Mulheres dominam competição pelo Kikito no Festival de Gramado “da superação”

Foto: “Pasárgada”, estreia da atriz Dira Paes na direção

Por Maria do Rosario Caetano

No ano em que o Festival de Cinema de Gramado se propõe como festa simbólica de superação da tragédia das enchentes, responsável por trágicas perdas humanas e materiais, a força feminina do audiovisual brasileiro fala mais alto.

Dos sete longas-metragens selecionados para a competição nacional, quatro são dirigidos por mulheres. Três pelas experientes e premiadas Anna Muylaert (“O Clube das Mulheres de Negócios”), Eliane Caffé (“Filhos do Mangue”) e Juliana Rojas (“Cidade; Campo”) e um pela estreante Dira Paes (“Pasárgada”). Aos recém-completados 55 anos, a experiente e premiadíssima atriz dirige seu primeiro longa.

Com esse quarteto fantástico, competirão três varões assinalados: o baiano-paranaense-paulista Aly Muritiba (“Barba Ensopada de Sangue”), o goiano Érico Rassi (“Oeste Outra Vez”) e o paranaense Marcos Jorge (“Estômago 2 – O Poderoso Chef”).

Registro inevitável. Ano passado, Tocantins enviou a Gramado seu primeiro longa ficcional (“O Barulho da Noite”, de Eva Pereira), que fez história ao disputar o Kikito. A cineasta, por seu feito, foi prestigiada por numerosa caravana de amigos e conterrâneos, que aproveitaram para conhecer a Serra Gaúcha, sua culinária e pontos turísticos. Agora, Goiás repetirá o feito semelhante para festejar o filme de Erico Rassi, que tem no elenco o excelente Ângelo Antonio (o esperto pai “de celulóide” de Zezé de Camargo e Luciano, em “2 Filhos de Francisco”)? Aguardemos.

Um detalhe: a curadoria de Gramado, esse ano, foi feita pelo jornalista e crítico Marcos Santuário e pelo ator e diretor Caio Blat. Ou seja, não contou com a presença feminina de Soledad Villamil, atriz do oscarizado “O Segredo dos seus Olhos” e musa de Verissimo. Sem a presença de filmes latino-americanos na competição, a argentina deve ter se sentido um peixe fora d’água. E os dois varões, decerto, ficaram mais que antenados. Estabeleceram placar de 4 a 3 para as mulheres, para não correrem o risco de serem tachados de “machos brancos”.

Em suas falas na coletiva de imprensa, transmitida pelo Instagram, os dois curadores garantiram terem se pautado “pela qualidade dos filmes, pela diversidade e pelo ineditismo”. E, claro, pela busca de produções de todos os Brasis.

Gramado escalou produção do Rio Grande do Norte (foi lá que Eliane Caffé empreendeu seu novo processo criativo e fez destacar-se, no elenco, a potiguar Titina Medeiros, do grupo teatral Clows de Shakespeare), de Goiás, do Paraná (a sequência do badalado “Estômago”) e do Rio de Janeiro (a “Pasárgada” de Dira Paes). São Paulo, que já teve representante na curadoria gramadiana, perdeu a vaga, mas tem crédito geográfico no filme de Anna Muylaert, no de Aly Muritiba e no de Juliana Rojas (este, em parceria com o Mato Grosso do Sul).

A competição gaúcha de longas-metragens também vem quente. A mais quente desde que o Gauchão transformou-se, além de vitrine de curtas, em vitrine de longas.

Para começar, traz dois filmes gaúchos que projetaram o estado em festivais internacionais ou nacionais. O híbrido “A Transformação de Canuto”, de Ariel Kuaray Ortega e Ernesto Carvalho, representante de São Miguel das Missões, ganhou dois prêmios em mostra do IDFA, o poderoso Festival Internacional de Documentários de Amsterdã. Acumulou troféus Candango no Festival de Brasília e venceu o Festival da Fronteira, em Bagé (e Livramento).

Quem pensa que o filme é pernambucano está certo pela metade. Sim, “Canuto” é fruto de parceria entre indígenas gaúchos e integrantes do seminal coletivo Vídeo nas Aldeias (sediado em Olinda). A trama nasceu do imaginário do próprio Ariel, integrante do Coletivo Mbya-Guarani, criado em 2007. Até a argentina Lucrécia Martel viu o longa missioneiro, ainda em processo, e deu palpites em sua composição. Palpites aceitos com generosa receptividade. Tem, portanto, cinema indígena, vindo da região de catequizadores dos Sete Povos das Missões, na competição de Gramado.

“Memórias de um Esclerosado”, da dupla Thaís Fernandes e Rafael Corrêa (Porto Alegre), conquistou, mês passado o Calunga de melhor filme no Cine PE, festival de Pernambuco. No centro da narrativa está o cáustico Rafa Corrêa, desenhista, cartunista e chargista, que, por esclerose múltipla, perdeu os movimentos. Mas, de sua cadeira de rodas, vive sem apelo à piedade alheia, criando sua arte e até “bailando” com um sapo (nesse caso, com dublê de corpo, emprestado pelo irmão).

“Até que a Música Pare”, da festejada Cristiane Oliveira (de “Mulher do Pai”), representante das cidades de Nova Roma do Sul, Antônio Prado, Nova Bassano e Veranópolis, empreende sensível mergulho na vida interiorana do Rio Grande. O filme participou da Mostra Internacional de São Paulo.

Completam a competição do cada vez mais badalado (e lotado) Gaúchão, os filmes “Um Corpo Só”, de Cacá Nazário (Porto Alegre), e “Infimundo”, de Bruno Martins e Diego Muller, representando Lajeado, Santa Cruz do Sul e Sinimbu.

“Filhos do Mangue”, de Eliane Caffé

Vejam que o comando de Gramado, o IeCine (Instituto Estadual de Cinema) e os realizadores, orgulhosamente, anunciam as cidades onde atuaram como território geográfico gerador de seus filmes. É o Rio Grande do Sul se apresentando como estado agregador de 497 municípios, unidos em memória dos que morreram e solidariedade aos que foram desabrigados pelas enchentes.

Detalhe importante: o melhor curta e o melhor longa gaúcho receberão prêmio em dinheiro da EBC-TV Brasil (Empresa Brasileira de Comunicação). Na coletiva de imprensa que anunciou os selecionados (e os premiados com troféus especiais), Rosa Helena Volk, presidente da GramadoTur, festejou a volta da Petrobras à lista de patrocinadores do festival. Sinal de que o Governo Federal quer, além de apoiar eventos culturais que difundam a cultura brasileira e geram emprego, dar suporte ao estado sulista vitimado pela tragédia das enchentes. Petrobras e, agora, a EBC dão, pois, sua contribuição.

A quinquagésima-segunda edição do mais badalado festival de cinema do país acontecerá de 9 a 17 de agosto, na Serra Gaúcha. E justo por causa das enchentes, ele teve que adaptar-se à nova realidade. Com o Aeroporto Salgado Filho, de Porto Alegre, interditado, o jeito é buscar alternativas. Os convidados (o número será menor que em anos anteriores) deverão chegar à Serra Gaúcha vindos de Caxias do Sul (que conta com aeroporto de menor porte) ou da Base Aérea de Canoas. Ou de carro. Ou ônibus.

A nova estratégia exigiu a transferencia da badalada competição de curtas-metragens nacionais para a tela do Canal Brasil, parceiro histórico do evento. Trocando em miúdos: os filmes de curta duração serão exibidos por uma emissora de TV, a mesma que, nos dois últimos anos, adotou a competição de longas documentais.

Na tela do Palácio dos Festivais serão projetados os longas nacionais, os longas e curtas gaúchos, os filmes convidados da noite inaugural (“Motel Destino”, do cearense-argelino Karim Aïnouz, que participou de Cannes) e, no encerramento, “Virgínia e Adelaide”, da dupla Jorge Furtado e Yasmin Thayná.

O diretor de “Ilha das Flores” receberá o Troféu Eduardo Abelim por sua trajetória no cinema. Matheus Nachtergaele, ator e cineasta, o cobiçado Oscarito. O criador de João Grilo, que no final do ano volta às telas, ao lado de Chicó (Selton Mello), em “O Auto da Compadecida 2”, escrito por Jorge Furtado (e Guel Arraes), deve encantar a todos com seu jogo de Cintura-Fina e elaborado poder verbal.

Gramado assistirá, também, ao filme “Filhos de Bach”, de Ansgar Ahlers, pois a Serra Gaúcha está comemorando os 200 anos da imigração alemã. Por isso, o Kikito de Cristal, produzido em fábrica gramadense, será outorgado à produtora germânica Mariëtte Russenbeek.

O cineasta Ansgar Ahlers, que filmou a busca de professor tedesco (Edgar Selkge) por suposta partitura de Joham Sebastian Bach, perdida no Brasil, integrará o júri. Este projeto, que uniu capitais alemães e brasileiras (via Conspiração Filmes), teve Brasília como epicentro e Ouro Preto como principal locação. Ashlers é casado com uma cidadã brasiliense.

Para mostrar que segue antenado com o mundo da TV e do streaming, o festival gaúcho vai apresentar o primeiro capítulo da série “Cidade de Deus – A Luta Não Para”, escrita por Sérgio Machado e trupe, a partir da obra de Paulo Lins. Na produção, a poderosa O2, de Fernando Meirelles, para a mais poderosa, ainda, HBO. Ano passado, o mesmo Muritiba, ao lado de Fábio Mendonça, causou furor na Serra Gaúcha com o adrenalinado capítulo inicial de “Cangaço Novo”, série que figura entre os finalistas ao Prêmio Grande Otelo (Melhores do Cinema e da TV brasileiros).

Os documentários de longa-metragem e os curtas brasileiros selecionados para a edição de número 52 de Gramado serão anunciados pelo comando do festival, em solenidade, em São Paulo, no dia 17 de julho. No dia seguinte, no Rio de Janeiro, com participação de Caio Blat, será anunciado o nome do artista laureado com o Troféu Cidade de Gramado. Os premiados com os troféus Sirmar Antunes e Leonardo Machado, dedicados ambos a artistas gaúchos, serão anunciados em ocasião oportuna.

Confira os selecionados:

Longa-metragem brasileiro

. “Filhos do Mangue”, de Eliane Caffé (RN)
. “Cidade; Campo”, de Juliana Rojas (SP-MS)
. “Pasárgada”, de Dira Paes (RJ)
. “O Clube das Mulheres de Negócios”, de Anna Muylaert (SP)
. “Oeste Outra Vez”, de Érico Rassi (GO)
. “Estômago 2 – O Poderoso Chef”, de Marcos Jorge (PR)
. “Barba Ensopada de Sangue”, de Aly Muritiba (SP)

Longa-metragem gaúcho

. “Até que a Música Pare”, de Cristiane Oliveira (Nova Roma do Sul, Antônio Prado, Nova Bassano e Veranópolis)
. “A Transformação de Canuto”, de Ariel Kuaray Ortega e Ernesto Carvalho (São Miguel das Missões)
. “Infimundo”, de Bruno Martins e Diego Muller (Lajeado, Santa Cruz do Sul e Sinimbu)
. “Um Corpo Só”, de Cacá Nazário (Porto Alegre)
. “Memórias de um Esclerosado”, de Thais Fernandes e Rafael Corrêa (Porto Alegre)

Curta-metragem gaúcho

. “A um Gole da Eternidade”, de Camila de Moraes e Paulo Ricardo de Moraes (Novo Hamburgo). “Natal”, de Alan Orlando (Santa Maria)
. “Pastrana”, Melissa Brogni e Gabriel Motta ( Novo Hamburgo)
. “Cassino”, de Gianluca Cozza (Rio Grande)
. “Zagêro”, de Victor Di Marco e Márcio Picoli (Bagé e Porto Alegre)
. “Janeiro”, de Boca Migotto (Porto Alegre)
. “Correnteza”, de Diego Müller e Pablo Müller (Porto Alegre)
. “Não Tem Mar nessa Cidade”, de Manu Zilveti ( Pelotas)
. “Chibo”, de Gabriela Poester e Henrique Lahude (Tiradentes do Sul)
. “Flor”, de Joana Bernardes (Esteio)
. “Viagem para Salvador”, de João Pedro Fiúza (São Leopoldo e Porto Alegre)
. “Posso Contar nos Dedos”, de Victória Kaminski (Pelotas)
. “Entrega”, de Luiz Azambuja e Pedro Presser (Porto Alegre)
. “Noz Pecã”, de Aline Gutierres (Itaqui e Porto Alegre)
. “Está Tudo Bem”, de Rodrigo Herzog (Porto Alegre)
. “Envergo mas Não Quebro”, de Tatiana Sager (Porto Alegre)

One thought on “Mulheres dominam competição pelo Kikito no Festival de Gramado “da superação”

  • 10 de julho de 2024 em 00:38
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    Maria Caetano 4 mulheres na Direção, quanto orgulho de ter companheiras fortes, determinadas, que lutam pelos nossos direitos, protagonistas no Cinema Nacional. Já era hora de virar essa chave. E virão muitas conquistas, muitos Quiquitos, muito reconhecimento de nossa luta. Adeus limbo. Queremos brilhar e ter visibilidade…..

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