O blockbuster “Reino Animal” merece as 12 indicações recebidas do César, uma a mais que “Anatomia de uma Queda”?

Por Maria do Rosário Caetano

“Reino Animal”, segundo longa-metragem de Thomas Cailley, merece mesmo as 12 indicações recebidas da Academia Francesa de Cinema, promotora do Prêmio César, o “Oscar gaulês”?

Afinal, o ‘fantástico movie’ de Cailley soma qualidades capazes de habilitá-lo a superar o número de indicações do filme-sensação da temporada, o festejadíssimo “Anatomia de uma Queda”? Este drama dirigido por Justine Triet, que começa na neve e chega às barras de um tribunal, conquistou a Palma de Ouro em Cannes, o Prêmio Europeu, dois Globo de Ouro, o Bafta (melhor roteiro original) e soma cinco candidaturas ao Oscar, incluindo a categoria principal.

Na noite dessa sexta, no Olympia de Paris, a cerimônia do César vai tirar a teima. E, pela TV (Canal Plus), mais de um milhão de espectadores (exatos 1.110.700), que foram assistir ao “Reino Animal” nos cinemas franceses, poderão conferir se este “blockbuster autoral” foi superestimado. Ou não.

A Revista de CINEMA assistiu ao filme de Thomas Cailley, realizador nascido em Clermont-Ferrand há 43 anos, para conferir se ele é merecedor, também, das consagradoras cotações a ele atribuídas pelas mais importantes publicações francesas.

“Reino Animal” recebeu cinco estrelas dos descolados Libération, Bande à Part e Les Inrock, da respeitada revista Positif e do jornal comunista L’Humanité.

A exigente Cahiers du Cinéma, que detesta blockbusters e filmes narrativos, atribuiu quatro estrelas ao ‘fantasia movie’ de Cailley. Mesmo quantidade atribuída pelo Le Monde, pelo conservador Le Figaro, pelo católico La Croix, por Le Point e pela revista Rolling Stones.

A média do filme superou 4 pontos (em 5), tanto por parte da crítica quanto do público (este, surpreso ao ver o cinema francês, de tradição reflexiva e anti-espetacular, dedicar-se a gênero tão raro na terra do Godard: o ‘monster movie’).

As 12 categorias nas quais “Reino Animal” foi indicado — registre-se — não são secundárias. O “blockbuster autoral” é um dos cinco candidatos a melhor filme, melhor direção, melhor ator (Romain Duris, definido por crítico português como o eterno “babacool”), roteiro, ator revelação (Paul Kirchner) e música original. Nas categorias técnicas, também se fez onipresente: fotografia, montagem, direção de arte, som, figurino e efeitos visuais (estes, muito importantes em trama que mostra humanos, vítimas de mutação, transformando-se em seres híbridos — pássaro, gorila, rã etc.).

O que, enfim, levou o recordista de indicações ao César, sendo um filme de gênero, a somar tamanho sucesso de público e de crítica?
Suas qualidades, claro, que são mesmo dignas de nota. Em especial, sua originalidade e capacidade de surpreender o espectador. “Reino Animal” começa com discussão entre pai (François-Romain Duris) e seu filho adolescente (Émile-Paul Kirshner). Num carro em movimento, dirigido pelo pai, o garoto se empanturra de batata frita, guloseima gordurosa que divide com o cachorro de estimação. François lamenta os maus hábitos alimentares do filho.

De repente, não mais que de repente, um ser, misto de humano e pássaro, com asas que lhe permitem alçar voo, escapa de uma ambulância e barbariza o trânsito. O susto deixa pai, filho, cachorro (e todos os que trafegam na avenida) em pânico.

François e Émile (nome rousseauniano) vão ao hospital visitar uma mulher que saberemos ser esposa de um e mãe do outro. Com imensa sutileza, Cailley nos mostrará, apesar dos eufemismos usados pela médica, que a mulher está em avançado processo de mutação.

A narrativa deixa a grande cidade e nos transporta para região distante do país, em meio a mata densa, onde há um pântano. Espaços importantes em tramas fantásticas. Acidente do ônibus que transporta os seres mutantes (incluindo a mãe de Émile) fará com que eles se refugiem no “Reino Animal”, a mata-pântano.

O pai, com a intenção de afastar o filho da grande cidade e das dores causadas pela “doença” da mãe, havia escolhido justo a região bucólica agora transformada em refúgio dos mutantes. Seu plano era passar alguns meses na região, dedicando-se a seu ofício (chef de cuisine) num agradável restaurante campestre. E matriculando Émile na escola da pequena cidade, para que ele não interrompesse os estudos.

O que se verá daí em diante responde às questões que Thomas Cailley e sua co-roteirista (Pauline Mounier) se colocaram durante o processo de criação e escritura da trama: Por que somos tão refratários ao diferente? Como aceitar a diferença em nossas vidas? Por que rejeitamos o diferente a ponto de apelarmos à violência para destruí-lo? Podemos partilhar e habitar um mesmo espaço com aqueles que tomamos por diferentes de nós?

O roteiro do filme é dos mais elaborados e sutis, sem nenhum resquício de didatismo. Cailley e Pauline somaram história familiar e eventos fantásticos (os seres mutantes — nada espetaculares — parecem até “realistas”) com rara habilidade.

O jovem realizador faz de “Reino Animal” uma obra singular. Fascinante. Merecedora do apreço do público e das críticas arrebatadoras recebidas na França, desde sua participação na noite inaugural da mostra Un Certain Régard, no Festival de Cannes (maio de 2023).

Até quem não nutre grande entusiasmo por filmes de gênero (os ‘fantasia movie’) há de reconhecer que “Reino Animal” não é mera diversão. Muito pelo contrário. É um filme que usa elementos fantásticos para nos fazer refletir sobre questões essenciais de nosso tempo.

Merece as 12 indicações da Academia francesa? Sim.

Merece derrotar “Anatomia de uma Queda” na Noite do César? Não.

O filme de Justine Trier é notável e, o que mais impressiona, conseguiu romper as fronteiras francesas e chegar a territórios os mais distintos. Algo difícil para uma produção realizada fora dos EUA. Mas o longa-metragem de Cailley tem qualidades para conquistar alguns troféus César em diversas categorias. Afinal, não é todo dia que nos deparamos com um “blockbuster autoral”.

Por falar em blockbuster, não podemos ignorar que a trama engendrada por Justine Triet e Arthur Harari vendeu 1.547.512 ingressos na França. 400 mil a mais que “Reino Animal”.

2023, convenhamos, foi um ano muito especial para o “blockbuster autoral” francês. O país, famoso por seus filmes-cabeça, conseguiu realizar até um excepcional filme de “monstros”. Mesmo que estes (monstros) pouco devam à espetacularidade de seus similares norte-americanos. Vide as angústias, desejos e dores do mutante-pássaro que tenta, qual um Ícaro desesperado, adestrar sua imperfeita capacidade de voar.

Reino Animal
Franca e Bélgica, 2023, duração: 130 minutos
Direção: Thomas Cailley
Roteiro: Pauline Mounier e Thomas Cailley
Elenco: Romain Duris, Paul Kirchner, Adèle Exarchopoulos, Tom Mercier.
Sem data de lançamento no Brasil

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.