Denys Arcand causa polêmica com sua sátira ao politicamente correto e à cultura Woke

Por Maria do Rosário Caetano

Quem imaginaria que um dos artistas mais progressistas do mundo seria chamado de reacionário?! Pois este é o adjetivo que vem qualificando o diretor canadense Denys Arcand, de 83 anos, por causa de seu décimo-sétimo longa-metragem, o polêmico “Testamento”.

O filme, lançado no Brasil nesta quinta-feira, 27 de junho, levou saraivada de pedras da imprensa europeia. O El País, de Madri, o tachou, com gosto, de reacionário. Alguns dos principais veículos cinematográficos franceses (Cahiers du Cinéma, Positif, o sartreano Libération e o Les Inrock) o ignoraram. Le Monde o premiou com mísera estrela.

E quem lhe atribuiu as cobiçadas cinq étoiles?

O crítico do conservador Le Figaro, Eric Neuhoff. Ele não só encheu o longa de elogios, como deixou expresso seu desejo: que um cineasta francês faça filme similar ao de Arcand, para mostrar o que se passa no país de Depardieu-Doillon-Jacquot. Ou seja, que enfrente o PC (Politicamente Correto) e a cultura woke com a mesma coragem do québécoise.

Estaríamos, pois, frente a prova cabal de que Denys Arcand derivou para a direita?

Teria o realizador canadense — escalado pelo brasileiro Silvio Tendler (em “Utopia & Bárbarie”, 2006) como voz progressista por suas “Invasões Bárbaras” e pelo “Declínio” (depois, “Queda”) do Império Americano” — mudado de lado?

Eis aí um tema complexo e disruptivo. Denys Arcand, afinal, continua sentindo-se um progressista e desancando a direita, esculhambando Trump, o império americano e, dominado pelo pessimismo, enchendo os pulmões para assegurar que o colonialismo segue como uma das forças motoras de nosso mundo tão injusto.

Por que, então, resolveu pegar pesado com praticantes do PC e da cultura woke? Enfim, usar a sátira (em alguns momentos do filme, nada sutil) como arma de combate à Cultura do Cancelamento?

Em entrevistas a jornais canadenses, Arcand forneceu  justificativa que embasou seu “Testamento”. Durante visita a museu em Nova York, ele teria presenciado cena semelhante à que será vista em seu novo filme – um grupo de jovens questionou pintura exposta na instituição, pois ela retratava o encontro de explorador holandês com os povos nativos americanos.

Frente a tal experiência, ele afirmaria: “Havia anos que (a referida obra) não incomodava ninguém. Um dia, um grupo exigiu a sua destruição sob o pretexto de que tal pintura constituía insulto aos nativos, aos povos originários: colocaram uma janela diante da imensa pintura e, com algumas anotações escritas, corrigiram erros e imprecisões”.

Outra explicação – esta não verbalizada-explicitada por Arcand – tem, decerto, a ver com os dois cancelamentos sofridos pelo dramaturgo, ator e cineasta Robert Lepage, de 66 anos, amigo do diretor de “Testamento”.

Vale relembrar o que se passou, em 2018, com o criador do monumental espetáculo cênico “Os 7 Afluentes do Rio Ota”, montado no Brasil por Monique Gardenberg, e de cinco filmes, sendo o mais conhecido deles “O Lado Escuro da Lua”.

Lepage, que atuou em “Jesus de Montreal” e interpreta um ministro-adjunto em “Testamento”, teve dois trabalhos condenados. O primeiro, que estrearia no Teatro de Ariane Mnouchkine, em Paris, chamava-se “Kanata” e contava a história colonial canadense, com atenção especial devotada aos povos originários. Como não havia indígenas (ou seus descendentes) entre os atores, houve protestos, os patrocinadores retiraram apoio financeiro e a estreia foi cancelada.

O mesmo se daria com “SLAV”, espetáculo musical que recuperava composições de negros escravizados. A proposta de Lepage, que seria apresentada no Festival Internacional de Jazz de Montreal, foi considerada fruto de “apropriação indevida” e, também, cancelada.

O novo filme de Denys Arcand mexe num vespeiro ao somar múltiplos e controversos temas contemporâneos. Sua régua estética mede-se pela sátira. É com humor (nem sempre bem-sucedido) que ele acompanha trecho da vida de Jean-Michel Bouchard (Rémy Girard, um de seus atores-fetiche), celibatário de 73 anos, que reside em casa de repouso administrada pela operosa e atenta (às exigências do protocolo identitário) Suzanne (Sophie Lorain). Seu mundo (e o de Suzanne) será subvertido pela chegada de manifestantes que abraçam, de megafone em punho, campanha pela remoção de antigo mural, pintado numa das paredes da mansão-abrigo dos velhos aposentados (como Jean-Michel). Os jovens consideram tal pintura um insulto aos povos originários do Canadá. Descrente da vida e afrontado pelos rumos culturais tomados pelo mundo que o cerca, Jean-Michel, que é escritor, derramará desilusão. Expressará a perda da fé que outrora nutrira pela humanidade. Para ele, acabou o asfalto. Até, pelo menos, descobrir inesperado amor por Suzanne, angustiada com a distância da filha, que lhe dera neto com quem não tivera oportunidade de conviver.

Em seu combate aos efeitos da Cultura do Cancelamento, Denys Arcand erra e acerta. “Testamento” está longe do vigor de “As Invasões Bárbaras” (2003), que lhe valeu o Oscar de melhor filme estrangeiro. Estatueta outorgada, aliás, pela Academia de Hollywood, matriz simbólica do poderio dos EUA, nação que ele desancou em dois filmes, os cáusticos “Declínio” e “Queda” (do Império Americano).

O filme começa e termina com o mural da discórdia. Afinal, ele se destaca no cenário de concerto de música erudita ofertado aos moradores da luxuosa casa geriátrica. E, no final, aparecerá – já no ano futuro de 2042 – sendo restaurado por exímios técnicos chineses, decerto já mais poderosos que os norte-americanos, força dominante no século XX e nessas primeiras décadas do XXI.

Uma série de mal-entendidos deixará Jean-Michel fulo da vida. Convocado para receber prêmio por sua trajetória como escritor, ele chegará tarde à cerimônia, não será reconhecido e enfrentará “a fúria” de mulheres, todas laureadas e representantes de forças identitárias. Causa espécie ver o diretor de filmes que se propõem, historicamente, a refletir sobre problemas contemporâneos construir sequência tão constrangedora. Para não ser empurrado (hostilizado) pelas premiadas, bastava que ele cometesse gesto de gentileza, se levantasse e desse passagem a elas. Mas, não, JM se posta em sua poltrona, como intransponível muralha, impedindo a passagem.

Uma coisa é ironia, outra é grosseria. Mas há bons momentos no filme, em especial aqueles em que o protagonista, alter-ego de Arcand, reflete sobre a finitude da vida e defende o patrimônio artístico universal, construído desde a antiguidade clássica. Em especial Shakespeare e Brecht. Homens brancos? Sim. Mas não podemos fazer do anacronismo a régua do mundo contemporâneo. Que forças renovadoras (mulheres, afrodescendentes, indígenas e LGTBQIAPN+) dêem sua imensa contribuição à arte de nosso tempo. E que ela venha para somar.

Por fim, relembremos o passado de Denys Arcand, antes de crucificá-lo como um velho Jesus (de Montreal). Seus primeiros filmes, documentais ou ficcionais, foram de coragem ímpar. Com “Réjeanne Padovani” (1973), ele narrou a história de manifestante rebelde, que protestava contra a construção de autoestrada. Por sua postura, seu corpo acabaria transformado em argamassa do empreendimento, inaugurado com pompa e circunstância por autoridades a quem ela incomodava.

“Gina”, ambientado no seio da indústria têxtil, exala pessimismo – como bem notou o historiador francês Jean Tulard –, “pois a intrusão de cineastas no meio dos operários não determinará verdadeira tomada de consciência”. Para o pesquisador, “a mudança (para Arcand) só poderá ocorrer pela violência”, motor dos processos transformadores baseados na luta de classes.

Seu primeiro filme, “On Est au Coton” (1970), sobre a indústria têxtil, foi proibido pelo organismo que o produziu, o Office National du Film. Isto no Canadá, conhecido como uma das mais sólidas democracias do mundo.

OK, estes filmes arcandianos são realizações dos anos 1970. O mundo mudou, o marxismo perdeu espaço e os trabalhadores abraçaram o empreendedorismo. Recente manchete do jornal O Globo (22/06/24) registrou o espantoso esvaziamento do movimento sindical brasileiro: “Trabalhadores sindicalizados caem à metade em 11 anos”. Batalha, portanto, (quase) perdida.

Arcand vai continuar lutando, solitariamente, para que a cultura de seu país não se reduza a Céline Dion e ao Cirque du Soleil. Ambos citados em seu “Testamento”.

 

Testamento | Testament
Canadá, 2023, 115 minutos
Direção e roteiro: Denys Arcand
Elenco: Rémy Girard, Sophie Lorain, Guylaine Tremblay, Caroline Néron, Charlotte Aubin, Robert Lepage, Denis Bouchard, René Richard Cyr, Clémence Desrochers, Guillaume Lambert, Danièle Lorain, Marie-Soleil Dion, Louis-José Houde, Gaston Lepage e Marie-Mai
Produção: Denise Robert, Cinémaginaire
Fotografia: Claudine Sauvé
Direção de arte: François Séguin
Figurino: Anne-Karine Gauthier
Música: Martin Desmarais
Montagem: Arthur Tarnowski
Distribuição: Imovision

 

FILMOGRAFIA
George Henry Denys Arcand (Deschambault, Quebec, 25 de junho de 1941)

2023 – “Testamento”
2018 – “A Queda do Império Americano”
2014 – “O Reino da Beleza”
2007 – “A Era das Trevas”
2005 – “Idole Instanée”
2003 – “As Invasões Bárbaras” (Oscar de melhor filme em língua estrangeira)
2000 – “Stardom”
1993 – “Amor e Restos Humanos”
1989 – “Jesus de Montreal” (Prêmio do Júri e Prêmio Ecumênico, em Cannes)
1987 – “Un Zoo la Nuit”
1986 – “O Declínio do Império Americano” (Quinzena dos Realizadores, em Cannes, prêmio Fipresci e indicação ao Oscar de filme estrangeiro)
1982 – “Le Crime d’Ovide Plouffe”
1981 – “Le Confort et l’Indiférence”
1976 – “Cotton Mill, Treamill”
1974 – “Gina”
1973 – “Rejeanne Padovani”
1972 – “Quebec: Duplessis et Aprés…”
1972 – “La Maudite Galette”
1970 – “On Est au Coton”

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