“Ainda Estou Aqui” aposta na “subtração” narrativa e na emoção do espectador
Foto © Alile Dara Onawale
Por Maria do Rosário Caetano
Walter Salles diz que a “subtração”, conceito defendido e praticado por Jean-Luc Godard, é a base de sustentação de seu novo filme, “Ainda Estou Aqui”, que chega nessa quinta-feira, 7 de novembro, aos cinemas, respaldado pelo prêmio de melhor roteiro em Veneza e reconhecimento do júri popular nos festivais de Vancouver, no Canadá, e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. E, também, na condição de favorito a uma das cinco vagas a melhor filme internacional, no Oscar número 97, em 2025.
Haverá quem julgue heresia citar o inventor e iconoclasta Godard (1930-2022) como referência à obra de WSJr, de 68 anos. O que o primeiro tem de transgressor, o segundo tem de clássico e contido. Mas a referência foi evocada pelo próprio Walter, em entrevista coletiva à imprensa, durante a Mostra paulistana. Acompanhado de seus protagonistas (Fernanda Torres, Selton Mello e da jovem Valentina Herszage), do autor do livro que deu origem ao filme, Marcelo Rubens Paiva, e de seus roteiristas premiados em Veneza (Murilo Hauser e Heitor Lorega), o brasileiro recorreu ao princípio norteador de Godard. Assegurou que sua intenção foi, como fazia o franco-suíço, “ir limpando tudo até chegar ao mais puro (e essencial) da narração”.
Fernanda Torres, protagonista absoluta e onipresente de “Ainda Estou Aqui”, confirmou a intenção de WSJr: “Como sou mais bruta que Eunice Paiva, comecei a interpretá-la como uma mulher dura, que tinha suas contradições e não sorria”.
Afinal, a atriz via Eunice como “uma mulher semelhante às de seu tempo, anos 1950, dedicada ao lar, ao marido e aos filhos”, que passava por trágico e inesperado revés. Por isso, “dei a ela uma dureza, que é minha”. Mas, “Walter me advertiu: ‘Está faltando o sorriso!’. Aquela mulher tutelada pelo marido e dedicada à família viu seu mundo idílico desmoronar com o assassinato do companheiro. E prometeu a si mesma enfrentar tudo com um sorriso no rosto”.
Fernanda Torres, cujo nome vem sendo lembrado para vaga ao Oscar de melhor atriz (vaga ocupada por sua mãe, Fernanda Montenegro, em 1999, com a Dora, de “Central do Brasil”), assumiu, então, e com convicção, o sorriso reivindicado por Walter Salles e pelos filhos de Eunice. Tal postura será registrada na tela. Eunice e filhos posarão para foto coletiva. Todos os jornalistas e fotógrafos aguardam uma imagem sisuda, circunspecta. Ela sorri e pede que os filhos façam o mesmo.
A atriz continuou apostando “em contradição” da viúva do ex-deputado Rubens Paiva. “Ela decidiu esconder dos filhos o que se passava com o pai deles, levado a depor em inquérito militar por forças da ditadura”. As cinco crianças e adolescentes, “de 9 a 18 anos, só saberiam o que se passara realmente (o pai fôra torturado, assassinado e do seu corpo ninguém teria notícias) em seu devido tempo”. Para concluir, “Walter me disse que devíamos nos guiar pela subtração, não pelo melodramático. Assim agimos”.
“Ainda Estou Aqui” é um drama que soma o íntimo ao coletivo, com contenção e sobriedade. Mesmo assim, é capaz de emocionar o espectador. Arrancar lágrimas (como “Central do Brasil”). Se não copiosas, pelo menos sorrateiras.
A Eunice Paiva, encarnada por Fernanda Torres, vive cercada pelo marido (Selton Mello, em desempenho notável), filhos e amigos num casarão alugado, no Rio de Janeiro, próximo à praia. Recebe amigos do casal (intelectuais e artistas como Fernando Gasparian e Dalal Achcar), e colegas dos filhos, entre eles, o próprio Walter Salles Jr., então adolescente. Ele era “colega de escola de Nalu, a do meio”. Ouvem música de qualidade (e até uma divertida sátira de Juca Chaves), dançam, conversam, fazem planos. O casal pretende sair do aluguel ao construir um casarão, em terreno carioca, já adquirido.
Um dia, porém, em janeiro de 1971, forças policiais entram na alegre residência, povoada de vidas e planos, e levam Rubens Paiva para “prestar um simples depoimento”. Ele nunca mais regressará. Eunice também será presa, junto com uma filha de 15 anos. A adolescente será liberada. Eunice, só muitos dias depois. A dona de casa viverá intenso processo de transformação. Buscará o paradeiro do marido, até concluir que ele foi morto.
Dali em diante, Eunice Paiva será obrigada a tomar decisões transformadoras. A primeira delas será abandonar a aprazível casa no Leblon carioca, depois de vender o terreno, símbolo de tantos planos. E mudar-se com os filhos para São Paulo, retomar os estudos e formar-se em Direito. A advogada irá defender, claro, os Direitos Humanos e as causas indígenas. Um dia, a mulher que fez da busca pela Memória, de seu marido e de seu país, uma de suas razões de viver, será acometida pelo Mal de Alzheimer. Nessa etapa, Fernanda Montenegro entrará em cena, substituindo Fernandinha.
Walter Salles construiu seu décimo-primeiro longa-metragem, de envolventes 135 minutos, com uma primeira parte solar, cheia de energia e luz. Os filhos de Eunice e Rubens Paiva enchem a casa próxima ao mar de brincadeiras e festas. A mais velha, Veroca (Valentina Herszage), de 18 anos, vai estudar na Europa. Leva com ela uma câmera de Super-8 e manda “notícias cinematográficas” à família. Numa delas, emula a famosa passagem dos Beatles pela faixa de pedestres de Abbey Road (foto da capa do décimo-segundo álbum do quarteto, editado em 1969). O uso dos “filminhos” da jovem, reinventados com total liberdade, contextualizam o tempo histórico de “Ainda Estou Aqui”.
Adrian Teijido assina fotografia de grande beleza e eficiência narrativa. Tudo captado em 35 milímetros, pois Walter desejava reproduzir a imagem dos filmes da década de 1970, todos captados (óbvio) em película. Daí o abandono dos atuais e avançados suportes digitais.
O filme nunca recorrerá às trevas (imagens soturnas) ou à retórica para enfatizar o tempo de exceção que o Brasil viveu, em especial, depois da imposição do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. O contexto será fornecido por retrato oficial do presidente Emilio Garrastazzu Médici (com a faixa presidencial), pelas atitudes (nunca caricatas) dos militares (à paisana, em maioria) e pelas canções e figurinos da época. Lembremos que o ex-deputado Rubens Paiva foi detido no verão de 1971, auge da repressão dos generais. O atestado de óbito do marido de Eunice só chegaria às mãos dela e de seus cinco filhos durante o Governo FHC (década de 1990).
O livro “Ainda Estou Aqui”, que acaba de ganhar reedição pela Alfaguara, aparece na tela em recriação bastante livre. O relato emocionado e evocativo de Marcelo Rubens Paiva começa na Quinta Vara da Família, no Fórum João Mendes, em São Paulo, onde os filhos vão cumprir, ao lado da mãe, o ritual da “interdição”. Ou seja – como escreve o próprio Marcelo – “Esperávamos que, como de praxe, (o juiz) fosse constituir um perito judicial de sua confiança para tirar os direitos civis de uma bacharel”. Com Alzheimer, a advogada não sabia dizer em que ano estava, nem quem era o presidente da República (“Veroca, como se falasse com uma criança, ainda tentou: – Mamãe, você conhece ele, é o Lu…”).
O filme de Walter Salles condensa a perda da memória de Eunice Paiva em sequência breve, realizada durante almoço em família. Já octogenária (Eunice morreu aos 86 anos), a vemos com olhar perdido, alheia à festa organizada pelos filhos e netos.
Na coletiva de imprensa do filme na Mostra paulistana, Marcelo Rubens Paiva (outros de seus escritos foram adaptados para o cinema – “Feliz Ano Velho”, por Roberto Gervitz, 1987, “Malu de Bicicleta”, por Flávio R. Tambellini, 2010), deu clara demonstração de que não se aferra a seus textos, por entender que cinema e literatura são linguagens bem diferentes.
“Walter me mandava todas as versões do roteiro para eu ler e eu mesmo dizia: tem diálogo demais, corta, corta!”. Daí que “cortamos muito, muito mesmo”. Naquela época, em que se deu o desaparecimento e assassinato do ex-deputado Rubens Paiva – lembrou Marcelo –, “eu vivia a inocência dos meus 13 anos”.
Paralelo ao lançamento de “Ainda Estou Aqui” no Brasil, sua equipe trabalha incansavelmente, com a Sony Pictures na retaguarda, pela colocação do filme na disputa pelo Oscar. Se possível, em duas categorias – melhor filme internacional e melhor atriz (Fernanda Torres).
WSJr, que teve “Central do Brasil” e Fernanda Montenegro indicados 25 anos atrás, está muito cauteloso. Acredita que as mudanças na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood são imensas. Naquela época, 1999, “a maioria absoluta dos associados era composta de norte-americanos residentes no eixo Nova York-Los Angeles”. Hoje, “metade dos mais de 11 mil associados são originários da Europa (200 são franceses), Ásia, África e América do Sul”. Desses, 50 ou 60 são brasileiros. Vota quem estiver em dia com suas obrigações de associado. Registre-se que, cada um deles, deve pagar taxa anual no valor de US$2 mil (pesado para os padrões do Terceiro Mundo).
Em matéria publicada no jornal The Washington Post (e traduzida pelo Estadão de primeiro de novembro último), os repórteres Sonia Rao e Jada Yuan demonstram “Como os Festivais Determinam a Corrida ao Oscar” e especulam sobre os filmes e atores mais cotados para a festa hollywoodiana de 2025.
Os dois jornalistas não analisam as chances de possíveis finalistas ao Oscar internacional. Mas colocam Fernanda Torres com razoáveis chances de indicação. Como sempre, as atrizes anglo-saxãs ocupam a dianteira. São citadas como favoritas: Angelina Jolie (“Maria”), Nicole Kidman (“Babygirl”), Demi Moore (“A Substância”) e Mikey Madison (“Anora”). Todos os filmes evocados são de expressão inglesa. Já a atriz-trans espanhola Karla Sofia Gascón (do francês “Emilia Pérez”, ambientado no México), a irlandesa Saorise Ronan (com dois filmes), Amy Adams (“Canina”) e Fernanda Torres entram como “nomes possíveis”.
A sorte está lançada. E, afortunadamente, “Ainda Estou Aqui” vem despertando significativo interesse no público brasileiro. Além de ter colocado cinéfilos na fila já nas primeiras horas da manhã em que foi exibido na Mostra, o longa de WLJr – prática rara para produções brasileiras – teve ingressos antecipados colocados à venda uma semana antes de sua estreia. Deverá, por isso (e por suas qualidades e relevância), repetir o desempenho de “Central do Brasil”, que vendeu mais de 1,5 milhão de ingressos em 1998. Mesmo que os tempos atuais sejam terríveis. O público parece ter se divorciado do cinema brasileiro.
Ainda Estou Aqui
Brasil, 2024, 135 minutos
Direção: Walter Salles
Roteiro: Murilo Hauser e Heitor Lorega
Elenco: Fernanda Torres, Selton Mello, Fernanda Montenegro, Valentina Herszage, Maria Manoella, Marjorie Estiano, Luiza Kozovski
Fotografia: Adrian Teijido
Montagem: Affonso Gonçalves
Produção: Videofilmes, RT Features, MACT Films
Distribuição: Sony Pictures
FILMOGRAFIA
Walter Salles (Rio de Janeiro, 12 de abril de 1956)
2024 – “Ainda Estou Aqui” (ficção)
2014 – “Jia Zhang-Ke, Um Homem de Fenyang” (documentário)
2012 – “On The Road” (Na Estrada, ficção)
2008 – “Linha de Passe”, codireção de Daniela Thomas (ficção)
2005 – “Dark Water” (Água Negra, ficção )
2004 – “Diários de Motocicleta” (ficção)
2001 – “Abril Despedaçado” (ficção)
1998 – “Central do Brasil” (ficção)
1998 – “O Primeiro Dia”, codireção de Daniela Thomas (ficção)
1995 – “Terra Estrangeira”, codireção de Daniela Thomas (ficção)
1991 – “A Grande Arte” (ficção)
Curtas, médias-metragens e projetos para TV:
1986: “Japão, uma Viagem no Tempo: Kurosawa, Pintor de Imagens”
1987: “Krajcberg: o Poeta dos Vestígios”
1989: “Chico ou o País da Delicadeza Perdida”
1995: “Socorro Nobre”
1999: “Adão ou Somos Todos Filhos da Terra”, codirigido com Daniela Thomas
2002: “Castanha e Caju contra o Encouraçado Titanic”
2006: “Paris, Je t’Aime” (Loin du 16ème – segmento 10)
2017: “Quando a Terra Treme” (parte do projeto “Where Has Time Gone?”)
2018: “Vozes de Paracatu e Bento”