É Tudo Verdade premia “Tesouro Natterer”, “As Placas São Invisíveis” e “Cento e Quatro”
Foto: Gabrielle Ferreira (ao centro) © MRC
Por Maria do Rosário Caetano
O longa brasiliense “Tesouro Natterer”, de Renato Barbieri, e o curta-metragem paulistano “As Placas São Invisíveis”, de Gabrielle Ferreira, foram os grandes vencedores da competição brasileira da vigésima-nona edição do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários.
Já na competição estrangeira, os vencedores foram o longa-metragem germânico “Cento e Quatro”, de Jonathan Schörnig, e o curta costarriquenho “Só a Lua Entenderá”, de Kim Torres.
Os dois júris — o nacional (Walter Lima Jr, Edileuza Penha de Souza, Miriam Biderman) e o internacional (Helena Solberg, Mark Cousins, Sérgio Tréfaut) — mostraram fina sintonia com nosso tempo. A trupe brasileira destacou aspectos identitários, sem descuidar-se, na totalidade, de valores estéticos. A trupe internacional valorizou filmes de maior ousadia artística, sem descuidar-se da abordagem de temas candentes, como o estupro e a rejeição aos imigrantes.
O júri brasileiro justificou a escolha de “Tesouro Natterer” por “seus compromissos com a pesquisa, com o tempo, a memória e pela bela fotografia” (de Jacob Solitrenick e Daniel Leite). De narrativa clássica, o longa de Barbieri enfrenta questão que vem mobilizando mentalidades e sensibilidades anticolonialistas. Afinal, elas se fazem notar em tempos presentes. O Festival de Berlim premiou, dois meses atrás, o longa documental “Dahomey”, da franco-senegalesa Mati Diop, registro da devolução para o africano Benin (antigo Reino de Daomé) de 26 obras saqueadas, no século XIX, por tropas coloniais francesas.
O filme brasileiro acompanha a história do naturalista austríaco Johann Natterer (1787-1843), que chegou ao Brasil na comitiva da arquiduquesa Leopoldina, esposa do futuro imperador do Brasil, Pedro I. Aqui, o austríaco coletou milhares de espécies de pássaros, plantas, artefatos e peças artísticas criadas pelos povos originários. Todo o material foi depositado em museus do país europeu.
Um representante de indígenas brasileiros será visto em Viena, na Áustria. Ele visitará o rico acervo de seus ancestrais depositado na terra de Mozart. O documentário, de sintéticos 84 minutos, não explicita abertamente seu tom anticolonialista, mas deixa subentendida a necessidade de entendimento entre Brasil e Áustria. Entendimento que permita a devolução de tão impressionante patrimônio cultural aos descendentes dos povos espoliados.
Curioso notar que o Festival É Tudo Verdade exibiu, na competição de curtas brasileiros, outro filme de temática semelhante — “Até Onde o Mundo Alcança”, de Daniel Frota de Abreu. Neste, o foco recai sobre museu de Amsterdã, na Holanda, que armazena imenso patrimônio etnobotânico brasileiro, daqui levado pela rapina da Companhia das Índias Ocidentais, comandada, no século XVII, pelo príncipe Maurício de Nassau.
A premiação do curta “As Placas São Invisíveis” — que discute a quase-ausência (e consequente invisibilidade) de estudantes negros na maior universidade do país, a USP — poderia ser tachada de “identitarista”, portanto temática, se o filme da jovem Gabrielle se restringisse apenas aos testemunhos de cinco jovens afro-brasileiras, admitidas na instituição pelo mecanismo da lei das cotas.
Em sua justificativa, o júri destacou: “por refletir sobre a invisibilidade das barreiras sociais, políticas e econômica, que muitas vezes impedem a plena participação de todos os indivíduos na sociedade e, consequentemente, no acesso à permanência ao ensino superior público e de qualidade”, o prêmio coube a “As Placas São Invisíveis”.
Faltou, claro, aos jurados citar os valores estéticos do filme. Que existem, pois a realizadora impregna sua narrativa de elementos da natureza (chuvas, ventos), símbolos (placas restritivas ou cartazes reivindicativos) para enriquecer os bons testemunhos colhidos de suas personagens, todas femininas. Estreante, Gabrielle Ferreira mostra, ao construir sua vibrante atmosfera narrativa, ser um talento nascente.
O júri nacional atribuiu menção honrosa a um curta (“Aguyjevete Avaxi’i”) da jovem realizadora Kerexu Martim, de origem Guarani. E justificou: “Aguyjevete Avaxi’i” fez jus à láurea, “pelo cuidado, pela poesia, mas sobretudo pela reconstrução da vida. Pelo semear, acompanhar, crescer. Colher, debulhar, preparar e alimentar. Como diria Chico Buarque ‘Afagar a terra. Conhecer os desejos da terra. Cio da terra, a propícia estação. E fecundar o chão’”.
O júri internacional, formado com três cineastas, todos com sólidas trajetórias no cinema documental (Helena e Tréffaut também são autores de obras ficcionais), construiu justificativas fincadas especialmente na estética, sem ignorar a ética.
Para justificar o prêmio principal, atribuído ao alemão “Cento e Quatro”, a trinca argumentou: o Prêmio ÉTV destina-se a “um filme que olha para uma das mais importantes questões dos nossos tempos – imigração – de uma forma crua, envolvente e cheia de adrenalina. À medida que se desenrola em tempo real, percebemos que este filme deveria ser visto em todos os lugares”. No palco da Cinemateca Brasileira, o luso-brasileiro Tréfaut acrescentou: “‘Cento e Quatro’ constitui-se como experiência única, sensorial, por todos nós jamais vivenciada”.
O documentário germânico é isso mesmo. Um impressionante registro do resgate, em tempo real, de 104 imigrantes africanos (do Chade, Etiópia, Nigéria e Egito) à deriva no Mar Mediterrâneo. Numa embarcação precária e hiperlotada, tipo banana-boat, com uma de suas bandas de material sintético furadas, o naufrágio se anuncia. Uma instituição de Direitos Humanos empreende o salvamento. Cinco câmeras registram o que se passa, em clima de tensão, agravado pela chegada de navio da Guarda Costeira Líbia.
O espectador será arremessado naquela operação de salvamento, com os nervos à flor da pele. E saberá que, depois de resgatados, os 104 imigrantes passarão cinco dias sem poder desembarcar, pois nenhum país quer recebê-los. Nem Chipre, nem Itália…
Ao deparar-se com sólida seleção composta com doze títulos (eram sete os brasileiros), o júri decidiu atribuir duas justas menções honrosas: para “Zinzindurrunkarratz”, do basco Oskar Alegria, e “Diários da Caixa Preta”, da japonesa Shiori Ito.
Para o primeiro, definição precisa: “uma generosa e sensorial peregrinação experimental pela memória e pelo som”. Para o segundo: “excepcional, corajoso e profundamente emocionante retrato de uma mulher resistindo ao poder masculino. Sua persistência e rigor jornalístico ajudaram a mudar a lei no Japão”.
A jovem repórter (e agora cineasta), que tinha 25 anos quando foi estuprada por influente jornalista, amigo e biógrafo do então primeiro-ministro Shinzo Abe, realizou, em sua estreia, um documentário elaborado, corajoso e desprovido de lamúria e vitimismo. Muito pelo contrário. Shiori Ito, que está no Brasil e buscou seu prêmio no palco da Cinemateca Brasileira, fez um filme afirmativo no melhor sentido da palavra. Sua ênfase foi a coragem de afrontar a moral de país milenarmente patriarcal e lutar por mudança. O fez, nas barras dos tribunais, por longos oito anos.
Oskar Alegria passou pelo ÉTV com sua vitalidade e bom humor. Regressou à Espanha, mas agradeceu ao prêmio, via digital, com a mesma alegria impressa em seu nome. Prometeu realizar novo filme para regressar ao Brasil. Arriscou até no portunhol para agradecer o reconhecimento do júri ao seu mergulho fílmico, escorado em registros (Super-8) da vida cotidiana e laborial de camponeses arraigados ao solo da Espanha profunda. Para dar vida aos registros precários em S-8, captados outrora por seu pai, Alegria recorreu a elaborado trabalho sonoro. E a fino senso de humor.
“Só a Lua Entenderá”, dirigido por Kim Torres, eleito o melhor curta internacional, foi definido pelo júri como “um retrato poético e onírico da infância e do envelhecimento. Um filme de momentos mágicos”. O curta costarriquenho é mesmo tocante. Mas o poderoso “Avalanche”, do colombiano Daniel Cortés, poderia estar muito bem em seu lugar. Ou destacado com uma menção honrosa. Afinal, trata-se de um épico político-social, feito de imagens e banda sonora avassaladora. Uma avalanche de trabalhadores em busca de sua libertação, sob ruídos oriundos da natureza em ebulição, com seus movimentos incontroláveis.
Como o Festival É Tudo Verdade é reconhecido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos EUA, os quatro filmes vencedores do prêmio principal — “Natterer”, “Placas Invisíveis”, “Cento e Quatro” e “Só a Lua Entenderá” — estão habilitados a disputar vagas entre os pré-finalistas ao Oscar 2025 de melhor longa e melhor curta documental.
Parte do Festival É Tudo Verdade prossegue, agora, em suporte digital. O Itaú Play exibe, até dia 30 de abril, todos os curtas-metragens da competição brasileira. Não percam dois deles: o paulistano “Sem Título#9: Nem Todas as Flores da Falta”, do inventor Carlos Adriano (que soma poesia, reflexões filosóficas e impressionantes imagens da tragédia palestina em Gaza) e “Serão”, do paraibano Caio Bernardo. Excelentes os dois.
Fiquem de olho, também, no potiguar (e provocador) “A Edição do Nordeste”, de Pedro Fiúza, Prêmio Canal Brasil, e “Utopia Muda”, do campineiro Julio Mattos, prêmio de montagem, atribuído pela EDT – Associação de Profissionais de Edição Audiovisual.
E, por fim, um registro: o júri brasileiro não quis atribuir menção honrosa a nenhum longa. Se quisesse, ela cairia muito bem ao longa “Lampião, Governador do Sertão”, do cearense Wolney Oliveira.
Filme elaborado ao longo de quase duas décadas, em formato clássico, “Governador do Sertão” se constitui com múltiplas “cabeças falantes”, mas que têm muito a dizer. Não são vozes jornalístico-declaratórias. São, isso sim, vozes que falam de personagens e fatos vivenciados, pensados, refletidos, instigadores. Vozes de historiadores (como a desbocada Luitigarde Barros, Antônio Amaury Frederico Pernambucano de Mello e Leandro Fernandez), que dedicaram suas vidas ao estudo do cangaço.
A eles se somam vozes de artistas como J. Borges e Ariano Suassuna (que maravilha o testemunho de Ariano!), um carnavalesco (Leandro Vieira), gente do povo e ex-cangaceiros. Nessa categoria, não há como resistir ao testemunho de um magérrimo e enrugado sertanejo, o ex-cangaceiro Ângelo Roque, que descreve a formação corpórea de Lampião, um tipo bem franzino, “dargo!”. Sim, ele insistirá, o ‘governador do sertão’ era um tipo qualquer, sem imponência física, pois era “dargo”. Não sabemos o significado dicionarizado do termo, pois ele inexiste. Mas entenderemos o arcaísmo que o também “dargo” nordestino está a dizer do cangaceiro Virgulino Ferreira.
O cangaceiro que “governou” o sertão — herói para uns, bandido sanguinário para outros — ganhou de Wolney Oliveira um filme definitivo, que nos faz pensar o Brasil, com suas imensas violências, carências e contradições. Sem esquecer das mulheres, poucas (apenas 70, num universo de milhares de bandoleiros), representadas por Maria Bonita.
Wolney Oliveira presta tributo ao “nordestern”, subgênero que gerou farta safra de filmes, do pioneiro e seminal “Lampeão”, de Benjamin Abrahão (1936) a “Baile Perfumado” (1996), de “O Cangaceiro” (1954) a “A Luneta do Tempo” (2014), passando por “A Mulher do Cangaço” (1977) e “Os Últimos Cangaceiros” (2013), este do próprio Wolney.
O cineasta cearense faz recorrente uso do clássico documental de Benjamin Abrahão (aliás, muito do encenado). Mas o faz com criatividade e em busca de ângulos novos. Se Lírio Ferreira e Paulo Caldas fixaram-se nos bailes perfumados com Fleur d’Amour e regados a uísque Black Horse, Wolney dialoga, a seu modo, com o Marcelo Gomes de “Cinema, Aspirinas e Urubus”. Afinal, concentra-se na devoção de Lampião à cafiaspirina da Bayer, para ele, um remédio milagroso.
Muitos outros filmes brasileiros serão valorizados com trechos de suas tramas. Um deles, “Lampião, o Rei do Cangaço”, será visto múltiplas vezes pelo jovem — branquíssimo e cabeludo — Pedro Popoff, cantor e cordelista paulista (sim, de Bauru), que passará a dedicar-se, com fervor, ao cangaço. Não à pratica violenta de roubos, sequestros e estupros. Mas, sim, ao uso artístico-temático do fenômeno do “banditismo social” (by Eric Hobsbawm) que se multiplicou (e sobreviveu) na literatura de cordel, no vestuário e no cancioneiro popular nordestino. E, infelizmente, em novas práticas criminosas (e muito sangrentas), como mostra a série “Cangaço Novo”.
Confira os vencedores:
Competição Brasileira
. “Tesouro Natterer”, de Renato Barbieri (DF): melhor longa brasileiro (Troféu ÉTV e 20 mil reais). Pré-habilitado ao Oscar de longa documental
. “As Placas são Invisíveis”, de Gabrielle Ferreira (SP): melhor curta brasileiro (Troféu ÉTV e 6 mil reais, Prêmio Mistika (8 mil reais em serviços de pós-produção). Pré-habilitado ao Oscar
. “Aguyjevete Avaxi’i”, de Kerexu Martim (SP): Menção honrosa do Júri Oficial
. “A Edição do Nordeste”, de Pedro Fiuza (Rio Grande do Norte) – Prêmio Canal Brasil (Troféu, 15 mil reais e exibição na emissora)
. “Fernanda Young – Foge-me ao Controle”, de Susanna Lira (RJ) — Prêmio EDT de Montagem para longa brasileiro (EDT – Associação de Profissionais de Edição Audiovisual) — Montagem de Ítalo Rocha
. “Utopia Muda”, de Julio Matos (SP) – Prêmio EDT de Montagem para curta brasileiro (EDT – Associação de Profissionais de Edição Audiovisual) – Montagem de Lucas Lazarini e Julio Matos
Competição Internacional
. “Cento e Quatro”, de Jonathan Schörnig (Alemanha): melhor longa-metragem (Troféu ÉTV e 12 mil reais) -Pré-habilitado ao Oscar
. “Diários da Caixa Preta”, de Shiori Ito (Japão/ EUA/ Reino Unido) – Menção honrosa (longa-metragem)
. “Zinzindurrunkarratz”, de Oskar Alegria (Espanha) – menção honrosa (longa-metragem)
. “Só a Lua Entenderá”, de Kim Torres (Costa Rica/ EUA) – melhor curta-metragem (Prêmio ÉTV e 6 mil reais) – Pré-habilitado ao Oscar