No FAM, realizadoras argentinas discutem relação mãe-filha em ótimos filmes
Foto: “La Estrella que Perdi”, de Luz Orlando Brennan
Por Maria do Rosário Caetano, de Florianópolis (SC)
As relações entre os turistas argentinos e Santa Catarina são históricas. Os vizinhos hispano-americanos adoram passar férias de verão nas praias florianopolitanas (ou manezinhas).
Nada mais natural, portanto, que o Festival Florianópolis Audiovisual Mercosul (FAM) abra espaço nobre para o festejado cinema argentino. Além de dois longas-metragens na competição principal, que reúne ficções e documentários, há filmes da terra do astro Ricardo Darín espalhados pela maioria das mostras competitivas (Working in Progress, curtas-metragens, videoclipes etc.).
Entre as produções exibidas até agora, duas causaram entusiasmo entre o público, foram aplaudidos e motivaram muitas perguntas nos debates — o longa-metragem “La Estrella que Perdi”, de Luz Orlando Brennan, e o curta “La Hija de la Azafata” (A Filha da Aeromoça), de Sofía Brihet.
As duas diretoras realizaram seus filmes tendo relações mãe-e-filha como tema central, temperado com ingredientes autobiográficos e localizado no mundo do cinema. No caso do longa, também há imenso interesse pelo teatro. E por tema caro aos nossos dias, já que vivemos cada vez mais — o mal de Alzheimer. No curta, Sofia Brihet, a realizadora se põe a imaginar o que sua mãe teria vivido, em seus anos de juventude, antes de tornar-se aeromoça.
“La Estrella que Perdí” gira em torno de Norma Reyes (a veterana Mirta Busnelli), atriz de 76 anos, que viveu dias de glória nos palcos, cinemas e TV. Vítima de etarismo, ela já não encontra mais trabalhos que a desafiem. Seu agente, a muito custo, consegue encaixá-la em montagem de texto medíocre, com trama e diálogos constrangedores. O tema do espetáculo cênico é o Alzheimer. E, claro, caberá a Norma interpretar a portadora do esquecimento.
Para complicar a situação da veterana atriz, sua filha, Celeste (Ana Pauls), aspirante ao ofício de escritora (inclusive de roteiros), pretende casar-se. E deixar o lar materno. Desesperada com a iminente possibilidade do “ninho vazio”, Norma tenta demover a filha do intento matrimonial. E segue enfrentando seus desafios profissionais.
A trama, construída com ingredientes de melodrama crítico e algumas doses de humor, abraça, com gosto, a cinefilia. Veremos trecho de um Darín movie, “O Filho da Noiva” (Juan José Campanella, 2001), realização do oscarizado diretor de “O Segredo dos seus Olhos”. E, também, trechos de dois filmes mais alternativos, “Rapado” (Martin Rejtman, 1992), considerado a semente do novo cinema argentino, e “Boda Secreta” (Alejandro Agresti, 1989). Nestes, Mirta Busnelli integra o elenco. A veremos bem mais jovem, bela e arrebatada.
Em “O Filho da Noiva”, Ricardo Darín interpreta Rafael Belvedere, dono de um restaurante, que enfrenta diversos problemas. O que interessa ao filme de Luz Orlando é a personagem de Norma Aleandro. Ela, que interpreta a mãe do personagem de Darín, está internada numa clínica, pois é portadora do mal de Alzheimer. Além de dar à sua velha protagonista o mesmo prenome da estrela de “A História Oficial” (Luiz Puenzo, Oscar de melhor filme estrangeiro em 1986), a jovem cineasta, neste que é seu filme de estreia, dialoga com a trama do Darín movie, do qual assistiremos sequência-chave (o filho visitando a mãe que perdeu suas memórias).
As citações de “Rapado” e “Boda Secreta” servem para mostrar ao público o passado de Norma Reyes no cinema. Como é que a atriz, que foi dirigida por realizadores importantes como Rejtman e Agresti, pode atuar numa montagem medíocre, com diálogos mal estruturados e eivados de erros ortográficos?
As duas atrizes brilham em cena. Mirta Busnelli está perfeita no papel da estrela que se vê obrigada a fazer papel de bisavó desmemoriada. Ela aparecerá radiante no reencontro com um ex-namorado (Gustavo Garzón), encantada com os espelhos de um camarim de teatro, onde enfrenta as rugas e renova sua maquiagem. Camarim que desejava que fosse só seu, para desfrutar de privacidade. Mas que terá que dividir com uma atriz bem mais jovem.
A situação se torna tão tensa para Norma Reyes que ela começa, ao incorporar a personagem da velhíssima senhora portadora Alzheimer, a confundir ficção e realidade. Como sua criação teatral ela também está enfrentando os sintomas da doença?
Ao término do filme, o debate corria animado no Cine Show Beiramar Shopping, quando um jovem argentino, comovido com o filme, contou ao público que Mirta Busnelli é, na vida real, mãe de Ana Pauls. O que traz ao filme uma nova camada. Afinal, as duas vivem, na tela, conflitos inerentes a mulheres que abraçaram ofícios semelhantes. Uma atriz experiente, a outra, aspirante a escritora, que teme ficar sufocada pela fama, mesmo que pretérita, da mãe.
Quem recorrer às redes sociais saberá que os Pauls são um dos mais poderosos clãs artísticos da Argentina. O ator e produtor Axel Pauls (1933-2009) teve três casamentos, um deles com Mirta Busnelli. De seus matrimônios nasceram seis filhos: quatro atores (Nicolas, Ana, Anita e Gaston Pauls, este, parceiro de Darín no cult “Nove Rainhas”) e um escritor renomado (Alan Pauls, cujo romance “O Passado” virou filme de Hector Babenco). Só Christian dedica-se a outro ofício, o magistério. Mas ele, também, vem se envolvendo com a produção de documentários.
Os três casamentos do velho Axel fazem de Ana Pauls irmã, por parte de pai, dos integrantes desse clã de tantos artistas. Ela, sabe, portanto, o que é viver cercada de gente famosa e ter que cavar o próprio espaço. Esse é um dos subtemas de “La Estrella que Perdí”, dedicado ao envelhecimento (e ao consequente etarismo presente no mundo do espetáculo).
Se algum distribuidor brasileiro adquirir o filme “La Estrella que Perdí”, terá boas chances de seduzir significativa plateia no nicho do cinema de arte oriundo do país hermano. Que, aliás, vive momento conturbado, desde a posse do controvertido presidente Javier Milei.
Já “La Hija de la Azafata” constitui-se como um híbrido de base documental, feito a partir de arquivos do Museo del Cine. Como todos sabem, a Argentina, em especial Buenos Aires, é pródiga em escolas de cinema. Uma delas, a Universidad Torauato di Tella, cujo patrono foi um industrial e filantropo ítalo-argentino, é a alma mater da jovem Sofía Brihet. Um de seus professores a desafiou: visite os arquivos do Museo del Cine e, a partir do que lhe interessar, realize um curta-metragem.
Sofía mergulhou em comerciais de bebidas em que belas mulheres são (eram) vistas como objeto do voyeurismo de homens que consumiam Cinzano e outras marcas alcóolicas. A imagem de uma bela moça mexeu com sua imaginação. Afinal, aquela linda garota-propaganda poderia ser sua mãe, jovem na mesma época em que o comercial foi exibido.
Num exercício fantasmagórico, o filme, de sintéticos oito minutos, narrado em primeira pessoa pela cineasta, reflete sobre o papel da mulher no mundo da publicidade. E sobre a figura materna (sua mãe — e aí o filme dialoga com o real — que foi aeromoça). Uma “azafata”, que abandonou a profissão para assumir a criação dos filhos.