Por Maria do Rosário Caetano

O autismo (ou TEA – Transtorno do Espectro Autista) vem ganhando o espaço que merece no cinema brasileiro. Ganhou também importante livro – “Arthur, um Autista no Século XIX” – da psicanalista e professora da USP Maria Cristina Kupfer, obra enriquecida com posfácio sobre o Autismo no Século XXI.

Antes do tempo presente, só o cinema norte-americano dedicara importantes filmes ao tema. O mais famoso deles – “Rain Man” (Barry Levinson, 1989) – teve como protagonistas os astros Dustin Hoffman (premiado com o Oscar, por seu desempenho) e Tom Cruise. E alcançou imensa repercussão. Outros títulos, incluindo longas de animação e documentais, foram realizados no mundo anglo-saxão.

Recentemente, o cineasta cubano Fernando Pérez, dirigiu “El Mundo de Nelcito”, narrativa que assume o ponto de vista de um jovem portador do transtorno. E a Mostra de Cinema Chinês no Brasil, promovida pelo Instituto Confúcio da USP, apresentou, ano passado, o tocante “Irmãos”, de Guo Xiuzhuan. Dois jovens, um deles autista, são obrigados a lidar, sozinhos, com as adversidades da vida. O fazem na base do apoio mútuo.

O cineasta baiano-brasiliense André Luiz Oliveira, diretor de “Loucos por Cinema”, vencedor do Festival de Brasília, em 1994, finalizou nos últimos anos, dois longas-metragens com personagens portadores de TEA – um documental (“Meu Amigo Lorenzo”) e um ficcional (“Ecos do Silêncio”). Ambos destacam a musicoterapia como um dos caminhos para o desenvolvimentos dos portadores do transtorno.

No próximo 2 de abril, Dia Mundial da Conscientização sobre o Autismo, Brasília assistirá à pré-estreia de “Meu Amigo Lorenzo”, premiado como melhor filme pelo júri popular do Festival Primavera del Cine, em Vigo, na Espanha. O lançamento acontecerá no Cine Cultura, no Shopping Liberty Mall.

A sessão será seguida de apresentação musical de Lorenzo Barreto, que é autista e pianista. Depois do recital, a equipe do filme conversará com o público. Entre eles, estará Clarisse Prestes, companheira de André e dedicada terapeuta, que fez da música a sua estrada de diálogo com os portadores de TEA.

Na quinta-feira, dia 4, “Meu Amigo Lorenzo” estreia no circuito comercial. Primeiro, na capital da República. Depois, dia 11 de abril, em Porto Alegre, São Paulo e Belo Horizonte. No dia 18, o filme chega a Salvador e Rio de Janeiro (nestas cinco cidades, no circuito Espaço Itaú de Cinema).

O autismo – vale lembrar aos que não estão familiarizados com o assunto – é um transtorno no desenvolvimento infantil, de natureza multifatorial, que afeta a capacidade de relacionamento com pessoas e ambiente, por apresentar prejuízos na comunicação social e comportamentos restritos e repetitivos.

Os dados mostram a importância do tema. Relatório do CDC (Centers for Diseases Control and Prevention), dos EUA, publicado em 2023, constata que uma em cada 36 crianças, aos 8 anos de idade, é diagnosticada com TEA. Entre os mais de 200 milhões de brasileiros (IBGE, 2022), calcula-se que o número de pessoas com o transtorno chegue perto de 6 milhões. Esse número representa aumento de 22% em relação a estudo anterior, feito em 2018.

André Luiz Oliveira, que se aproximou do transtorno por sua convivência com a musicoterapeuta gaúcha Clarisse Prestes, lançará, ainda esse ano, o ficcional “Ecos do Silêncio”, que tem suas vivências com Lorenzo como fonte fertilizadora. Este filme, com locações no Brasil, Argentina e Índia, conta a história de Davi (Thales Cabral, melhor ator na Mostra Brasília), jovem músico, angustiado desde pequeno por não conseguir comunicar-se com seu irmão autista. Em busca de mecanismos que lhe permitam comunicar-se com o rapaz, ele decide frequentar uma escola de Musicoterapia, na Argentina. De lá, parte para experiência ainda mais profunda, junto a músicos tradicionais indianos.

Além de cineasta, André é músico e compositor. Toca, entre outros instrumentos, a cítara. E mantém profundo diálogo com a cultura da Índia, hoje o mais populoso país da Ásia (ultrapassou a China) e do mundo.

Quem assistir, antes de “Ecos do Silêncio”, ao documentário “Meu Amigo Lorenzo”, terá razões ainda mais substantivas para melhor fruição da obra ficcional. Mas os dois filmes são independentes e cada um tem suas qualidades, que são muitas.

A sinopse do documentário é precisa: “Uma criança especial, uma musicoterapeuta e um cineasta-músico vivem um encontro inesperado”. Juntos, esse trio realiza, ao longo de uma década e meia, um (futuro) documentário que “reflete sobre o poder da música e do acolhimento” como ferramentas capazes de permitir a expressão mais profunda da personalidade de uma criança com autismo.

Meu Amigo Lorenzo”, construído com “empatia, amizade e afeto”, foi-se fazendo como um aprendizado. Tudo começou num “setting” de musicoterapia (ambiente especial onde se dá o atendimento), quando André foi convidado a registrar as sessões terapêuticas de uma criança autista, que contava apenas quatro anos.

A empatia entre o cineasta-músico e a criança (Lorenzo Barreto) se deu de forma imediata. As filmagens foram se multiplicando ao longo da infância e da adolescência de Lorenzo. Vemos, portanto, ricos registros da transformação de um menino em jovem adulto. Como víramos, antes, no envolvente filme “Boyhood: Da Infância à Juventude” (Richard Linklater, 2014). No filme norte-americano, o realizador acompanhou a vida do garoto Mason, durante 12 anos.

André Luiz, que acompanhou, com sua micro-equipe, as transformações de Lorenzo por período ainda maior que o registrado por Linklater, não nega as dificuldades que encontrou pelo caminho: “percebi que Lorenzo, portador de enormes dificuldades psicomotoras, tinha também imensas qualidades musicais. Fiquei impactado”. Resultado: o processo de convivência por 15 anos permitiu “o nascimento de amizade musical, na qual o amor foi o caminho para o desenvolvimento da personalidade artística da criança”.

No filme, veremos Lorenzo e André exercendo, juntos, suas habilidades musicais. “Tocar com ele, ouvi-lo e ser ouvido por ele” – pondera o cineasta – “foi e continua sendo extremamente prazeroso, luminoso, desafiador”.

“Meu Amigo Lorenzo” deve muitas de suas qualidades, claro, ao talento e sensibilidade do realizador baiano-brasiliense. Mas não podemos esquecer da colaboração vital da musicoterapeuta gaúcho-brasiliense Clarisse Prestes. Companheira do cineasta, os dois vivem em sítio bucólico nos arredores de Brasília. Licenciada em Educação Artística, com habilitação em Música, pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Clarisse é pós-graduada em Musicoterapia e especializada em transtornos do desenvolvimento (em especial o TEA).

Quando ela recebeu Lorenzo, ainda com 4 anos e problemas de fala, o fez em “setting” de musicoterapia montado em sua própria casa. Naquele momento, Clarisse pediu a André que gravasse algumas imagens em fita MiniDV. O cineasta, por curiosidade, aceitou. A partir daquele dia, ele filmou todas as sessões ao longo de 15 anos. Ao ver material tão vasto, um verdadeiro tesouro, concluiu que registrara “experiência existencial preciosa e incomum”. Deveria realizar “Meu Amigo Lorenzo”. O que fez a partir de 2017. Nesse final de mês de março, ele passa a compartilhar seu documentário com o público.

A convivência com Lorenzo e outros autistas ensinou muito ao cineasta. “Se a pessoa tiver, como eu tive, disposição de se sobrepor ao preconceito, ao medo e às ordens internas de separatismo e intolerância” – pondera –, “ela encontrará algo muito precioso neles – a pureza de estar no mundo sem julgamento, sem disputa, inteiramente entregues ao presente”.

O filme dura 96 minutos e constituiu-se em experiência enriquecedora a todos que o assistirem. André usou sua larga trajetória, que soma mais de 30 filmes (onze longas e mais de 20 curtas e médias-metragens), para construir um filme sólido, que nos educa (sem nenhum didatismo) para a convivência com os diferentes. Tomara que, depois de passar pelo circuito comercial, o filme encontre nos canais a cabo e no streaming sua tela permanente.

 
 
Meu Amigo Lorenzo
Documentário, Brasília, 2024, 96 minutos
Direção, roteiro, trilha sonora e montagem (esta em parceria com Madam Produções): André Luiz Oliveira
Participação: Lorenzo Barreto, seus pais, a musicoterapeuta Clarisse Prestes e o próprio André Luiz
Pesquisa e Consultoria: Clarisse Prestes
Fotografia: Adelson Barreto
Produção executiva: Carina Bini
Assistente de produção: Sueli Navarro
Som direto: Marcos Manne
Desenho de som e mixagem: Micael Guimarães e A3pS
Censura: Livre

FILMOGRAFIA
André Luiz Oliveira nasceu em Salvador-Bahia, em 4 de fevereiro de 1948

Longas-metragens:

2024 – “Ecos do Silêncio” (ficção)
2024 – “Meu Amigo Lorenzo” (doc)
2022 – “Mito e Música – A Mensagem de Fernando Pessoa” (doc), em parceria com Rama Oliveira
2018 – “O Outro Lado da Memória” (doc)
2014 – “Zirig Dum Brasília – A Arte de Renato Mattos” (doc)
2014 – “Mário Cravo – O Ferreiro de Exu (ou Exu Iluminado)”
2010 – “Bené Fonteles, O Cozinheiro do Tempo” (doc)
2009 – “Sagrado Segredo” (doc)
2004 – “Loucos por Cinema” (ficção) – vencedor do festival de Brasília
1975 – “A Lenda de Ubirajara” (ficção)
1969 – “Meteorango Kid, o Herói Intergalático” (ficção) – Margarida de Prata da CNBB

Curtas e médias-metragens:
2020 – “Lazzo Matumbi”
2017 – “Baiana System Pirateshow”
2012 – “Walter Smetak – Cabaça”
2009 – “Edgard Navarro – Agonia e Êxtase”
2007 – “Teatro em Si”
1998 – “Festival de Brasília 30 Anos”, co-direção de Ronaldo Duaque
1997 – “Terra Samba Canta Bob Marley”
1991 – “Pessoa no Planalto”
1981 – “O Cristo de Vitória da Conquista”
1980 – “É Dois de Julho”
1979 – “Dia de Iemanjá”
1976 – “Dia de Vaquejada”, co-direção de Luna Alkalay
1976 – “As Ladeiras de Salvador”
1972 – “A Fonte”
1969 – “Doce Amargo”, co-direção de José Umberto