“Tijolo por Tijolo” e “Os Paraísos de Diane” abrem competições do Olhar de Cinema
Foto: “Os Paraísos de Diane”, de Carmen Jaquier e Jan Grassmann
Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba
O parto foi o elo de ligação entre os dois primeiros filmes das mostras competitivas da décima-terceira edição do Olhar de Cinema. No brasileiro “Tijolo por Tijolo”, de Victoria Alvares e Quentin Delaroche, a recifense Cristiane Martins Ventura engravida do quarto filho, que não planejara, nem desejava (por já ser mãe de três crianças). Resolve assumir a gravidez até o fim, mas passa a lutar pelo direito à laqueadura na sobrecarregada rede hospitalar pública.
No suíço “Os Paraísos de Diane”, da competição internacional, aberto com cenas de um parto, uma mulher bem situada na escala social vê sua vida virar pelo avesso com a chegada do bebê. Sob forte perturbação emocional, ela abandona o marido e o recém-nascido e empreende viagem sem direção ou propósitos definidos.
Diane não sabe o que quer em sua errância. Mas de uma coisa ela tem certeza: não deseja vivenciar a experiência da maternidade. O filme, que participou do Festival de Berlim, é denso, tenso e vertiginoso. E conta com duas grandes atrizes em seu elenco. A protagonista, mulher madura e em transe existencial, vivida por Dorothée de Koon, e a veterana Aurore Clément, de 78 anos, presença marcante em muitos filmes de Chantal Ackerman (1950-2015).
No longa documental de Victoria e Quentin, a situação é bem diferente da que encontramos no filme europeu. Cris, que é mãe de Isaque, Caíque e Helena, tenta estruturar, em Ibura, na periferia de Recife, sua vida ao lado do marido Albert. A modesta moradia onde residiam rachou em diversos pontos e teve que ser demolida. Com as próprias e solitárias mãos (e ensinamentos das redes sociais), Albert ergue, “tijolo por tijolo”, a nova residência. Uma casa de apertados dois andares. Tudo com “engenharia” intuitiva e projeções buscadas na internet. Vai dar certo? Ao final de 102 minutos de projeção, conheceremos a resposta.
“Tijolo por Tijolo” é o segundo longa da dupla Victoria e Quentin. Antes, eles realizaram “Bloqueio”, documentário sobre greve de caminhoneiros que parou o país durante o Governo Temer e forneceu sólida base para o triunfo de Bolsonaro nas eleições de 2018. Agora, preparam “Pulso”.
Plugados em questões sociais relevantes, os diretores pernambucanos (Quentin tem origem francesa) conseguem, em “Tijolo por Tijolo”, realizar sólida abordagem de questões essenciais à vida brasileira: a falta de moradia para os segmentos situados na base da pirâmide, a saúde da mulher e, também, a centralidade assumida pelas redes sociais no âmago da vida doméstica. O celular, no filme, está nas mãos de uma criança, o desinibido Caíque, de Cris e de seu marido e, até, das parturientes de hospital universitário, em Recife.
A alma do documentário é a questão da moradia, como bem mostra seu título, retirado do samba “Tijolo por Tijolo”, composição de Serginho Meriti e Claudemir, gravada por Alcione. Construir uma casa ao longo de dois anos, durante e pós-pandemia, é a meta do solitário Albert, pedreiro por necessidade, que aprende ao fazer. Além da falta de mão de obra especializada, a família enfrenta falta de recursos para comprar cimento, tijolos e outros itens essenciais.
Algo inesperado vai enriquecer a narrativa: Cris, a carismática protagonista de “Tijolo por Tijolo”, engravida inesperadamente. Ela não desejava ter um quarto filho, pois sonha concluir o curso de Educação Física na universidade e firmar-se como influenciadora. Uma daquelas que apostam em processos de embelezamento de mulheres fora dos padrões estéticos dominantes em nossa sociedade. Investe, enfim, no aumento da autoestima de mulheres de todas as idades, volumes e cores.
Grávida, Cris resolve empenhar-se em novo propósito — lutar pelo direito à laqueadura (ligamento das trompas) na rede pública de saúde, desde que esse seja o desejo da mulher, dona de seu corpo e de seu destino. O SUS permite tal procedimento, desde que a grávida (quando casada, também o marido) assine termo legal, expressão de sua vontade.
Como a procura pelo procedimento é muito grande, na prática a laqueadura só é feita (em hospitais da rede pública) quando a mulher se submete a parto por cesariana. Os médicos — seguindo seus preceitos — repetem sempre que “o parto normal é o mais indicado e saudável”. Que é grande a diferença entre o nascimento natural e o artificial (por cirurgia). Cris se angustia. Se não conseguir fazer uma cesárea, como e quando conseguirá nova cirurgia para ligar as trompas? O filme desenvolve com segurança também esse seu segundo (pouco conhecido e explorado) tema.
O terceiro mote de “Tijolo por Tijolo” mostra a centralidade das redes sociais na vida brasileira. Em particular, na vida cotidiana de pessoas das periferias brasileiras. Albert mantém o celular à mão, pois a “engenharia” da casa de dois andares depende dos ensinamentos arquitetônicos que aparecem na telinha.
Cris sonha em transformar seus serviços de embelezamento de mulheres em negócio digital e lucrativo. Desinibida e criativa, ela faz o que pode. Mas, para monetizar o negócio, precisa de milhares (milhões) de seguidores. O marido Albert Ventura quantifica as metas: os dez mais no ranking têm de 800 mil a 2 milhões de seguidores. Números que Cris Martins Ventura está longe de alcançar. Mas ela não desiste. E o filho Caíque, desinibido como ela, faz também suas intervenções internéticas (com celular emprestado pelo cineasta Quentin Delaroche, durante os 24 meses de filmagem).
“Tijolo por Tijolo”, com quase duas horas de duração, corria o risco de entediar o espectador. Mas isso não acontece, porque o filme é bem construído e elabora, com riqueza de detalhes, a luta de uma família afro-brasileira e periférica por direitos mínimos (à moradia, à saúde e ao trabalho).
No debate que se seguiu ao filme, no Cinemark Mueller, Victoria e Quentin destacaram a importância do médico recifense Olympio Moraes Filho, então diretor do Cisam (Centro Universitário Integrado de Saúde), que atendeu ao pré-natal e fez parto e laqueadura de Cris. “Foi o Dr. Olympio, um profissional que reconhece a importância do cinema”, contou Quentin, “que permitiu que filmássemos no local”.
Victoria Alvarez relembrou o papel que o médico recifense vem desempenhando na luta pelo direito de interrupção da gravidez, guiado, claro, pelos parâmetros restritivos da legislação brasileira (aborto em caso de estupro, má formação do feto e risco de morte para a mãe). Tanto que — relembrou ela — “o Dr. Olympio foi o médico que autorizou procedimento de interrupção da gravidez de menina estuprada no Espírito Santo, durante o governo Bolsonaro. Mesmo com fundamentalistas fazendo ruidosa manifestação na porta do Cisam, ele fez cumprir a lei”.
Nesse momento em que forças obscurantistas tentam mudar, no Congresso Nacional, a draconiana legislação que rege o aborto e o país corre o risco de retrocesso medieval, o filme de Victoria e Quentin ajuda a jogar luz sobre tema tão importante quanto o direito da mulher sobre o próprio corpo.
A luta de Cris Martins Ventura não se deu, no plano pessoal, pela prática do aborto, mas sim pelo direito à laqueadura. Mesmo assim, no final da narrativa, ela se manifesta, em pronunciamento progressista, pelo entendimento de que as mulheres devem ter o poder de decisão. O corpo é delas.