O cearense “Quando Eu me Encontrar” faz de Chico Buarque seu roteirista involuntário
Por Maria do Rosário Caetano, de Vitória (ES)
A ficção “Quando Eu me Encontrar” (foto), drama das cearenses Amanda Pontes e Michelline Helena, entrou na disputa pelo Troféu Vitória com grande força. Tornou-se o rival mais forte do capixaba “Presença”, de Erly Vieira Jr.
Um dos troféus do Festival de Cinema de Vitória está praticamente garantido — o de melhor atriz para a baiana Luciana Souza, a evangélica de “O Pai Ó”, de Monique Gardenberg, e uma das estrelas do Bando de Teatro Olodum. Seu desempenho no longa-metragem cearense é notável. O filme deve triunfar também na categoria “melhor roteiro”, por sua fina (e afetiva) ourivesaria.
Amanda e Michelline, roteiristas experimentadas, tecem, de forma minimalista, as complexas relações de mulheres de três gerações. Marluce (Luciana Souza), sempre sentiu-se abandonada pela mãe, Dona Iolanda (Adna Oliveira). No tempo presente, numa metrópole nordestina (Fortaleza), ela é surpreendida pela filha mais velha, Dayanne (voz de Larissa Goes), que abandonou o lar deixando um lacônico bilhete. A jovem abandonou, também, o noivo Antônio, empregado modelo de uma sapataria (David Santos) e a irmã mais nova, Mariana (Pipa). Sem fornecer nenhuma explicação para seu gesto desestabilizador.
Marluce é uma trabalhadora incansável — ao longo do dia, cuida da lanchonete de um colégio, e à noite vende comida em barraca de rua. Desdobra-se, fibra por fibra, para que a caçula Mariana estude, como bolsista, num colégio de elite. E seja alguém na vida.
Amanda e Michelline, estreantes no longa-metragem, reuniram, além da baiana Luciana Souza, elenco dos mais promissores. Caso da jovem Pipa, dos atores David Santos e Lucas Limeira (este, protagonista, junto com Carlos Francisco, de “Estranho Caminho”, de Guto Parente) e as cantoras (ou melhor, ‘cantrizes’) Adna Oliveira e Di Ferreira. A primeira interpreta a mãe de Marluce (e avó de Dayanne e Mariana) e protagoniza cena notável, uma difícil D.R. com a filha, marcada por ressentimentos.
Se a sequência é muito bem construída, o que virá a seguir constitui o que o filme tem de melhor. As duas mulheres não se entendem. Marluce abandona a periferia de Fortaleza, onde está a casa da mãe, toma um ônibus e transforma seu rosto numa verdadeira “geografia” de desalentos.
Uma voz (embora o público não saiba, que vem da ‘cantriz’ Adna Oliveira) entoa os versos lancinantes de “Uma Canção Desnaturada”, de Chico Buarque. Que podemos definir como co-roteirista involuntário do filme. Ele já havia “entrado” na narrativa com os versos de “Trocando em Miúdos” escandidos com fina ironia pela personagem de Di Ferreira, a jovial e efusiva Cecília, cantora-da-noite. Com tais e buarqueanos versos, ela aproveitava para ironizar a dor do inconsolável Antônio, desolado com o desaparecimento da noiva Dayanne.
Pois a improvável dupla Luciana Souza e Chico Buarque constrói sequência de antologia. A filha-mãe permanece em silêncio, (quase) sozinha dentro do ônibus. E a voz profunda de Adna Oliveira entoa: “Te ver as pernas bambas, curumim/ Batendo com a moleira/ Te emporcalhando inteira/ E eu te negar meu colo/ Recuperar as noites, curumim/ Que atravessei em claro/ Ignorar teu choro / E só cuidar de mim” (…).
Marluce é só introspecção. Antônio é um ressentido teimoso. Não aceita, por nada desse mundo, que a noiva o tenha abandonado. E cobrará de Cecília informações que ela não lhe fornecerá, por mais que ele insista.
O público capixaba, que soube da origem da cearense-adotiva Di Ferreira — ela nasceu, 35 anos atrás, na região de Cariacica — divertiu-se muito com sequência protagonizada por Cecília e Antônio. Os dois chegam juntos à casa do rapaz. Sobre o colchão destinado aos noivos, que o rapaz mantinha teimosamente embalado em plástico, Cecília, depois de bebedeira na praia, fará o que o espectador espera que ela faça. Para desespero do vendedor de sapatos.
“Quando Eu me Encontrar” soma Cartola (“Preciso te Encontrar”, presente na trilha e força inseminadora do título do filme) à cena jovem cearense (a banda Pulso de Marte, que embala festa colegial-adolescente na qual Mariana se esbalda), e à cena forrozeira, já que esse é o gênero preferido da maior amiga de Marluce, interpretada por Cláudia Pires (ex-dançarina, na vida real, da banda de Beto Barbosa). A trilha incidental é dos cearenses Victor Cozilhos e João Victor Barroso.
O filme nordestino, que estreou ano passado no Olhar de Cinema, em Curitiba, encerra em Vitória sua carreira pelos festivais e deve chegar ao circuito exibidor nos próximos meses.
TRÊS CANTORAS — Mulheres que somam os ofícios de cantoras e atrizes se destacam no Festival de Cinema de Vitória. Além da sexagenária Adna Oliveira e da balzaquiana Di Ferreira, radicadas no Ceará, outra “cantriz” encantou os espectadores presentes no Cine-Teatro Sesc Glória, a veteraníssima Selma Lopes, do curta-metragem “Eu Fui Assistente do Eduardo Coutinho”, de Allan Ribeiro. Hoje, Selma, que foi casada por 15 anos com o trapalhão Zacarias (1934-1990), pai de seu filho, soma 95 anos de fértil existência. Allan a filmou 15 anos atrás, para outro curta, e ela, que é também dubladora, cantarolou “La Vie en Rose”, um dos maiores sucessos de Edith Piaf.
WATSON MACEDO GAY – O cineasta Jocimar Dias Jr., que dirigiu, com Éri Sarmento, o curta “Vollúpya” (da competição pelo Troféu Vitória), contou, no debate dos filmes da noite anterior, que realizou sua tese de doutorado, na UFF (Universidade Federal Fluminense), sobre a trajetória do cineasta Watson Macedo (1918-1981). O diretor de “Carnaval no Fogo” e “Aviso aos Navegantes” formou com Carlos Manga e José Carlos Burle, a trinca de ouro da chanchada. A tese, intitulada “Esse Mundo é uma Frescura! – Leituras Frescas da Chanchada de Watson Macedo“, vai virar livro (o texto está sendo adaptado e ampliado) e, depois, filme (um longa documental).
BETTY FARIA E SUA NETA – A jovem realizadora Giulia Butler, filha de Alessandra Marzo e neta de Betty Faria e Cláudio Marzo, realizou, como aluna da PUC-Rio, um curta protagonizado por sua avó — “Como Chorar sem Derreter” (da competição pelo Troféu Vitória). Atrás desse nome enigmático, está história vivenciada na vida real pela atriz, hoje com 82 anos. Ela teve problema na vista (olhos secos). A partir desse fato, Giulia escreveu roteiro com ingredientes fantásticos. Uma menina (Nina Dahmer) resolve inventar máquina capaz de trazer de volta as lágrimas aos olhos ressecados da avó (a própria Betty, em desempenho notável).
TRÊS CAPIXABAS – Mais uma noite de lotação esgotada no Festival de Vitória. A fila dava volta no quarteirão em que se situa o histórico Cine-Teatro Sesc Glória. Só se vira algo semelhante na noite inaugural, um sábado, dedicada inteira à prata da casa (o cinema capixaba, com quatro curtas e um longa-metragem). Mas numa terça-feira, sem astros nos elencos (exceção para a octogenária Betty Faria, em curta do qual pouco se sabia)! A explicação de tamanho sucesso veio quando representantes das equipes subiram ao palco. Um deles (delas) se chama Saskia Sá, cineasta e escritora de quase 60 anos, presença marcante na vida cultural do estado. Ela apresentou, com sua numerosa equipe, o curta “Dias de Pouco Pão e Zero Sonho”, baseado em conto de sua autoria. Outra presença capixaba no palco foi a de Edileuza Penha de Souza, que dirigiu “Vão das Almas” com Santiago Dellape. Radicada em Brasília desde 2005, Edileuza estudou na Universidade Federal do Espírito Santo e é coautora do livro “Resistência Negra na Grande Vitória: Dos Quilombos ao Movimento Negro”, fruto de parceria com a homenageada do Festival, a atriz, poeta e historiadora Suely Bispo. Por fim, a cantora Di Ferreira, do elenco cearense de “Quando Eu me Encontrar” relembrou sua origem. “Sou capixaba de nascimento e muitos de meus familiares estão aqui nesse belo cinema”.
CURTAS NACIONAIS – A competição de curtas-metragens brasileiros, que reúne 16 títulos, ainda não tem um favorito. Além dos quatro filmes exibidos nessa terça-feira, 23 de julho (“Como Chorar sem Derreter”, “Vollúpya”, “Vão das Almas” e “Dias de Pouco Pão e Zero Sonhos”), foram exibidos o fluminense “Viventes”, soma de realismo a ingredientes fantásticos, dirigido por Fabrício Basílio; o gaúcho “Zagêro”, de feitio performático, protagonizado e codirigido por Victor di Março (com Márcio Picoli), vencedor do Cine PE, os capixabas “Travessia” (sobre partos de mulheres indígenas, que abandonam as tradições de seu povo e preferem o parto hospitalar) e “Saudades da Cor”, animação de Arthur Fiel, o paulistano “Quinze Quase Dezesseis”, de Thaís Fujinaga (sobre assédio em ambiente escolar), o alagoano “Samuel foi Trabalhar”, de Janderson Felipe e Lucas Litrento, que vê as agruras do “precariado” num mix de comédia e terror, e os cariocas “Se Eu Tô Aqui é por Mistério”, de corte tecno-futurista de Clari Ribeiro, e “Eu Fui Assistente do Eduardo Coutinho”, documentário de Allan Ribeiro, vencedor da Mostra Tiradentes.
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