Documentários sobre portadores de deficiência chamam atenção no Cine PE
Foto: Equipe do filme “Invisíveis”, de Carolina Vilela e Rodrigo Hinrichsen
Por Maria do Rosário Caetano, de Recife
Três documentários chamaram atenção na vigésima-oitava edição do Cine PE, festival que na noite dessa terça-feira entrega seu troféu Calunga aos vencedores.
O primeiro, “Memórias de um Esclerosado”, chega do Rio Grande do Sul para narrar a trajetória do quadrinista Rafael Corrêa, vítima de esclerose múltipla.
O segundo longa, também da competição pelo Calunga, vem do Rio de Janeiro, e chamou atenção mais por seu tema que por sua mise-en-scène. Com nome sintético — “Invisíveis” —, o filme acompanha a história de amor de um casal de cegos.
A esfuziante Cláudia Sofia, que não vê (e escuta com dificuldade), tem o dom da fala. É uma oradora desinibida e alto astral. Seu cônjuge, Carlos Jorge, é cego, surdo e mudo. A comunicação com ele só se faz possível por dois sistemas — o Tadoma e a Libra Tátil. No primeiro método, o intérprete coloca o polegar nos lábios do intérprete e os outros quatro dedos emitem sinais (por Libras) na bochecha do emissor.
O carisma da esfuziante Sofia, sua busca pela autonomia possível, suas relações com o marido, com a irmã e com um casal de vizinhos (este também portador de deficiência visual) garantem o poder de atração do filme. E há humor, pois Sofia é desbocada. Sonha com um passeio à Praia de Tambaba, paraíso ensolarado no litoral da Paraíba. Quer praticar nudismo na companhia do marido. Alguém há de ponderar que eles “não verão nada”. Nenhum corpo nu, pois são cegos. Em discussão com a irmã, Sofia teimará que vestia, em determinada ocasião, um maiô desta ou daquela cor. A mana diz que as cores eram outras. Sofia teima. A irmã rebate: mas “você não enxerga, como quer saber mais que eu?”.
“Invisíveis” poderia ser mais sintético e elaborado. Mas deve cumprir a importante missão de sensibilizar plateias leigas para os desafios vividos por portadores de deficiências visuais e auditivas.
No debate, Sofia contou que ainda não realizou o sonho de ir à praia de nudismo de Tambaba. E citou a razão impedidora: “para irmos até lá, temos que encontrar um intérprete (dos métodos Tadoma e Libra Tátil) disposto a ir conosco viver essa aventura”.
O terceiro longa documental a chamar atenção no Cine PE — o pernambucano “Estação Janga (O Segundo Mundo do Rádio)” — ficou confinado em horário vespertino, na Mostra (informativa) Inquietações. Por sorte, reuniu ótima plateia no espaço alternativo que o exibiu, o Cinema do Porto. E seu protagonista, o mestre griot e cantor de côco Zeca do Rolete, a todos encantou com seu carisma e sabedoria popular.
“Estação Janga” merecia figurar na competição principal, por sua criatividade e originalidade. Seus diretores — a brasileira Chia Beloto e o português Rui Mendonça — realizaram um filme de base documental e alma ficcional. Zeca do Rolete e Dona Silvania Silva se somam a parentes e amigos para protagonizar histórias que trazem muito de suas vidas pessoais, temperadas com grandes doses de imaginação. E com direito a citações cinematográficas e radiofônicas. Primeiro, do filme “Viagem à Lua”, de Georges Méliès, projetado em paredão periférico do Recife. E, sendo Zeca do Rolete um aficionado por rádios antigos, ouviremos “Guerra dos Mundos”, a apavorante transmissão radiofônica do jovem Orson Welles.
O documentário pernambucano nos revelará, em seus sintéticos 78 minutos, um protagonista que encantaria seu conterrâneo Paulo Freire. Afinal, Zeca do Rolete é portador de conhecimentos (e humor) vivenciados no profundo convívio com a natureza, com a dura realidade brasileira e com amigos e parentes.
Pobre, preto e dono de imaginação das mais férteis, Zeca nos contará que tomou muito “café de mangiroba”. Como o grão verdadeiro do café era (e é) muito caro, os despossuídos encontraram na árvore da mangiroba o jeito de produzir a beberagem (o cafezinho de cada dia), que os brasileiros tanto apreciam.
Num dos momentos mais tocantes do documentário, Zeca do Rolete, Dona Silvania, filhos e agregados cantam um côco. Apreciador de sucessos de Luiz Gonzaga, o artista popular revelará sua voz melodiosa e seu prazer em cantar com a rica colaboração de múltiplas e familiares vozes.
O irreverente casal formado por Chia Beloto e Rui Mendonça construiu sua viagem cinematográfica escorado, com muita liberdade, em fontes as mais diversas, incluindo a radionovela “Mistérios do Além”. E no processo trilhou “caminhos imprevisíveis”, que os levaram a essa inquieta narrativa, na qual “só a ficção poderia salvar a realidade”.
O gaúcho “Memórias de um Esclerosado”, de Thaís Fernandes e Rafael Corrêa, chama atenção já por seu poderoso (e nada piedoso) título. Thais, de 40 anos, dirigiu antes o longa “Portuñol”. Rafa faz sua estreia no cinema como diretor e personagem.
O filme, um híbrido de documentário, animação e ficção onírica, contará a história do próprio Rafael Corrêa, nascido em Rosário do Sul, há 48 anos. Em 2010, o belo, atlético e namorador Rafa foi diagnosticado como portador de esclerose múltipla. Hoje se locomove em cadeira de rodas e necessita de cuidadores para ajudá-lo a tomar banho, deitar-se, levantar-se etc., etc.
Ninguém espere um relato voltado ao lamento ou à busca da redenção. Quadrinista, chargista e ilustrador, Rafa é um homem de ideias firmes e dono de cortante ironia.
Na apresentação de “Memórias de um Esclerosado”, no Cine Teatro do Parque (e no debate do dia seguinte), Rafael Corrêa afirmou que o Rio Grande do Sul, seu estado natal, “é exemplo explícito da política de Estado mínimo, da precarização brutal dos serviços públicos”. Ele viveu as recentes inundações no epicentro da tragédia — a capital Porto Alegre, onde reside desde 1984. E viu, angustiado, “a cidade colapsar, ter seus esgotos expostos e exalar fedor”. Viu, também, “o muro que protege a capital dos gaúchos incapaz de protegê-la, pois das 24 casas de bombas, só três funcionavam”.
Sobre o filme, Rafa e Thaís (ela é também montadora) contaram que o processo foi longo e complexo. “Nos conhecemos em 2014. No ano seguinte, ela me propôs realizarmos um filme sobre minha trajetória”, lembrou Rafa. “Ela vinha do documentário e eu, da ficção quadrinizada. Começamos a somar ideias, mas só conseguimos financiamento em 2019. E aí veio a pandemia”.
Como sempre houve uma câmera de vídeo no dia-a-dia da família de Rafa — manuseada pelo pai ou por ele —, Thaís ficou animada quando recebeu um saco repleto de fitas VHS. Ali estava o rico acervo produzido pela Família Corrêa, que veremos na estrutura narrativa do filme.
Na construção do roteiro, empreendida por Thaís e Rafa, com a colaboração de Ma Villa Real, surgiu a ideia de ficcionalizar fato evocado pelo cartunista. Um dia, ele matara um sapo. Fato que passaria a perturbar, de forma recorrente, seu arsenal de lembranças. Pois o sapo foi antropomorfizado no filme, criando camada onírica e das mais envolventes. Há até um balé que une o quadrinista ao sapo onírico. Mas Rafa foi dublado pelo irmão, já que a esclerose múltipla o impossibilita de ficar de pé (sem ajuda) e, principalmente, de dançar.
O documentário de Thaís e Rafael Corrêa, que passou pelo SP Doc, laboratório paulistano, e recebeu orientação do cineasta argentino Andrés De Tela, é forte candidato ao Calunga de melhor filme. Aliás, registre-se, além dele e de “Invisíveis”, há outro filme PcD (Pessoas com Deficiência) na programação do Cine PE — o curta-metragem “Zagêro”, de Victor De Marco e Márcio Picoli. Nele, De Marco, também portador de esclerose múltipla, provoca o espectador com tonitroante indagação: “é tão normal ser normal, não é?”
FLASHES
. Quiá Rodrigues, revelação do cinema animado, 25 anos atrás, com o fascinante e metalinguístico “De Janela pro Cinema”, participa do Cine PE como orientador e professor de coletivo de crianças e adolescentes capixabas, responsável por “Flores de Macambira”. Trata-se de curta produzido por Beatriz Lindberg e pelo Instituto Marlin Azul, do Espírito Santo, que soma acervo dos mais significativos, fruto de dezenas de oficinas-geradoras de filmes de animação. Quiá tem dedicado sua vida aos “Cavalinhos do Fantástico”, aqueles que comentam o desempenho de nossos times de futebol a cada rodada do Brasileirão. E às estimulantes oficinas formadoras. Em sua passagem pelo Cine PE, o animador confirmou que tem projetos de novos curtas (e até um longa) na gaveta. Mas avisou que está feliz com os “cavalinhos do Fantástico” (seu trabalho na TV vem dos distantes tempos da “TV Colosso”) e com as oficinas. E que cada filme que realizou (“sou cineasta bissexto”) lhe consumiu no mínimo cinco anos de trabalho.
. Filhos de peixe — Há dois filhos de “peixe grande” do cinema brasileiro na competição de curtas-metragens do Cine PE — a atriz (e agora realizadora) Luisa Arraes e o diretor Quico Meirelles. Luisa, que vive momento cinematográfico único (“Transe”, “Grande Sertão, “O Diabo no Meio do Redemoinho”, “Mariel Mariscot”), nem pôde debater “Dependências” no Cine PE, devido a compromissos de gravação da telenovela “No Rancho Fundo”, da Globo. Seu filme parte de ideia promissora (a piração alucinante que se apossa de patroas, quando estas têm que receber visitas numerosas e não podem contar com a ajuda de serviçais). A intenção de fazer comédia desandou com excessos e exageros, todos pouco críveis. Quico é filho de Fernando Meirelles, o diretor de “Cidade de Deus”. Dedicado a séries para o streaming, o Meirelles-filho deixou set na Amazônia, para breve passagem pelo Cine PE. Revelou-se um cinéfilo caxias, que foi prestigiar, na íntegra, a mostra paralela “Inquietações” e viu e debateu os filmes dos colegas. Seu curta, “Jogo de Classe”, é uma comédia cáustica, que dialoga com a peça “Deus da Carnificina”, filmada por Roman Polanski. E que inseminou também a série “Os Outros” (TV Globo). Com elenco de ponta, “Jogo de Classe”, aqui representado por Quico e pelo ator Dan Stulbach, mostra, em 17 minutos (roteiro de Felipe Poroger), intolerantes pais da classe abastada presentes em inesperada reunião na escola dos filhos. Eles, sem exceção, estão tomados pela indignação por causa de pequeno incidente verificado em singelo jogo de futebol. O resultado do novo filme de Quico aproxima-se do que David França Mendes chama de “curta portfólio”. Ou seja, narrativa-vitrine que anuncia “vejam como estou pronto para realizar um longa-metragem”. Quico, porém, garantiu, durante o debate, ser apreciador do “formato curta” e que pretende continuar praticando-o em paralelo às séries para o streaming.
. Helena Ranaldi – A competição do Cine PE reúne apenas cinco longas-metragens. Número, convenhamos, muito reduzido. Três são documentários. Só duas ficções — o paulista “Cordel do Amor sem Fim”, de Daniel Alvim, e o pernambucano “No Caminho Encontrei o Vento”, de Antônio Fargoni. O primeiro tem elenco encabeçado pela atriz Helena Ranaldi, que também produz o filme. Com ela estão Patrícia Gasppar, Luciano Gatti e Márcia Oliveira. O filme veio de montagem teatral, que a trupe de Ranaldi levou aos palcos. Para transformá-lo em filme, durante a pandemia, equipes artística e técnica fixaram-se em cidade do interior e colocou a narrativa em pé com modestos R$ 260 mil. Quase nada, já que um B.O., pelos padrões da Ancine, mobiliza em média R$ 1 milhão. Valeu o esforço, mas o filme resultou por demais literário, teatral e assexuado. Mesmo que o diretor garanta ter impregnado sua trama com ingredientes do realismo mágico (proposta do texto teatral que lhe deu origem), torna-se impossível entender como três mulheres, uma bem jovem e duas mais maduras, conseguem viver sem fazer sexo. O que bate na tela é anacrônico, genérico, pudico, censura livre. Até a cena de violência que (não) veremos se dá por elipse. O resultado lembra uma colorida novela das seis.