“Barba Ensopada de Sangue” encerra competição de Gramado e comprova talento do jovem Gabriel Leone
Foto: Equipe de “Barba Ensopada de Sangue” © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)
O filme “Barba Ensopada de Sangue”, de Aly Muritiba, protagonizado por Gabriel Leone e Thainá Duarte, encerrou a competição de longas ficcionais brasileiros da quinquagésima-segunda edição do Festival de Gramado. O vencedor do Troféu Kikito será conhecido nesse sábado, em cerimônia que será transmitida, para todo o país, pelo Canal Brasil (a partir das 20h50).
A noite dessa sexta-feira será dedicada ao cinema gaúcho. Primeiro, com a exibição de “Virgínia e Adelaide”, longa-metragem de Jorge Furtado e Yasmin Thayná, sobre duas psicanalistas, a afro-brasileira Virgínia Bicudo, que foi paciente da judia-alemã Adelaide Koch. Adelheid (seu nome original) desembarcou no Brasil na década de 1930, fugindo do nazismo. Aqui dedicou-se à psicanálise e teve Virginia como paciente. Além da relação médico-profissional, as duas cultivaram grande e longa amizade.
O realizador gaúcho, diretor de “Ilha das Flores” e “O Homem que Copiava”, receberá o Troféu Eduardo Abelin por sua trajetória dedicada ao audiovisual brasileiro. É o reconhecimento em seu estado natal, que ele nunca abandonou, nem quando tornou-se uma das estrelas do Núcleo Guel Arraes, na Rede Globo.
Na segunda parte da Noite Gaúcha, serão entregues os troféus Iecine e EBC aos melhores longas-metragens produzidos no Rio Grande do Sul. E o ator Nelson Diniz, presente em muitos filmes de Jorge Furtado, receberá o Troféu Leonardo Machado, por sua larga carreira no cinema e no teatro.
A sessão do último concorrente de Gramado — “Barba Ensopada de Sangue”, sétimo longa-metragem de Aly Muritiba — levou ao palco, além de atores e equipe artístico-técnica, o escritor Daniel Galera, autor do livro-matriz do filme, e a cadela Texas, que interpreta Beta, companheira inseparável de Gabriel (Gabriel Leone).
O sucesso do animal começou no tapete vermelho e prosseguiu dentro do Palácio dos Festivais. Texas subiu, com seu tutor, ao palco e comportou-se muito bem. Serena e silenciosa, não mostrou nenhuma alteração ou irritação. Foi fotografada como o cão francês de “Anatomia de uma Queda”, na noite do Oscar de Hollywood.
O filme de Aly Muritiba mostra a busca do jovem Gabriel por suas origens. E, principalmente, pela figura misteriosa do avô. Ao perder o pai, ele se dirige para a praia de Armação (no romance, a catarinense Garapava), lugar habitado por gente rude, que guarda do avô do rapaz, as piores lembranças. O velho é definido como um louco, que só trouxe desgraças para o vilarejo litorâneo. A trama se constrói como um drama familiar, banhado em tintas de suspense.
Gabriel, que sofre de prosopagnosia, uma espécie de “cegueira facial” (não reconhece o rosto das pessoas, só um ou outro detalhe), encontrará em Jasmine, interpretada por Thainá Duarte, a namorada que o ajudará a enfrentar a hostilidade do lugar. Ela está grávida, de quem não sabemos, e também se sente sufocada pelos rancores e violência dos que a cercam. Incluindo a família.
Quarta adaptação de um romance de Daniel Galera, 45 anos, paulista criado no Rio Grande do Sul (com passagem por Santa Catarina), o filme não contou com a colaboração direta do escritor. Ele deu liberdade total a Aly Muritiba, assim como fizera com Beto Brant e Renato Ciasca. A dupla paulistana transformou “Até o Dia em que o Cão Morreu” no longa “Cão sem Dono”. O mesmo fez Roberto Gervitz com “Mãos de Cavalo”, matriz de “Prova de Coragem”, e Fernando Frahia com “Cordilheira”, origem de “Bem-vinda, Violeta”.
“Barba Ensopada de Sangue”, o único título literário preservado pelos diretores que recriaram romances de Daniel Galera no cinema, dialoga com a obra de Cormac McCarthy (1933-2023), autor de “Onde os Velhos Não Têm Vez“, origem do filme “Onde os Fracos Não Têm Vez” (Irmãos Coen, 2008). E, claro, evoca a atmosfera de “Moby Dick”, de Herman Melville. Além de ficcionista, Galera é tradutor de romances estadunidenses e britânicos. E um devoto da saga baleeira que fez de “Moby Dick” (1851) um clássico literário.
A brutalidade dos moradores de Armação, localidade que tem um passado dedicado à pesca da baleia, evoca o universo do escritor norte-americano. Em sua livre adaptação do romance, um drama familiar, Aly Muritiba encontrou inspiração para construir um thriller. E o fez em narrativa de 124 minutos, com imensos valores de produção e sólido elenco (destaque também para os coadjuvantes Roberto Berindelli, Ivo Müller e Ricardo Blat em aparição breve, mas matadora).
Impossível não destacar a fotografia de Inti Briones, a montagem de Karen Akerman e o design de som de Beto Vilares. Só um ponto causa desconforto no filme: a barba artificial de Gabriel Leone. “Tudo culpa de Michael Mann”, garantiu Aly Muritiba (ver flash abaixo).
“Barba Ensopada de Sangue”, que tem produção de Rodrigo Teixeira e faz parte de projeto de recriação cinematográfica de obras literárias, estreará primeiro nos cinemas. Depois integrará o acervo da Globoplay, uma das empresas que colaboraram com sua produção.
O serviço de streaming da Rede Globo entusiasmou-se com o trabalho do hiperprodutivo Aly Muritiba, quando fizeram, juntos, a série policial “O Caso Evandro”. O cineasta, que trabalha mais que remador de Ben-Hur (by Nelson Rodrigues) já terminou a série “Cidade de Deus – A Luta Continua” (estreia dia 25 próximo) e se prepara para gravar a segunda temporada de “Cangaço Novo”.
FLASHES
. A BARBA ENSOPADA DE SANGUE DE GABRIEL LEONE — Os densos pelos que cobrem o rosto de Gabriel, personagem de Gabriel Leone no filme de Aly Muritiba, são artificiais. Como o ator acabara de interpretar o piloto-galã Alfonso de Portago no filme “Ferrari”, de Michael Mann, era impossível esperar meses e meses, de forma que pudesse cultivar espessa e comprida barba, elemento essencial à trama do filme (desde o título). Muritiba lembrou que o cronograma estava estourado e Gabriel, nome do qual não abria mão, chegou em cima da hora. “Michael Mann tinha muito dinheiro para fazer seu filme, nós não. Jamais poderíamos esperar meses parados. Por isso, optamos pela barba artificial”. E mais, contou o diretor baiano-paranaense: “colocar, diariamente, a barba artificial consumia duas horas e atrasava o cronograma das filmagens. E atraso, em cinema, é sinônimo de custo. Gabriel (Leone) se ofereceu para madrugar, todos os dias, e submeter-se ao processo de colocação da barba de forma que estivesse pronto na hora do café da manhã junto com a equipe”. O sacrifício foi efetivado. Leone, hoje o mais requisitado dos jovens atores brasileiros (ele protagoniza “Senna”, mega-série da Netflix, em breve no streaming), externou sua satisfação com o filme, ao qual assistiu pela primeira vez. E sua alegria de estar em Gramado. Também pela primeira vez. E de poder homenagear o saudoso avô, gaúcho de nascimento e sentimento. O ator garantiu, durante o debate do filme, que o luminoso momento de sua carreira, no qual soma projetos nacionais (como a série “Dom”) e internacionais (“Ferrari” e “Senna”) não inflou seu ego. Para evitar que isso aconteça, o intérprete de 31 anos, garante tudo fazer para “manter os pés no chão”.
. THAINÁ DUARTE, A JASMINE DE ARMAÇÃO — A atriz paulista, que ganhou notoriedade como Dilvânia (irmã mais nova e muda de Dinorah/Alice Carvalho, na série “Cangaço Novo”), preparou, com muita dedicação, o sotaque catarinense de sua personagem. Ela foi, com antecedência, para Garapava (no filme, chamada Armação) para ouvir o “cantar” dos litorâneos. Aos 27 anos, a atriz de pele castanha e imensos olhos verdes, depois de ler as 400 páginas do livro de Daniel Galera, decidiu que deixaria o volume de lado. Queria liberdade para dar vida a Jasmine, jovem grávida, inserida em ambiente hostil. Ela recorreu à metáfora das baleias, que, na hora de parir se distanciam do macho, para proteger o filhote que virá. Por isso, sua personagem assumirá, como uma baleia prenhe, seu destino. Thainá, que atuou na série “Aruanas”, vai agora dedicar-se à segunda temporada de “Cangaço Novo”.
. VERA FISCHER, UMA BIOGRAFIA — A atriz catarinense Vera Fischer, de 73 anos, recebeu o Troféu Cidade de Gramado na última quarta-feira, 14 de agosto, nesse momento em que a Serra Gaúcha comemora os 200 Anos da Imigração Alemã no Brasil. De ascendência germânica, a efusiva atriz, escondida em um estranhíssimo vestido preto, esqueceu-se de evocar suas origens no palco do Palácio dos Festivais. Preferiu lembrar aos cineastas presentes que “adora fazer cinema e espera novos convites”. Antes de receber o Troféu, a protagonista de “Amor Estranho Amor” recebeu a imprensa em concorrida entrevista em sofisticado hotel gramadense. Ela, que fez tantas telenovelas, revelou que sua preferida é “Laços de Família”, de Manoel Carlos, e garantiu que sua vida “pode resultar em vibrante série de TV”. O material bruto — ponderou — está contido em quatro livros autobiográficos por ela escritos e já publicados. Um quinto volume está a caminho. Mas não há nada de concreto, por enquanto. Nenhum documentarista (ou ficcionista) se apresentou para formatar a série e apresentá-la a uma plataforma de streaming. Garantida, só a participação de Vera Fischer em documentário (“O Leblon de Manoel Carlos”), que a atriz Júlia Almeida, filha do teledramaturgo, está dirigindo e produzindo (com lançamento previsto para o YouTube). Manoel Carlos, de 91 anos, está aposentado e sofrendo Mal de Parkinson. Sua última telenovela, “Em Família”, foi ao ar em 2014.
. MARIËTTE RISSEMBEEK E O BRASIL — Outra homenageada do Festival de Gramado, a germânica (nascida na Holanda, em 1956) Mariëtte Rissembeek, fez jus ao Troféu Kikito de Cristal por suas ações em prol da difusão do cinema alemão no Brasil e vice-versa. Vestida com elegância e dona de discurso rico em informações e afetos, ela recebeu o Kikito de Cristal fabricado ano passado por sua antecessora Alice Braga. Na tarde de ontem, quinta-feira, 15 de agosto, a alemã participou da fabricação do Kikito que será entregue ano que vem, a outra personalidade internacional. No palco, ao agradecer o reconhecimento de Gramado, Mariette, que é produtora de cinema e foi diretora executiva do Festival de Berlim, historiou sua relação com o Brasil. “Tudo começou com o filme ‘FitzCarraldo’, de Werner Herzog, que era protagonizado por um louco alemão, mas foi filmado na Amazônia peruana e brasileira”. Depois viu o filme “Brincando nos Campos do Senhor”, de Hector Babenco, também filmado na Amazônia, e sentiu desejo de conhecer o Brasil. Quando “Central do Brasil”, de Walter Salles, conquistou o Urso de Ouro, em Berlim, surgiu um novo estímulo. E, para completar, ela colaborou na produção de longa documental de Mika Kaurismaki, sobre música popular brasileira. Como o finlandês morava no Rio de Janeiro, ela veio visitá-lo. E foi estimulada a esticar a viagem até a Bahia. Acabou aceitando novos convites para visitar o país. Num deles, representando a German Filmes, participou de atividade de fomento a coproduções entre Alemanha e Brasil. E, a convite de Renata Almeida, da Mostra Internacional de Cinema de SP, selecionou dez filmes alemães, seus preferidos, para exibição na capital paulista, em 2019. Ano passado voltou a SP para integrar o júri oficial da Mostra. A Gramado, que visita pela primeira vez, Mariëtte agradeceu, sempre abraçada com seu Kikito. Agradeceu pelo belo troféu (feito nos fornos da Cristais de Gramado) e pela hospitalidade. Prometeu voltar outras vezes.