“Sabedoria” indígena enfrenta poder pentecostal em documentário que representa Olinda no Festival de Vitória
Por Maria do Rosário Caetano, de Vitória (ES)
O longa-metragem “Sekhdese” [foto] (“Sabedoria”), das pernambucanas Graciela Guarani e Alice Gouveia, encerrou a mostra competitiva do Festival de Cinema de Vitória, em noite que contou com os curtas “Pássaro Memória”, do carioca Leonardo Martinelli, “Quebrante”, de Janaína Wagner, brasileira radicada em Roubaix, na França, “Axé, meu Amor”, do paraibano Thiago Costa, e “Deusa Menina”, da capixaba Juane Vaillant.
O longa documental da dupla Guarani e Gouveia — a primeira, realizadora indígena do Mato Grosso, e a segunda, paulista, ambas radicadas em Pernambuco — aborda temas efervescentes. Além da luta pela terra, as investidas de igrejas pentecostais nas aldeias, em radical trabalho de conquista e catequese de novos fiéis.
Para registrar o que se passa junto a comunidades indígenas pernambucanas, onde templos foram erguidos por diversos pastores, as duas diretoras, que também assinam a fotografia, ouviram em especial vozes femininas. São as mulheres que descrevem a ação de pastores empenhados em pregar o Evangelho e combater, sem trégua, práticas religiosas ancestrais dos povos originários.
Guarani e Gouveia foram também a Brasília, onde registraram a terceira Marcha das Mulheres Indígenas, ocorrida em setembro de 2023. Durante três dias, 8 mil mulheres (há 900 mil indígenas no Brasil) acamparam no coração da cidade para cobrar políticas públicas (do Governo Lula 3) para seus povos.
As imagens realizadas pelas cineastas foram somadas a registros de arquivo. Caso do assassinato do Cacique Xikão Xukuru, ocorrida em Pesqueira-PE, há 25 anos, e de material depositado na internet. Um destes traz a então ministra de Bolsonaro, Damares Alves, dizendo que chegara a hora de evangelizar o país, tomar os Três Poderes, enfim, acabar com o Estado laico. Um pastor eletrônico prega, com convicção, a conversão ao evangelismo pentecostal.
Uma das mulheres indígenas, ouvidas pelo filme, relata ameaças sofridas para que abandonem rituais ancestrais e passem a seguir o “bom caminho”, “o único que trará a salvação”. Os cultos pentecostais, enfim.
No final do documentário (de 78 minutos), nos deparamos com uma anciã, Joaquina Pankararu — que morreria centenária, pouco depois de dar seu testemunho a “Sekhdere” (nome original do filme, advindo da língua Fulni-ô). Ela contará que seu povo se embrenhava nas serras para ter o direito de, escondido, dedicar-se à Toré e aos cultos da Jurema. Se o fizessem em espaços abertos, seriam perseguidos.
O filme abre um grande leque de temas ligados à posse da terra, à necessidade da água e às consequências do colonialismo, que fez do etnocídio prática adotada (e jamais abandonada) no Brasil desde o século XVI.
No debate do documentário, no Festival de Vitória, a produtora de “Sekhdere” Carla Francine, da Casa de Cinema de Olinda, abordou a complexa atuação das igrejas pentecostais nas aldeias, quando questionada se o filme não estaria estigmatizando igrejas evangélicas.
— Temos consciência de que há evangélicos progressistas. Mas os que atuam nas aldeias em Pernambuco, onde filmamos, são intolerantes. Eles não aceitam a cultura dos indígenas. Na internet encontramos uma evangélica dizendo que, com a pregação religiosa deles, iriam deixar os “porquinhos” limpos para Jesus.
“A cultura que sustenta o etnocídio é tão arraigada” — exemplificou — “que, na alagoana Palmeira dos Índios, a cada eleição, surge um vereador propondo tirar o ‘dos Índios’ da identificação do município.
As intenções das realizadoras de “Sekhdere” são relevantes e necessárias. Há, no filme, depoimentos fortes e muito importantes. Mas alguns deles são muito longos e se fazem presentes em registros desprovidos de ousadia e criatividade. A primeira parte do filme traz ritmo arrastado, embora de vez em quando apareçam belas imagens (algumas de arquivo). E o filme só ganha alguma potência na segunda parte, culminado com o depoimento de Joaquina Pankararu. Falta a ele, porém, a criatividade e aprofundamento dos grandes documentários de Vincent Carelli (“Corumbiara”, “Martírio”), “A Invenção do Outro” (Bruno Jorge) e “A Transformação de Canuto”, de Ariel Kuaray Ortega e Ernesto Carvalho.
O debate dos curtas-metragens da penúltima noite do Festival de Vitória foi movimentado. O diretor Leonardo Martinelli, de “Pássaro Memória”, se disse satisfeito com o resultado do filme, que — em tons azulados — narra a busca empreendida por Lua, uma mulher trans (Ayla Gabriela), por um pássaro (Memória) perdido. Em sua busca, ela enfrenta cidade hostil, que ergue estátuas para os que exterminam corpos dissidentes. E encontra um zelador disposto a ajudá-la (Henrique Bulhões). Mas o tom da narrativa é melancólico. E os números de dança, que injetaram vida e rebeldia em “Fantasma Neon”, o premiadíssimo filme anterior do jovem cineasta, não nos contagiam.
Martinelli, que trabalha roteiro da versão longa-metragem de “Fantasma Neon”, lembrou que vem do Andaraí, bairro popular da Zona Norte do Rio de Janeiro, e que, sendo filho de família modesta, foi muito bom assistir à consagração de seu quinto curta-metragem (“Pássaro Memória” é o sexto). Que os pais ficaram orgulhosos do trabalho dele. Mas reafirmou que fez “o que quis” no novo curta, que compete em Vitória. Ou seja, mostrar a relação de seus personagens com a cidade. E citou suas fontes de inspiração e dialogo: o francês Jacques Tati e o português Pedro Costa.
Janaína Wagner, de 34 anos, é artista visual e cineasta. Dirigiu doze filmes, muitos deles para integrar suas instalações. Um de seus curtas-metragens, “Curupira é a Máquina do Destino” (2021), dialoga com “Iracema, uma Transa Amazônica”, de Bodanzky e Senna.
“Quebrante”, que participa do Festival de Vitória, revisita as ruínas da Transamazônica (BR-230) em busca de seus fantasmas. E o faz inspirada livremente em projeto de Robert Smithson (“The Truly Indergtound Cinema”, 1971) e em Maya Daren (“The Very Eye of the Nigth”, 1958).
Em Rurópolis, no Pará, criada para ser cidade modelo da megalomania dos governos militares, responsáveis pela estrada Transamazônica, ela encontra Dona Erismar, a “mulher das cavernas”. E promove, de forma lúdica e refinadamente, um diálogo entre as pedras da floresta e a lua, com direito a citação da “lua de Méliès” (“Viagem à Lua”, 1902).
Quarto curta-metragem de Thiago Costa, “Axé, meu Amor”, vem enfrentando problema semelhante ao de Leonardo Martinelli. O curta anterior do realizador paraibano, “Calunga Maior”, ganhou dezenas de prêmios nos mais importantes festivais brasileiros. Seu registro era poético e instigante. Já “Axé, meu Amor”, que sequencia o mergulho do diretor na temática afro-brasileira (em especial em religiões de matriz africana) não vem obtendo o mesmo reconhecimento.
O filme mostra Mãe Bené (Mãe Renilda, mãe de santo e radialista), acordando de um pesadelo e enfrentando desentendimentos com parente evangélico, que quer vender imóvel comum aos dois. Ela fica sabendo que sua Mãe de Santo está entre a vida e a morte. Para impedir perda tão grande, ela precisará fazer “obrigação de iniciada”, já que se passaram 21 anos. Ela conseguirá cumprir tal obrigação em tempo hábil e realizar sua busca do sagrado?
“Deusa Menina”, de Juane Vaillant, é uma fantasia afro-brasileira, protagonizada pela menina Catharina, interpretada pela espertíssima e cativante Lavínia Serafim. Ela, que é negra e tem dez anos, foi a primeira pessoa a nascer no Planeta Ilha. Dois deuses — o Tempo (Billi Bantus) e Destempo (Luciene Camargo) — acreditam que a menina possa vir a ser uma nova divindade. Por isso, passam a conviver com ela para se certificarem de que fizeram a escolha certa.
A fotografia de William Rubim, a direção de arte de Roger Ghil, a Gegê (diretora do premiadíssimo “Remendo”), os figurinos coloridíssimos, a paisagem paradisíaca e o empenho contagiante de Lavínia Serafim constituem os pontos de atração do filme de Juane Vaillant.
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