Murilo Salles busca “essências poéticas” capazes de revelar faces escondidas da Baía de Guanabara
Por Maria do Rosário Caetano
O cineasta e diretor de fotografia Murilo Salles tem se dividido entre a ficção e o documentário. Nessa quinta-feira, 18 de abril, ele lança, em doze capitais brasileiras, um de seus três filmes inéditos, “Uma Baía”. Ele já finalizou “Mário de Andrade, o Turista Aprendiz”, projeto híbrido, fruto de edital de experimentação de linguagem, no qual o macunaímico escritor paulistano será visto em viagem à Amazônia, empreendida na década de 1920.
O cineasta carioca dedica-se, agora, à finalização de “A Vida de Cada Um”, ficção protagonizada por Caco Ciocler e Bianca Comparato. Neste, que será seu décimo-quinto longa-metragem, Murilo retoma temas candentes de algumas de suas narrativas sociais (caso de “Como Nascem os Anjos” e “Seja o que Deus Quiser”). O personagem central de “A Vida de Cada Um” é um policial militar, que acabará transformando-se em miliciano. Ele será visto em suas relações familiares, em especial com a filha.
Os dois filmes devem participar de festivais brasileiros, ainda este ano. E, ano que vem, chegarão ao circuito exibidor. “A Vida de Cada Um” terá distribuição da Downtown, de Bruno Wainer.
Nesse momento, porém, Murilo Salles só pensa em “Uma Baía”, projeto ao qual dedicou-se por cinco longos anos. Filmou com tamanha paixão personagens da Baía da Guanabara, que acabou gerando um filme de mais de sete horas. Decidiu-se, depois de muita troca de ideias com seus colaboradores (entre eles, a montadora e co-roteirista Eva Randolph), buscar “as essências poéticas” de seus personagens. O resultado foi condensado em potentes 109 minutos. Houve rigoroso tratamento do som nessa realização que Murilo diz ser “difícil de sintetizar”. Mas que acaba sintetizando como “uma viagem aos lugares originais da Baía da Guanabara, testemunha silenciosa, ao longo de cinco séculos, de processo de intensa degradação, que afeta a existência de seus trabalhadores”.
A Guanabara, alcançada pelo colonizador europeu em 1502, era habitada pelos Tupinambá, que a batizaram como nome que significa “seio do mar”. Ou um derivado: “baía que parece mar”. Os indígenas foram praticamente dizimados pelo colonizador. Depois, chegaram os africanos escravizados. Hoje, descendentes miscigenados de indígenas, africanos e portugueses vivem como trabalhadores braçais na imensa baía.
O filme nos mostrará um catador de caranguejos, um barbeiro, um pedreiro, quilombolas e um homem que ganha a vida indo ao fundo do mar. Mostrará, também, em suas “oito fábulas”, a trajetória de rolos de minério de ferro, a dura vida de um cavalo e o que o improviso brasileiro é capaz de fazer com o lixo.
“Uma Baía” pode ser definido como um “filme observacional”. Mas Murilo Salles, em suas reflexões sobre a estética (e a ética) do cinema (suas imagens e sons), prefere ir além e ampliar o conceito.
“Sim”, admite, “o filme nasceu da observação”. Para, em seguida, ponderar: “o cinema é observacional na medida em realiza uma invenção de reprodução do real através de uma lente. E a lente observa. Na literatura, se quisermos ser observacionais, temos que descrever a observação, como fizeram Marcel Proust e outros grandes escritores”.
Murilo entende que, “na literatura e no teatro, o observacional é construído. No cinema é ‘natural’”. Posto que, “se abrimos uma câmera, passamos a registrar, e pronto, estabelece-se o ato observacional, que pode ser (e é) quebrado pelo diálogo. O diálogo ‘diz o que queremos dizer’. Não é uma observação. Mas um plano geral que situa uma locação é, sim, uma observação”.
O cineasta admite que o conceito de “documentário observacional” o deixa um “pouco desestimulado”. E justifica tal desestímulo: “Não gosto dessa classificação, pois ela está no grau zero da escritura documental, é natural do procedimento. ‘Uma Baía’ é som+imagem. É um filme no qual a imagem pensa, a montagem pensa, o plano pensa, no mais estrito senso deleuziano. Concordo com Deleuze, quando ele diz que cinema é, sim, imagem, é pensamento, o som é pensamento. Cinema não é filosofia. Esse talvez tenha sido o problema do Godard. Acreditar que, ao final, cinema é filosofia. O cinema pensa pelo que é cinematográfico, pelo que é seu específico: a imagem do plano (incluso o movimento), o som do plano e a montagem”.
Murilo, que chegou ao cinema pela direção de fotografia, lembra que “Uma Baía” é seu filme que lhe exigiu maior esforço de realização, que lhe consumiu três anos de gravação e dois de montagem.
“Eu tinha um filme de quase oito horas, uma hora com cada um dos oito personagens”. Depois, “com Eva Randolph, resolvemos fazer uma montagem que ‘se bastasse’ dentro do status quo do tempo da exibição. E isso foi fundamental! Nos obrigou a mergulhar na poética e na busca de uma condensação de significação”.
Uma Baía, décimo-terceiro longa-metragem de Murilo Salles, que ele define como “reserva especial” (entre seus documentários — oito, se contarmos o média-metragem “Essas São as Armas”, realizado na África, na década de 1970), trouxe muitas alegrias ao cineasta. Foi selecionado para o Festival do Rio, para o Festival de Cartagena, na Colômbia, e para o Festival de Leipzig, criado na extinta Alemanha Oriental, e onde o cineasta estreou, em 1978, com o filme que documentou a Moçambique revolucionária de Samora Machel e da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique).
A curadoria de Leipzig definiu “Uma Baía” como “um ensaio documental, em oito capítulos, que medita sobre os habitats em volta da baía, acompanhando as atividades repetitivas e fisicamente exaustivas de seres humanos e animais. Perspectivas incomuns. Um trabalho de câmera cuidadoso e design de som comovente tornam essas observações um comentário sobre a crise no Brasil. O documentarista ilumina a estreita ligação entre espaço geográfico e a desigualdade social”.
Uma Baía
Brasil, 2019-2024, 109 minutos
Direção: Murilo Salles
Roteiro: Murilo Salles, Eva Randolph e Ituana Coquet
Fotografia: Leo Bittencourt e Fabricio Mota
Montagem: Eva Randolph
Circuito: Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador (no Cine Glauber Rocha), Brasília (Liberty Mall), Fortaleza (Cine São Luiz), Aracaju, Maceió, Recife (Cinema da Fundação), Palmas e São Luís do Maranhão (Cine Lume)
FILMOGRAFIA
Murilo Salles (Rio de Janeiro/RJ, 2 de outubro de 1950)
COMO DIRETOR:
2024 – A Vida de Cada Um (ficção, em finalização)
2024 – Mário de Andrade o Turista Aprendiz (híbrido)
2019 – Uma Baía (doc)
2015 – Passarinho Lá de Nova Iorque (doc)
2018 – Alegorias do Brasil (série de TV)
2014 – O Fim e os Meios (fic)
2014 – Aprendi a Jogar Com Você (doc)
2008 – Nome Próprio (fic)
2006 – O Espetáculo da Delicadeza (doc)
2004 – És Tu Brasil (doc)
2003 – Seja o que Deus Quiser (fic)
1996 – Como Nascem os Anjos (fic)
1995 – Todos os Corações do Mundo (doc)
1989 – Faca de Dois Gumes (fic)
1985 – Nunca Fomos Tão Felizes (fic)
1978 – Estas São as Armas” (doc, média-metragem)
COMO DIRETOR DE FOTOGRAFIA:
1972 – Tati a Garota, de Bruno Barreto
1973 – Um Edifício Chamado 200, de Carlos Imperial
1973 – A Estrela Sobe, Bruno Barreto
1975 – Carro-de-Bois, último curta de Humberto Mauro
1976 – Lição de Amor, de Eduardo Escorel
1976 – Dona Flor e seus Dois Maridos, de Bruno Barreto
1980 – Cabaret Mineiro, de Prates Correia
1980 – Beijo no Asfalto, de Bruno Barreto
1981 – Eu Te Amo, de Arnaldo Jabor
1981 – Tabu, de Júlio Bressane
2005 – Árido Movie, de Lírio Ferreira
2006 – Nome Próprio (fotografia em parceria com Fernanda Riscali)