Festival recifense homenageia Tânia Alves e prefeitura promete resgate de cinema evocado em “Retratos Fantasmas”

Foto: Spok, Tânia Alves, governadora Raquel Lyra e prefeito João Campos

Por Maria do Rosário Caetano, de Recife

A noite inaugural da vigésima-oitava edição do Festival de Cinema de Pernambuco, o Cine PE, somou música, memórias afetivas, política e reunião de uma das famílias mais poderosas do estado, a Arraes de Alencar.

Tudo começou com a Orquestra Bravo, que apresentou composições populares integrantes de dez trilhas sonoras de produções brasileiras, de “Bicho de Sete Cabeças” a “Beatriz”, de “O Grande Circo Místico”; de “Muié Rendeira” ao hit “Você Não me Ensinou a te Esquecer” (“Lisbela e Prisioneiro”), cantada em uníssono pela plateia. A cerimônia seguiu com homenagem à atriz Tânia Alves, carioca e filha de pernambucano, e desaguou na presença, no palco, da governadora Raquel Lyra e do prefeito João Campos.

João, de 30 anos, lembrou que tinha apenas dois anos quando o festival recifense foi criado. Aplaudido como um astro pop, ele foi evocado por outra estrela da noite, o cineasta Miguel Arraes de Alencar, o Guel, que carrega o nome do pai, Miguel Arraes (1916-2005), governador do estado por três vezes. Uma delas, interrompida pela ditadura militar implantada em 1964.

Guel, que apresentou seu novo filme — “Grande Sertão”, transcriação do romance “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa — ao público, junto com sua vistosa equipe artística, lembrou que o prefeito João Campos é seu sobrinho-neto.

O jovem parente de Guel aproveitou a plateia presencial, que lotou o Teatro do Parque, e a virtual (a festa foi transmitida pela internet) — para anunciar boas novas cinematográfico-educacionais a seus eleitores. Ele acaba de desapropriar dois grandes cinemas do Recife, que, ao invés de virarem igrejas, serão sede de escola e centro cultural. Um deles, o Trianon, será transformado pelo MEC (e pela Prefeitura), em sede de mais um Instituto Federal de Educação, uma das meninas dos olhos do presidente Lula. O outro, o Art Palácio, muitas vezes evocado por Kleber Mendonça no filme “Retratos Fantasmas”, funcionará como auditório e espaço de extensão do novo Instituto Federal. E cinema, claro.

Midiático como ele só, o prefeito e sobrinho-neto de Guel (ele tem mais de 2 milhões de seguidores nas redes sociais) produziu até uma foto com jovial pose de cineasta. Nela, João Campos aparece com claquete na qual se lê: “IFPE. Director: Lula e Camilo Santana. Cameraman: João Campos”. Ou seja, o Instituto Federal de Pernambuco é fruto de parceria do presidente da República e de seu ministro da Educação, o cearense Camilo Santana, com o prefeito do Recife. Aliás, o integrante do clã Arraes é candidato à reeleição, com popularidade na casa dos 80%.

Post do prefeito de Recife, João Campos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ninguém, entre os nomes da política presentes à noite inaugural do Cine PE, arrancou tantos aplausos quanto o prefeito. Na mesma medida, só o pernambucano Luiz Inácio Lula da Silva, evocado pelo alcaide filiado ao PSB e — isso mesmo! — pela governadora tucana, Raquel Lyra.

Raquel, menos aplaudida que o prefeito, foi ovacionada quando citou o nome do presidente da República. Lula, natural de distrito pobre de Garanhuns, continua em alta em ambientes artístico-cinematográficos nordestinos.

Como João Campos cantou seus feitos no terreno do resgate de dois cinemas históricos do Recife, “ambos na icônica Avenida Guararapes”, Raquel não perdeu a chance de também destacar feitos de sua gestão na área cultural.

A governadora garantiu que “a restauração do Cine São Luiz encontra-se na terceira e última fase” e destacou a vindoura Feira de Artesanato a ser realizada em Pernambuco. Para ponderar: “será a maior e mais bela do país”. Filha de Caruaru, terra do artesanato feito de barro por descendentes e discípulos de Mestre Vitalino (1909-1963), Raquel preserva a grandiloquência do estado “Leão do Norte”. Tudo aqui é grande, imenso!

No campo da produção — que inscreveu no cenário nacional nomes como Lírio Ferreira, Paulo Caldas, Cláudio Assis, Marcelo Gomes, Hilton Lacerda e Kleber Mendonça — a governadora avisou: “nossa produção cinematográfica continua forte e registramos número exuberante de acessos aos recursos da Lei Paulo Gustavo”. Registre-se que Raquel e João não se pautaram pela chatice de longos discursos políticos proferidos em festas cinematográficas. Foram coloquiais e rápidos. E, felizmente, não quiseram roubar a festa da homenageada  da noite — a atriz Tânia Alves.

A protagonista de “Cabaret Mineiro”, “O Olho Mágico do Amor” (ela e Carla Camurati), “Parahyba Mulher Macho” (na pele de Anayde Beiriz) e “O Mágico e o Delegado” (ela e Nelson Xavier), teve como apresentador o músico e maestro Spok, um recifense da pá virada. De cara, no palco, com saudável bom humor, ele contou que Tânia e suas personagens ocuparam suas solitárias noites de adolescente. Sem recorrer a termos chulos, mas fincado na boa malícia nordestina, reafirmou que ela fôra sua parceira simbólica em muitos sonhos noturnos.

Tânia Alves, de 74 anos, magra, elegante e com cabelos assumidamente brancos, divertiu-se com a brincadeira (ilustrada por delicioso documentário-colagem do Canal Brasil). Afinal, a inconfidência erótica viera de colega de ofício. Tânia, além de atriz, é cantora, com mais de uma dezena de discos gravados.

Em seu agradecimento, a cantriz preferiu ler discurso memorialístico, marcado pela pernambucanidade. Além do pai, nascido nesse estado nordestino, ela teve em pernambucanos alguns dos esteios de sua carreira. A três deles, dedicou preito e lágrimas — a Luiz Mendonça e Luiz Marinho (este de “Viva o Cordão Encarnado”, que revelou a ela e a Elba Ramalho) e Dominguinhos, com quem fez muitas parceiras em palcos os mais diversos.

O Troféu Calunga Trajetória foi entregue a Tânia Alves por seis mãos: além das de Spok, as de Raquel Lyra e João Campos. Quem visse governadora e prefeito tão unidos, jamais imaginaria o quão intestinas são as disputas eleitorais no estado. Na plateia estava, ainda, Marília Arraes (ex-PT, atual Solidariedade), ex-deputada, prima de João e sua opositora na disputa pela prefeitura, quatro anos atrás.

A noite inaugural do Cine PE era mesmo da família Arraes. Chovia lá fora e mesmo assim, centenas de recifenses (os “sem-pulseira”) lutavam por um lugar no Teatro do Parque, obra de 1915, com 800 lugares, que passou por formidável restauro.

O celular do produtor de “Grande Sertão”, Manoel Rangel, não parava de tocar. A van que o transportava (e também aos atores Caio Blat, genro de Guel, Luís Miranda, Rodrigo Lombardi e Eduardo Sterblitch) assemelhava-se a escritório de ‘promoter’ de camarote descolado da Marques de Sapucaí. Os celulares da família Arraes (da atriz Luisa, do cineasta Guel e do escritor José Almino Arraes) também compunham verdadeira sinfonia. Que só perdia em exuberância para a alegria imensa do ator Luis “Zé Bebelo” Miranda, sempre com um chiste ferino na ponta da língua.

Luisa Arraes, o Diadorim, amor culpado de Riobaldo Tatarana, mostrava ao pai vídeo com fila quilométrica (e sob chuva) formada na quadra onde se insere o Teatro do Parque. Muitos não conseguiram entrar. Sem-pulseira de acesso, impossível.

Os que entraram, aplaudiram calorosamente (ao final de 108 minutos de narrativa vertiginosa) o épico-pop engendrado pelos roteiristas Jorge Furtado e Guel Arraes. E que este, com Flávia Lacerda no comando da segunda unidade, comandou em sete semanas de filmagens (Rangel não declinou o custo do filme, mas Guel o fez: 17 milhões de reais ou menos de 4 milhões de dólares). Com a inconfidência do cineasta, o produtor ponderou: “60 vezes menos que a nova aventura da Furiosa Mad Max”.

Guel Arraes, Manoel Rangel, elenco e diretora de segunda unidade Flávia Lacerda de “Grande Sertão”

“Grande Sertão” está em cartaz em mais de 300 cinemas espalhados por 127 grandes cidades brasileiras. Manoel Rangel, que já presidiu a Ancine (Agência Nacional de Cinema), garante que vai explorar, com a Paris Filmes na retaguarda, cada semana dos seis meses que a parceira Globo Filmes lhe deu como “janela”. Então, municípios menores, desde que contem com bons cinemas, não perdem por esperar.

No encontro com a imprensa, na manhã seguinte, Guel, Flávia Lacerda, Manoel Rangel e os atores Caio Blat, Luis Miranda, Eduardo Sterblitch e Rodrigo Lombardi (que jurou ser enquadrado, na internet, no grupo dos “galãs feios”, desde que atuou em “O Caminho das Índias”) deram ótimas respostas às perguntas dos jornalistas.

Luisa Arraes não compareceu ao encontro com a imprensa para economizar energias. Ao longo do dia, dedicar-se-ia a intensa agenda  junto a emissoras de TV. E, à noite, nessa sexta-feira, 7 de junho, apresentará na competição pelo Calunga do Cine PE, o curta-metragem “Dependências”, por ela dirigido.

Destacamos aqui resposta de Guel Arraes a uma das perguntas da Revista de CINEMA, sobre suas fontes de diálogo em “Grande Sertão”:

— Há uma influência explícita no tom do filme, que ninguém apontou — “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, um de meus filmes brasileiros preferidos. Para mim, o romance “Grande Sertão: Veredas” é uma das fontes desse maravilhoso filme do Glauber. Há diálogo, sim, com os balés coreografados do cinema asiático contemporâneo. Vimos muitos deles. O diálogo se dá, em especial, na primeira luta de Diadorim e em momento final e crucial da narrativa (protagonizado também por Diadorim e aqui não revelado). Akira Kurosawa, claro, é fonte de diálogo. Assistimos ao “Trono Manchado de Sangue”, ao “Ran”, entre outros épicos dele. Também “Romeu + Julieta”, do Baz Luhrmann. Há seis grandes lutas (ou batalhas) no filme. Uma delas, aquela na qual grupo dos bandidos vem montado em motocicletas enfeitadas, evoca uma comissão de frente de escola de samba… Esta é minha primeira tragédia no audiovisual. Fiz muitas comédias. “O Auto da Compadecida” é uma farsa. Creio que há muito de Fellini, um de meus diretores favoritos, em “Grande Sertão”.

 

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