David José, o ator que trocou a ribalta pela Unicamp, debate primórdios da TV com Lima Duarte

Por Maria do Rosário Caetano

Quem foi criança nos anos 1950, lembra-se do ator (e depois professor da Unicamp) David José, hoje com 82 anos, como o primeiro Pedrinho do “Sítio do Pica-Pau-Amarelo”. Anos da pioneira TV Tupi. O sucesso do garoto de pele morena e rosto expressivo foi tamanho, que ele só abandonou o posto quando era já um marmanjão de 17 anos.

Quem foi jovem na década de 1970, há de lembrar-se de David  por cena de fina picardia e obrigatório distanciamento brechtiano aplicados a seu personagem em “Arroz e Feijão” (episódio de Roberto Santos no delicioso longa, feito a muitas mãos, “Contos Eróticos”).

A trama da obra robertiana mostra a traição levada a cabo por Joana (Joana Fomm), esposa insatisfeita de Fernando (David José). Ele a deixa sozinha em casa, por longos dias, envolvida com filhos e afazeres domésticos. Ao ser convidada a fornecer almoço diário ao filho adolescente (e vindo da zona rural) de uma madrinha, ela ofertará ao rapaz outros de seus predicados. Os eróticos. O marido, ao voltar de ausência costumeira, desconfiará que algo está mudando nos almoços de seu lar. A esposa está exagerando no vasinho de flores, no tempero da comida.

Num segundo regresso, sem abrir a porta — portanto sem testemunhar o fato consumado —, o marido irá tourear, com sua jaqueta de couro, bicho chifrudo e imaginário. E gritar olé em plena rua.

A cena tornou-se emblemática. Representa bem o estilo do ator David José, que trocou os palcos, as telas dos cinemas e as telinhas da TV por sólida carreira acadêmica. E na respeitada Unicamp (Universidade de Campinas).

Na instituição paulista, ele se tornaria, com seus estudos, uma das referências da história da TV no Brasil. Afinal, foi dela um dos artífices infanto-juvenis. Lima Duarte, de mais de 90 anos, foi outro destacadíssimo artífice da linha de frente dos primeiros momentos de nossa televisão. Por isso, e por sua imensa dedicação ao veículo, ele estará, nessa quinta-feira, ao lado de David José, em debate na Cinemateca Brasileira (só para convidados). O público poderá fruir do encontro rememorativo pelo YouTube, pois a Cinemateca promoverá sua transmissão em tempo real. Estarão na mesa, com David e Lima, as atrizes Débora Duarte e Lígia Cortez e o dramaturgo Dionísio Jacob.

Depois do debate inaugural desse importante projeto de resgate de nossa memória televisiva e cinematográfica — fruto da união de forças da TV Cultura e da Cinemateca Brasileira — serão exibidos 12 curtas, médias ou longas-metragens que trazem David José no elenco (destaque para sua tripla parceria com o mestre Roberto Santos) ou na função de roteirista.

Todos os filmes foram restaurados e deverão fermentar o interesse de cinéfilos apegados à memória de nosso audiovisual. Mas dois deles, em especial, constituem vibrantes novidades até para os mais empedernidos ratos de cinemateca.

O mais surpreendente deles vem da França. Sim, David José, que estudava na Sorbonne, foi dirigido pelo gaulês Michel Gast, realizador de engajadíssimo longa-metragem protagonizado por Débora Duarte. A filha de Lima Duarte atuou ao lado de dois astros europeus: a italiana Léa Massari e o parisiense Jean Rochefort.

A sinopse do filme é daquelas que são capazes de levar um “patriota verde-amarelo” à loucura. Confiram: “Georges (Jean Rochefort), repórter televisivo francês, politicamente engajado, cultiva seu lado bon-vivant. Apesar de ter uma amante, Hélène (Lea Massari), ele continua dando vazão à sua face de homem mulherengo. Mas essa situação confortável será colocada à prova no dia em que ele contratar Céleste (Débora Duarte, então com 20 aninhos) como sua empregada doméstica. Imigrante portuguesa, ela logo se revelará (tcham, tcham, tcham!) uma militante marxista-leninista, envolvida em grupos políticos que lutam contra o regime de Salazar, o ditador de Portugal”.

É pouco, ou quer mais? As décadas de 1960 e 1970 configuraram um tempo em que não se brincava em serviço. Política na veia e nas tramas dos filmes de jovens, e nem tão jovens, realizadores. Michel Gast (1930-2022), então com 39 anos, recorria a uma revolucionária lusitana para defender a mudança que, acreditava-se, viria.

A outra surpresa da Mostra David José está presente em episódio do longa “Os Marginais”, produção vinda de Minas Gerais, do efervescente ano de 1968. O diretor Moisés Kendler ambientou sua trama, intitulada “Papo Amarelo”, nos morros cariocas. E coube ao David de pele acobreada dar vida ao marginal Papo Amarelo, que atua junto a seus comparsas Maleita, Alemão e Couve-Flor. No elenco, cinco divindades da cultura brasileira: Grande Otelo, Cartola, Dona Zica, Paulo Cesar Peréio e Emanuel Cavalcanti.

David José atuou, também, num típico ‘nordestern’ (“Lampião, Rei do Cangaço”), em curta-metragem de alma paulo-emiliana (“Tem Coca-Cola no Vatapá”), em filme baseado em canção de Gilberto Gil (“Domingo no Parque”) e até no derradeiro filme de Joaquim Pedro de Andrade (“O Homem do Pau Brasil”).

A face acadêmica de David José também será destacada com o lançamento (e autógrafos) de quatro livros, sendo três reedições e um inédito: “A TV Antes do VT: Teleteatro ao Vivo na TV Tupi de São Paulo – 1950-1960”, “O Espetáculo da Cultura: Teatro e TV em São Paulo – 1940-1950” e os volumes 1 e 2 (este inédito), de “Os Pioneiros do Rádio e da Televisão no Brasil”, todos publicados pela Ateliê Editorial.

Confira a programação:

Quinta-feira, 15 de agosto (Sessão para convidados)
Bate-papo com David José, Lima Duarte, Débora Duarte, Dionísio Jacob e Ligia Cortez. Com transmissão ao vivo no canal YouTube da Cinemateca Brasileira.

Sexta-feira, 16 de agosto

17h30 – “PAPO AMARELO” (MG-Brasil, 1968, 65 min., P&B, 14 anos). Direção: Moisés Kendler. Com: David José, Carlos Prata, Emanuel Cavalcanti, Francisca Thereza, Paulo Cesar Pereio, Grande Otelo, Zica, Cartola – Papo Amarelo, bandido dos morros cariocas, vive os últimos episódios de sua vida atribulada. Acompanhado por Maleita, Alemão e Couve-Flor, vive entre assaltos, perseguições e bacanais, e sua carreira é abordada de forma sensacionalista por jornais popularescos. O filme é um dos episódios do longa-metragem “Os Marginais” (1968).

19h00- CÉLESTE (França, Itália, 1970, 90 min., cor, 14 anos). Direção: Michel Gast. Com Débora Duarte, Jean Rochefort, Lea Massari, David José, Anne-Marie Coffinet, Philippe Ogouz, Gabriel Cattand, Philippe Dumat, Perrette Pradier, Raymond Gérôme.

21h00 – UMA ESTRANHA HISTÓRIA DE AMOR (São Paulo, Brasil, 1979, 97 min., cor, 18 anos). Direção: John Doo. Com Selma Egrei, Ney Latorraca, David José, Lady Francisco, Kenia Cristina, Ricardo Araujo, Claudio Cavalcanti – Maria, professora primária, chega a uma cidade do interior para lecionar num internato de crianças. Lá, trava amizade com o professor Daniel, um homem terno e afetuoso que ama as crianças e a natureza. Entre suas várias alunas uma lhe desperta a atenção: Raquel, uma menina estranha e sensível, capaz de premonições.

Sábado, 17 de agosto

13h00 -DOMINGO NO PARQUE (RJ, Brasil, 1968, 11 minutos, cor). Direção: Isaias Almada. Com Gianfrancesco Guarnieri, David José, Vera Lucia Leal – Adaptação de uma história de amor na Bahia para São Paulo. João e José, um pedreiro e o outro feirante, disputam o amor de Juliana, que termina em tragédia. Inspirado na canção de Gilberto Gil.

ARROZ E FEIJÃO (SP, Brasil, 1977, 37 min., 16 anos). Direção: Roberto Santos. Com Joana Fomm, Cássio R. Martins, David José – Mário, um jovem de 17 anos, mora em São Paulo muito longe de seu trabalho, numa fábrica de manequins. Para economizar, sua mãe, Mariana, decide que ele irá almoçar todos os dias na casa de sua afilhada Joana. O marido enciumado de Joana reluta, mas acaba aceitando a presença do jovem, que terá que pagar rigidamente pelas refeições. A ausência do marido, que trabalha fora, deixa Joana carente. Mário e Joana começam a se sentir atraídos um pelo outro. O filme é um dos episódios do longa-metragem “Contos Eróticos” (1977-79).

TEM COCA-COLA NO VATAPÁ (SP, Brasil, 1975 | 34 min., cor). Direção: Pedro Farkas e Rogério Corrêa. Com Paulo Emílio Salles Gomes, Clodomiro Bacellar, David José, Carlos Rosset, Luna Alkalay, Rudá de Andrade – Documentário-ficção sobre a história da ocupação do mercado cinematográfico brasileiro pelo produto estrangeiro, tendo como fio condutor o professor Paulo Emilio Salles Gomes, que colaborou no roteiro criando os textos falados por ele e os diálogos dos personagens principais, o cineasta Adhemar Gonzaga e o crítico Pedro Lima.

15h00 – O SOBRADO (Brasil, 1956, 104 min., P&B, 12 anos). Direção: Walter George Durst, Cassiano Gabus Mendes. Com Fernando Baleroni, Lia de Aguiar, Barbara Fazio, José Parisi, Dionisio Azevedo, Lima Duarte, David José. Numa pequena cidade gaúcha, durante a Revolução Federalista, dois caudilhos das famílias Cambará e Amaral entram em luta, disputando o manto da vila Santa Fé. Amaral e seus homens cercam a casa de Licurgo Cambará por dez dias, mas este não se rende. Dentro do sobrado senhorial Licurgo tem, ainda, que resistir à pressão da família que deseja pedir paz para que sua esposa salve sua criança que está para nascer.

17h15 – LAMPIÃO REI DO CANGAÇO (SP, Brasil, 1963, 110 min., cor ,14 anos). Direção: Carlos Coimbra. Com Leonardo Villar, Vanja Orico, David José, Milton Ribeiro, Dionísio Azevedo, Glória Menezes – O menino Virgulino encontra um cangaceiro ferido e o homem recomenda que somente use seu chapéu quando tiver um motivo. Anos depois, Virgulino vê sua casa dizimada e, revoltado, se torna o temido Lampião.

19h15 – DORAMUNDO (SP, Brasil, 1978, 85 min, cor, 16 anos). Direção: João Batista de Andrade. Com: Irene Ravache, Antônio Fagundes, Rolando Boldrin, David José, Armando Bogus, Oswaldo Campozana, Denise del Vechi, Rodrigo Santiago, Aldo Bueno, Assunta Peres – Em 1939, na cidade ferroviária de Cordilheira, perto de São Paulo, construída e explorada pelos ingleses, surge nos trilhos um operário assassinado. Flores, assessor do superintendente inglês Comb, passa a cuidar do caso e chama Guizzot, famoso e temível delegado da capital que, chegando com seus policiais, torna tenso o clima local. Ninguém fala, e novos mortos surgem misteriosamente. As investigações envolvem todos e acabam trazendo à tona um triângulo amoroso.

Domingo, 18 de agosto

14h00 – OS AMANTES DA CHUVA (SP, Brasil, 1979, 106 min., cor). Direção: Roberto Santos. Com Bete Mendes, Helber Rangel, David José, Zanoni Ferrite, Beatriz Segall, Líbero Ripoli Filho, Xandó Batista, Áurea Campos, Liana Duval – Antônio e Isabel são um casal que, misteriosamente, fazem chover cada vez que se encontram. Um repórter nota esse fenômeno, e os dois acabam na televisão, sendo chamados de “os amantes da chuva” e se tornam celebridades da noite para o dia. No entanto, a vida cheia de comerciais e contratos começa a afetar seu relacionamento e, como resultado, o clima em São Paulo.

16h10 – NASCE UMA MULHER (SP, Brasil, 1983, 100 min., cor). Direção: Roberto Santos. Com Marlene França, Dani Patarra, David José, Alberto Baruque, Dirce Militello, Lourdes dos Santos, Tadeu Aguiar, Rosaly Papadapol – A paixão entre Jô e Fernando é abalada pela descoberta dos pais da garota de que ela não é mais virgem e toma pílulas anticoncepcionais. No dia do aniversário de Jô, sua mãe revela a todos ter uma filha impura. Em poucos instantes seu pequeno mundo vem abaixo e o momento impõe a maturidade.

18h10 – O HOMEM DO PAU-BRASIL (SP/RJ-Brasil, 1981, 112 min., cor, 18 anos). Direção: Joaquim Pedro de Andrade. Com Juliana Carneiro da Cunha, Ítala Nandi, Flávio Galvão, David José, Cristina Aché, Lucelia Machiaveli, Dina Sfat, Grande Otelo, Othon Bastos, Paulo José – Representado simultaneamente por um ator e uma atriz, Oswald de Andrade, intelectual polêmico e impetuoso amante, partilha camas e ideias com diversas mulheres.

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