No Cine Ceará, “Um Lobo Entre os Cisnes” mostra Thiago Soares no embalo da street dance e sob o rigor do ballet clássico
Por Maria do Rosário Caetano
O público do Cine Ceará assistiu, na segunda noite da disputa pelo Troféu Mucuripe, à ficção brasileira “Um Lobo Entre os Cisnes”, de Marcos Schechtman e Helena Varvak. Além do documentário “Brasiliana: o Musical Negro que Apresentou o Brasil ao Mundo“, exibido na noite inaugural, o filme terá que enfrentar mais quatro concorrentes ibero-americanos, vindos da Argentina, Uruguai, Cuba e Costa Rica.
“Lobo-Cisne” é uma produção que, além de incorporar padrões do grande cinema narrativo internacional, pretende afastar-se do gueto do ballet clássico. Por duas razões. Primeiro, por dialogar com o poder mobilizador da street dance (pela vertente do hip hop) e, segundo, por focar na trajetória do suburbano carioca Thiago Soares, um bailarino que jamais se destacaria pela “ponta dos pés”. Ou seja, não faria do virtuosismo sobre dolorosas pontas de sapatilhas, a sua marca.
Classificado em segundo lugar em concurso de ballet clássico, em Paris, e depois medalha de ouro no Bolshoi de Moscou, Thiago apostaria todas as suas fichas na virilidade de seus movimentos. Ele, que começara tarde, aos 15 anos, quando a maioria começa na infância, seria ungido pela Fortuna, ao chegar à condição de solista do Royal Ballet de Londres.
O filme, que teve seu roteiro construído sob supervisão do escritor e “criador artístico” mexicano Guillermo Arriaga (de “Amores Perros” e “De Longe te Observo”), passou por mãos de vários autores, até chegar às de Camila Agustini.
Em diálogo permanente com Arriaga, Camila, ex-aluna da Escola de San Antônio de los Baños, em Cuba, assinará o roteiro final. Um roteiro de corte clássico, que contrasta as atitudes de dois personagens — o jovem Thiago Soares (Matheus Abreu, de “O Segredo dos Diamantes” e da série “Dois Irmãos”) e seu mentor, o cubano, radicado no Rio, Dino Carrera, interpretado pelo argentino Dario Grandinetti (“Fale com Ela” e “Relatos Selvagens”).
Marcos Schechtman, que vê num bom roteiro a principal matriz de um filme, fez questão de destacar a contribuição de Arriaga. E de avisar que o mexicano advertira a equipe: “se forem realizar um filme de redenção, não contém comigo; esse tipo de filme não me interessa”. Tomou-se, então, outro caminho — o do “filme de transformação”.
Tudo começa em 1996, quando o adolescente Thiago Soares vive no subúrbio de Inhaúma, entre a apertada casa da tia Lita (Elvira Helena) e pelas ruas, na companhia de adrenalinado grupo de amigos, jovens pobres, sem rumo, que se exercitam em formações de hip hop.
Julio (Allan Rocha), um mentor afro-brasileiro, encaminhará o teimoso e atrevido Thiago para escola de dança clássica, no Méier. Lá, ele será protegido por dedicada gestora, a lusitana Raquel (Margarida Vila-Nova), que o encaminhará à tutoria de Dino Carrera.
Dino é um homem, vindo de Cuba, já entrado nos anos, muito magro, rigoroso como um militar prussiano. Mas capaz de detectar o erro de um orientando só pelo ouvido. Imagine pelo olhar. É esse homem que assumirá a missão de dar um jeito no indisciplinado Thiago, tornando-se seu novo mentor. Um mentor que manterá relação de amor-e-ódio com o jovem discípulo.
Quem evocar o filme “Morango & Chocolate” (Alea e Tabio, 1995), encontrará nele alguns pontos em comum com a ficção brasileira selecionada pelo Cine Ceará. Em especial, no título (“Um Lobo Entre os Cisnes”), que, em alguma medida, cita o conto (“O Lobo, o Bosque e o Homem Novo”, de Senel Paz), origem do filme cubano. Aqui, o Lobo é o irascível Dino e os cisnes, os bailarinos e bailarinas do Centro de Dança Rio.
E haverá, claro, referências explícitas a Cuba, país de origem do professor de ballet clássico. Ele toma mojito, evoca a glória que poderia ter conquistado na terra de Alicia Alonso e até dançará um “son”, em raro momento de alegria, com o discípulo. Mas cortará, com extrema rispidez, comentário provocativo do aluno (indignado com infindáveis ordens autoritárias): “por isso é que dizem que vocês em Cuba gostam de ditaduras”. O mestre rebaterá: “Nunca mais se refira a Cuba na minha frente”!
Deduzimos que Dino Carrera migrou para o Rio de Janeiro por causa de sua homossexualidade. Em “Um Lobo Entre os Cisnes”, descobriremos que, fora do Centro de Danças do Méier (ele foi também professor da UERJ), Dino vive uma “segunda vida”, secreta, em saunas onde faz sexo com rapazes, sempre sob ríspidos comandos. Mesmo na intimidade, cultiva sua “alma prussiana”.
A trama, embora inspirada na trajetória de Thiago Soares, hoje com 43 anos e de volta ao Brasil, toma muitas liberdades. E concentra-se, por demais, na reafirmação da virilidade do protagonista. Ele não se cansa de definir-se como heterossexual, seja junto aos amigos da street dance, seja junto à tia ou às jovens bailarinas da escola do Méier. Aliás, com duas delas viverá cenas ardentes de sexo. Reafirmará sua heterossexualidade, inclusive, frente ao mentor homoafetivo. Falta à narrativa, uma visão menos ortodoxa no campo da sexualidade.
No debate do filme, ninguém abordou o assunto com aprofundamento. Só o argentino Dario Grandinetti arriscou uma interpretação: “Thiago iniciou-se na dança clássica nos anos 1990, portanto, 30 anos atrás, quando havia posturas, inclusive no meio teatral, que hoje consideramos arcaicas, ultrapassadas”. E vislumbrou no filme “uma névoa de homossexualidade”.
Thiago Soares, que subiu ao palco do Cine São Luiz com a equipe do filme e participou do debate, não fez nenhuma restrição às liberdades tomadas por roteiristas e diretores. Deu a entender que convive muito bem com a recriação de sua história erguida sobre dois pilares: sua passagem da street dance para o ballet clássico e a convivência com o mentor Dino Carrera. Só tem palavras de agradecimento ao mestre cubano, rigoroso ao extremo, com quem viveu muitos conflitos. Mas que, ao mesmo tempo, o fez perceber a importância dos ensaios repetitivos, da disciplina, do estudo do inglês para quem sonhava com carreira internacional.
Para certificar esta suposta pureza de relacionamento entre mentor e discípulo, Schechtman recorreu a história edificante, mas que, para ele, demonstra o profissionalismo de Dino Carrera.
Num dia de enchente no Rio, Thiago Soares não pôde regressar à sua casa suburbana. Teve que dormir na casa do mentor. Onde só havia uma cama. Dormiram lado a lado, mas o mestre não fez sexo com o angustiado aluno, que se propusera a dormir no chão duro. Deitou, por exigência irredutível de Dino, no único leito disponível, mas nada aconteceu. “Meia hora depois”, garantiu Thiago, “o mestre estava roncando”.
O diretor, com larga experiência em telenovelas da Manchete e da Rede Globo, contou que o filme foi concebido para alcançar amplo espectro espacial (são múltiplas as locações brasileiras). Teria sequências filmadas até no Teatro Bolshoi, na Rússia. As locações chegaram a ser visitadas. Mas o rumo tomado foi outro. Só foram feitas sequências internacionais em Paris (em espaços, registre-se, suntuosos). A TV Zero, de Roberto Berliner e parceiros, assegurou todo o trabalho de produção, tendo a Globo Filmes como coprodutora.
“Fizemos um filme de 110 minutos, não de três horas, como desejava Arriaga”, lembrou o cineasta. Graças à parceria com a atriz, professora e preparadora de elenco Helena Varvaki (brasileira de origem grega), que assina o filme com Schechtman, os atores estavam, de tal forma impregnados na necessária e imprescindível “fisicalidade”, que foi possível “filmar na base do dois por um. Até um por um”. Ou seja, dois takes por cena, “às vezes bastava um”.
“A parceria com Helena”, detalhou Schechtman, “foi maravilhosa. Trabalhamos juntos, muitas vezes, na TV Globo, na mais fina sintonia. Foi muito enriquecedor tê-la conosco na direção do filme”.
O elenco rende bem. Inclusive o das jovens adolescentes que interpretam as alunas da escola de ballet — a branquinha e quase transparente Germana (Giullia Serradas), a ousada Letícia (Maria Paula Marini) e Bebel (Juliana Delage). As três estão em Fortaleza, felizes com o resultado do filme.
O mesmo estado de espírito toma conta de Thiago Soares, ainda com os músculos bem-definidos e de cabelos já grisalhos, que abraçou o filme como seu. De volta ao Brasil, depois de longa temporada no Royal Ballet de Londres e de dirigir o Ballet de Monterrei, ele olha para trás e relembra: “Marisa Estrela me levou a Dino Carrera. Ele me deu uma chance. Teve um amor incondicional por mim. Um amor diferente do que recebi de meus familiares. Por que esse cara fez tanto por mim? Ele foi meu mentor, meu pai. E a mim dedicou paixão marcada por tensão e nervosismo, mas sempre querendo o melhor para minha carreira. Me fez ver que eu não estava pronto para experiência internacional, tinha que amadurecer no Municipal do Rio. Custei a entender isso. Devo muito, muito mesmo, a ele”. Afinal, “vim da street dance, lá de Vila Isabel. No nosso grupo, nos tratávamos por apelidos, éramos invasivos nas nossas zoações. No ballet, me empoderei, passei a viver uma relação permanente com o espelho, essencial e cotidiana a todos os bailarinos. Dino foi essencial nesse processo”.
Coube ao mineiro Matheus Abreu, hoje com 27 anos, interpretar Thiago Soares da adolescência (15 anos), passando pelos 17-18, até os 21. O jovem, formado no Teatro Galpão, nunca se dedicara à dança. Nem ao hip hop, nem ao ballet. Como o processo de feitura do filme durou sete anos (das primeiras versões do roteiro até a filmagem), ele pôde se entregar a intenso processo preparatório. Tornou-se um craque no hip-hop e, nos dois primeiros meses de preparação, em extenuantes aulas de ballet, sentiu dores em todos os órgãos de seu corpo. “Mas dali em diante” — confessou no debate no Cine Ceará —, “meu corpo começou a entender que o ballet é muito exato, muito baseado na repetição, na automatização”. Aí então, “meu corpo entendeu que tinha que fazer amizade com a dor”.
O filme tem em sua fotografia, assinada por Pedro Faerstein, seu ponto alto. As imagens são de grande beleza. Se a narrativa parece, às vezes, enredada em antíteses óbvias, desprovidas de ambiguidade, as imagens tentam romper fronteiras.
São das mais mobilizadoras as sequências finais, com o bailarino Thiago, já impregnado por sua construção clássica, voltando ao Rio suburbano de sua infância e juventude, para dançar numa simbólica e imensa quadra. Ali, ele vai corporificar amálgama de street dance com coreografias clássicas, aquelas de cisnes-príncipes-e-corsários. Ao fundo, veremos as luzes que banham os contornos dos morros e favelas cariocas.