Toni Venturi, formado no Canadá, realizou documentários sobre Prestes, Paulo Freire e o racismo estrutural

Por Maria do Rosário Caetano

O cineasta Toni Venturi (à direita na foto) morreu, aos 68 anos, no litoral paulista, quando nadava no mar. Teve um mal súbito, foi socorrido, ouviu cantos de sua mulher, a atriz Débora Duboc, protagonista de “Cabra Cega” e mãe de seus filhos, parceira em muitos projetos. Mas não teve jeito.

O paulistano Toni Venturi estudou cinema no Canadá e iniciou-se, profissionalmente, no ofício, em solo brasileiro, pela trilha do cinema documental. Em 1997, seu longa de estreia, “O Velho – A História de Luiz Carlos Prestes”, foi eleito o melhor filme brasileiro do Festival É Tudo Verdade. A partir de entrevista de arquivo realizada por Nelson Pereira dos Santos com o líder socialista, Venturi construiu um rico e matizado perfil de Prestes.

Quatro anos depois, realizava sua estreia na ficção, com o econômico e eficiente “Latitude Zero”. Protagonizado por Débora Duboc e Claudio Jaborandi, ambientado em desolada zona de fronteira, Toni narraria com vigor uma história de solidão e abandono. Sua estreia ficcional foi realizada sob conceito – o do B.O. (filme de baixo orçamento) – que entrava, com grande força, no vocabulário do cinema brasileiro, então empenhado em superar consequências nefastas de uma de suas mais graves crises – o desmonte da Era Collor.

Em parceria com o roteirista Di Moretti, com quem trabalhara em “O Velho” e “Latitude Zero”, Toni  partiria, em 2004, para projeto mais arrojado – a ficção política “Cabra Cega”, protagonizada por Débora Duboc e Leonardo Medeiros. Ele interpreta, nesse drama histórico, o guerrilheiro Tiago, procurado pelas forças de repressão. Estamos em 1971, fase mais dura do regime militar. Ela, Rosa, é uma mulher simples, “militante de base”, a quem caberá cuidar de Tiago, ferido em emboscada pela polícia. Transformada em enfermeira improvisada, Rosa será o único contato daquele jovem comandante de grupo de ação armada com o mundo exterior.

Em 2006, Toni realizou um ótimo documentário – “Dia de Festa”, em parceria com Pablo Geordieff. Para os integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, convocar os colegas para um “dia de festa” é chamá-los para ocupação coletiva de prédio abandonado. O filme acompanha quatro mulheres (Neti, Simara, Janaína e Ednalva), que desempenham importante papel na luta por moradia na malha urbana da desigual e imensa metrópole paulistana.

Toni nunca escondeu seu desejo de realizar filmes capazes de estabelecer diálogo com o grande público. Esperava, com “Cabra Cega”, uma boa bilheteria. Em entrevista à  Revista de CINEMA, ele relembrou esforços feitos para lançar o filme, que porém não conseguiu o resultado esperado.

“Colocamos até anúncios na TV Globo”, contou. Para, em seguida, recorrer a metáfora elucidativa: “foi como dar um tiro de escopeta num passarinho”. Ou seja, usou-se munição pesada (e cara) para atingir ave pequenina.

Toni, que presidiu a Apaci (Associação Paulista de Cineastas) e militou incansavelmente pelo audiovisual brasileiro, sabia que a questão se configurava (se configura) muito mais complexa do que supõe nossa vã filosofia.

Em 2006, depois do engajadíssimo “Dia de Festa”, ele dirigiu “Rita Cadillac, a Dama do Povo”, sobre a ex-chacrete, que atuou em muitas pornochanchadas. E fez participação especial em “Carandiru”, de Hector Babenco. Realizou um filme no mínimo interessante. É generoso com sua curvilínea personagem.

No longa seguinte, Toni retomaria a vertente social e política, marca essencial de seus documentários. “Vocacional, uma Aventura Humana” (2011) registra a instigante experiência de Maria Nilde Mascellani, educadora que criou colégios vocacionais e públicos, em São Paulo, regidos por projeto pedagógico de vanguarda. A experiência, porém, foi interrompida pelo governo militar.

No mesmo ano, em nova empreitada ficcional, Toni dirigiu “Estamos Juntos”, que seria laureado com o Troféu Calunga de melhor filme no Festival Cine PE, no Recife. Dessa vez, a protagonista escolhida foi Leandra Leal, que interpreta a médica Carmen. Com ela contracenam Cauã Reymond, que interpreta Murilo, homoafetivo e maior amigo da jovem doutora, e o argentino Nazareno Casero, o músico Juan, por quem ela se apaixona. Carmen viverá um triângulo amoroso com os dois rapazes.

Débora Duboc, companheira e parceira de Toni na produtora Olhar Imaginário, atuou no numeroso elenco coadjuvante de “Todos Juntos”, ao lado de Lee Taylor, Sidney Santiago, Dira Paes, Zé Carlos Machado, Marat Descartes, Natália Rodrigues, Luciano Chirolli e trupe jovem. Nesse projeto, Toni trabalhou com um novo roteirista, o também cineasta pernambucano Hilton Lacerda.

O projeto mais caro e o que mais diálogo buscou com o grande público, entre os comandados por Toni Venturi, foi “A Comédia Divina”, ficção inspirada no conto “A Igreja do Diabo”, de Machado de Assis. Nem o roteiro de José Roberto Torero, machadiano de carteirinha, deu jeito (e comunicabilidade) ao filme. Uma comédia soterrada por efeitos especiais, que não deu liga. Nem público.

O filme seguinte – “Dentro da minha Pele” (2020), levou Toni Venturi de volta ao cinema documental. Em parceria com Val Gomes, ele realizou sólida reflexão sobre o racismo brasileiro, construída com depoimentos substantivos, recursos metalinguísticos, grafismos plásticos e algum material de arquivo. Um mergulho no que a filósofa Sueli Carneiro chama de “mancha negra”, questão desafiadora e crucial na história brasileira. Nascido como projeto pessoal, o filme, em seu processo de construção, mostrou ao documentarista (branco, de origem italiana), que, se queria abordar o racismo, deveria estabelecer parceria com afro-brasileiros. Foi o que ele fez: montou equipe em que profissionais de pele preta fossem maioria (44 negros e cinco brancos) e dividiu a direção com a socióloga afro-brasileira Val Gomes.

O cineasta colocou-se, inclusive, como alvo voluntário de seus entrevistados-colaboradores. Por isso, ao longo da narrativa, de densos 85 minutos, alguns destes “entrevistados” o colocarão na parede. Entre eles, a própria Sueli Carneiro. Ela dirá a Toni que ele é um dos brancos de origem europeia que ajudam a perpetuar o racismo estrutural, por não quererem ceder o poder de mando acumulado ao longo de cinco séculos de história do Brasil.

FILMOGRAFIA
Toni Venturi (São Paulo/SP, 21/11/1955 – São Sebastião/SP, 18/05/2024)

1997 – “O Velho – A História de Luiz Carlos Prestes” (doc)
2001 – “Latitude Zero” (ficção)
2004 – “Cabra Cega” (ficção)
2006 – “Dia de Festa”, em parceria com Pablo Geordieff (doc)
2007 – “Rita Cadillac, a Dama do Povo” (doc)
2011 – “Vocacional, uma Aventura Humana” (doc)
2011 – “Estamos Juntos” (ficção)
2016 – “Paulo Freire Contemporâneo” (doc, média-metragem)
2017 – “A Comédia Divina” (ficção)
2020 – “Dentro da minha Pele”, em parceria com Val Gomes (doc)

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