Front”, de Edward Berger, vencedor do ano passado (na mesma categoria) – trupe anglo-saxã, com ótimas relações com a Academia de Hollywood e descobridora de filão promissor – a realização de filmes ambientados fora do mundo de expressão inglesa, respeitando o idioma original dos protagonistas. Tanto “Zona de Interesse”, quanto “Nada de Novo no Front” são falados na língua de Goethe.
A força do filme de Jonathan Glazer é tamanha que ele tem mais quatro indicações (melhor filme na categoria principal, diretor, roteiro adaptado e som). Nenhum dos outros quatro concorrentes chegou perto.
Como “Anatomia de uma Queda”, de Justine Triet (cinco indicações, incluindo melhor filme), não foi escolhido pela França para representá-la na categoria internacional, só o filme espanhol “A Sociedade da Neve”, entre os que disputam o Oscar internacional, conseguiu mais uma indicação: melhor “cabelo e figurinos”.
Épico rodado nos Andes, entre Argentina e Chile, o filme de Bayona se passa na década de 1970 e registra a luta, em condições muito adversas, pela vida de jogadores de rúgbi, oriundos do Uruguai, que estavam a caminho de Santiago do Chile. Depois de trágico acidente, que partiu ao meio a aeronave que os transportava, os sobreviventes tiveram que unir-se em fraterna “Sociedade da Neve” e, assim, planejar o enfrentamento da fome (que incluiu o canibalismo) e do frio. Bayona tratou o assunto sem nenhum sensacionalismo e realizou seu melhor filme.
“A Sala dos Professores”, produção 100% germânica, traz na direção um realizador alemão (de origem turca) e, como protagonista, uma jovem professora, a idealista Carla Nowak (Leonie Beneschi). Além de seus alunos, com destaque especial para o carismático Oskar (Leonard Stettniisch). Leonie Beneschi, registre-se, atuou no poderoso “Fita Branca” (Michael Haneke, Palma de Ouro em 2009).
Escrito por Ilker Çatak e Johannes Duncker a partir de memórias dos tempos de Liceu, o filme soma temas de imensa relevância no mundo contemporâneo – a relação dos alemães com imigrantes e seus filhos (em especial, os turcos), as fake news e a invasão de privacidade. Uma professora tem direito de usar uma câmara escondida para tentar descobrir quem está furtando dinheiro de integrantes do corpo docente?
E os alunos podem transformar entrevista de uma dedicada professora, que passa por complexo processo de estresse, para expô-la à execração pública?
“A Sala dos Professores” resulta em um belo filme, um sólido drama moral, gênero em que os alemães costumam se destacar. Vide “A Vida dos Outros” (Floriam Henckel von Donnersmarck, 2006, premiado com o Oscar internacional, o Bafta e o César).
O cineasta Wim Wenders marca o profundo vínculo de “Dias Felizes” com a Alemanha, já que ele nasceu em Dusseldorf, 78 anos atrás. Apaixonou-se pelo cinema japonês e, em especial, pela obra de Yasujiro Ozu (1903-1963). Embora alguns de seus filmes mais importantes sejam alemães (“Alice nas Cidades”, “Asas do Desejo”), Wenders é um globe-trotter (“Paris Texas”, “Buena Vista Social Club”, “O Sal da Terra”). Sem esquecer suas homenagem a Ozu (“Tóquio Ga”, 1985).
“Tóquio Ga” pode ser tomado como singelo exercício cinematográfico, realizado como tributo a um mestre. Wenders viaja à capital japonesa em busca do “espírito” de um de seus cineastas favoritos, passados 20 anos de sua morte. Mas, ao invés de encontrar a essência (a alma) do diretor de “Era Uma Vez em Tóquio” e “A Rotina Tem seu Encanto”, o admirador germânico depara-se com uma metrópole feérica tomada pelo desejo da acumulação material.
“Dias Perfeitos” deve muito a Ozu. Seu protagonista, o zelador de banheiros públicos Hirayama (Koji Yakusho, de “A Enguia” e “Dança Comigo”), é uma pessoa singular.
O ator, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes por seu magistral desempenho, dá vida a este faxineiro de quem pouco sabemos. Temos, sim, conhecimento de seu tempo presente. Ele é metódico, acorda cedo, toma seu café, veste o macacão e, ao volante de uma van, ruma para o trabalho. O faz ouvindo rock anglo-saxão. Limpa os banheiros com abnegada dedicação. Na hora de comer, o faz próximo a árvores, que fotografa com câmara antiquada. Saberemos também que ele gosta de ler. O que induz a supor que é dono de um passado distante do ofício de limpador de banheiros.
Sutilmente, Wenders nos mostrará que Hirayama não é um homem vindo das camadas populares. Uma sobrinha o visita para conversa corriqueira. Ele é calmo, dedicado à contemplação. Ela traz a pressa da pré-adolescência. Outra visita, a de irmã rica e estressada – ela chega a bordo de carro luxuoso – não levará o diálogo a bom termo.
O filme, que ganhou também o Prêmio do Júri Ecumênico em Cannes, vem encantando plateias pelo mundo afora. Para os admiradores de Ozu, Wenders conseguiu mostrar, a seu jeito, que a rotina tem mesmo seu encanto. E que ela sedimenta a sensibilidade contemplativa de Hirayama, que pode ter sido executivo de uma grande empresa, estressado e infeliz.
Depois de abandonar o mundo competitivo e empregar-se como faxineiro, ele passou a dedicar-se à sua ascese cotidiana, limpando os banheiros high tech de Tóquio. Alguns, até cobertos por vidros translúcidos, que tornam-se opacos quando o usuário se acomoda em seu interior. Altíssima tecnologia, segmento em que o Japão não brinca em serviço.
Das estreias dessa quinta-feira, a mais fascinante é “Eu, Capitão”. Quem viu “Gomorra” (2008) e “Dogman” (2018) sabe que Matteo Garrone faz cinema social de significativa relevância. Se faz da máfia italiana seu tema, não a representa pelos poderosos chefões, mas pelos bagrinhos que compõem a base da cadeia criminosa. “Dogman” também é um zé ninguém, que trabalha em pet shop na periferia de Roma. Nutrido por sentimento de vingança incontrolável, ele decidirá torturar, por horas, ex-boxeador que amedrontava o bairro esquecido.
“Eu, Capitão” – que rendeu ao cineasta o Leão de Prata de melhor diretor, em Veneza 2023, e a seu protagonista Seydoux Sarr, o prêmio de ator revelação – escolhe dois adolescentes senegaleses como personagens centrais.
Seydoux e Moussa (apelido de Moustapha Fall) são primos e sonham deixar sua cidade natal para tentar, como cantores de rap, a sorte na Itália. Trabalham para economizar o dinheiro necessário à difícil (e financeiramente custosa) travessia.
Até agora, a maior parte dos filmes realizados sobre imigrantes ilegais fizeram do mar a sua “estrada”. Garrone resolveu empreender, com seus personagens, outro percurso: por terra e areias do Deserto do Saara. Seydoux e Moussa sairão de Dakar, capital do Senegal, passarão pelo Mali, Niger e chegarão à Líbia, porta de acesso ao Mediterrâneo africano.
Que ninguém tema um filme miserabilista, daqueles que desfiam um verdadeiro rosário de sofrimentos. Eles se farão presentes, claro. Em especial, quando os jovens e dezenas de outros imigrantes caírem nas mãos de exploradores em busca de resgate das famílias dos aprisionados. Os maus tratos (cenas de tortura física) só serão tolerados pelos que têm nervos de aço. Portadores da “síndrome Rivette” não aguentarão!!!
Superada a fase desse verdadeiro “inferno”, as soluções para os momentos mais difíceis virão da engenhosidade do roteiro, que Garrone escreveu com Ceccherini, Tagliaferri e Gaudioso, assessorado pelo imigrante Mamadou Kouassi Pli Adama.
Em meio ao drama real dos imigrantes, iremos nos deparar com duas sequências oníricas. De tirar o fôlego, de tão belas. E com fotografia epifânica, que impressiona desde as cenas de abertura, quando meninas da família do inquieto Seydoux se embelezam. De forma lúdica, elas se enfeitam com vistosas e coloridas perucas, chapéus dos mais criativos e vestidos com muitos atavios. Todos irão a uma festa de arromba, com danças e diversões revigorantes.
Rumo ao Mediterrâneo, Seydou se livrará do “inferno” das brutais sevícias físicas graças ao apoio de personagem de grande importância na trama, um carpinteiro dos mais habilidosos (Joseph Beddelen), representante da face humanista da África (assim como os generosos protagonistas). Uma fonte de engenhosa arquitetura e azulejos decorativos nos conduzirá – de certa forma e no meio a tantos infortúnios – ao mundo das Mil e Uma Noites.
A passagem do filme, do itinerário por terra e pelo Saara, para as águas mediterrâneas poderá assemelhar-se a deslavada “liberdade poética”. Mas não. As pesquisas de Garrone e equipe revelaram que um adolescente (de 15 anos) desempenhara papel similar ao que Seydoux representará. E que dará título ao filme.
Detalhe valioso num drama que se propõe a ser realista: os senegaleses falam wolof, língua materna de Seydoux. Ou francês. O wolof vem de seu grupo étnico originário e o francês é a língua do colonizador.
Quem critica o filme por não mostrar o papel dos europeus na trágica trama migratória – aqueles que colonizaram a África e hoje se negam a receber imigrantes vindos do continente – extrapolam a abrangência da proposta de Garrone. Ele quis, com seu filme, recriar a travessia, por terra-areia, daqueles que saem das margens do Atlântico rumo ao Mediterrâneo, em busca de vida melhor no países de seus colonizadores.
O final de “Eu, Capitão” deixa tudo em aberto. Ao chegar a uma ilha italiana, a Sicília, a embarcação do Capitão será recebida de braços abertos? Claro que não. Ainda mais na Itália governada pela primeira-ministra Giorgia Mellone, representante da direita xenófoba, coligada à extrema-direita.
Eu, Capitão
Itália, 2023, 121 minutos
Direção: Matteo Garrone
Roteiro: Matteo Garrone, Massimo Ceccherini, Andrea Tagliaferri e Massimo Gaudioso, assessorados por Mamadou Kouassi Pli Adama
Elenco: Seydoux Sarr, Moustapha Fall, Issaka Sawadogo, Joseph Beddelen, Hichem Yacoubi, Doodou Sagna
Direção de Fotografia: Paolo Carnera
Trilha Sonora: Andrea Farri
Montagem: Marco Spoletini
Distribuição: Pandora
A Sala dos Professores
Alemanha, 2023, 98 minutos
Direção: Ilker Çatak
Roteiro: Ilker Çatak e Johannes Duncker
Elenco: Leonie Beneschi, Leonard Stettnisch, Eva Löbau, Anne-Katrin Gummich, Ozgür Karedeniz, Uygar Tamer
Prêmios: 7 troféus “Lola”, o “Oscar germânico” (melhor filme, diretor, atriz, roteiro, montagem, fotografia e música)
Dias Perfeitos
Japão, Alemanha, 2023, 123 minutos
Direção: Wim Wenders
Elenco: Koji Yakusho, Reina Ueda, Tokio Emoto, Mion Tanaka, Arisa Nakano
Roteiro: Wim Wenders e Takuma Takasaki
Fotografia: Franz Lusting
OS CONCORRENTES
. “Zona de Interesse”, de Jonathan Glazer (Reino Unido/Polônia, 2023, 106 minutos), nos cinemas
. “A Sociedade da Neve”, de José Antônio Bayona (Espanha, 2023, 143 minutos), na Netflix
. “Eu, Capitão”, de Matteo Garrone (Itália), nos cinemas
. “A Sala dos Professores”, de Ilker Çatak (Alemanha), nos cinemas
. “Dias Perfeitos”, de Wim Wenders (Japão), nos cinemas