“Trilha Sonora para um Golpe de Estado” concorre ao Oscar em ritmo de alucinação visual e jazz usado como arma cultural
Por Maria do Rosário Caetano
“Trilha Sonora para um Golpe de Estado”, um dos cinco concorrentes a melhor longa documental no Oscar 2025, estreia nessa quinta-feira, 30 de janeiro, no circuito de arte brasileiro.
Trata-se de lisérgico documentário que lança o espectador no coração das trevas. E o faz de forma alucinada, sensorial, musical, épica até. Sua narrativa dura 150 minutos, mas ninguém há de sentir tédio. Poderá até sentir vertigem. Afinal, o diretor belga Johan Grimonprez parece querer segurar o mundo com as mãos. E, sem tempo para meditações, abraçar temas complexos como imperialismo, colonialismo, Guerra Fria, lutas emancipatórias de nações africanas e uso do jazz como arma cultural dos EUA na luta anticomunista. O ponto central do filme — a destruição do governo do congolês Patrice Lumumba — se verificou no começo da década de 1960.
A música, o jazz afro-americano dos anos de ouro, é peça constitutiva (e vital) do documentário de Grimonprez. A começar pelo título — “Soundtrack to a Coup d’Etat” — traduzido com fidelidade por André Sturm, da Pandora, distribuidora que teve a sensibilidade e coragem de promover sua estreia em tela grande.
Os maiores jazzistas da história musical dos EUA aparecerão nesse filme incendiário: Louis Armstrong, Dizzie Gillespie, Thelonious Monk, John Coltrane, Nina Simone, Archie Sheep, Abbey Lincoln. São muitos, pois o realizador belga é um desmedido. Onívoro.
Aparecerão, em ritmo avassalador, imagens e sons irresistíveis. Alguns a serviço da Guerra Fria. Outros em defesa dos processos de libertação de nações africanas, no caso em foco, o Congo de Patrice Lumumba (1925-1961), cujo centenário de nascimento estamos comemorando. O dele e o do grande teórico da descolonização de povos subjugados, o psiquiatra Frantz Fanon, que morreria onze meses depois de Lumumba.
Para combater a URSS, que apoiava revoluções anticoloniais na África, o governo dos EUA (através do Departamento de Estado e da CIA) convocara seus maiores astros de origem afro para apresentações em solo congolês (não só!). Nem todos assumiriam a missão. Alguns, liderados, por Abbey Lincoln e pela escritora Maya Angelou, invadiram a ONU (no tempo em que a instituição tinha peso) para protestar contra a guerra promovida pelo Ocidente (EUA, Bélgica, Inglaterra, Holanda e França) contra as nações africanas. E, claro, o assassinato do presidente Lumumba, destronado em prol do “capitalista” Joseph Mobuti. Muitas potências ocidentais estavam de olho no urânio que saía do solo congolês.
Não convém medir a brutalidade do colonialismo em “listas de mais ferozes”. Mas há consensos: o que reis belgas fizeram no país que elegeria Lumumba (cortar as mãos de trabalhadores “incapazes” de produzir látex na quantidade exigida) e o que os holandeses fizeram na África do Sul (o apartheid) estão impressos nos anais da infâmia.
São lisérgicas as imagens das manifestações da ONU mostradas por Grimonprez. Em especial, as que registram a luta dos 60 manifestantes liderados por Lincoln, Angelou e Max Roach. E divertidas as imagens de Nikita Krushev, o “urso” soviético, com seu gestual grandiloquente. Mas o filme, que fez o mais formidável dos levantamentos de imagens (e sons) destinados a um libelo anticolonialista, não mostrará Krushev jogando o sapato em algum “defensor do imperialismo capitalista”. Tal gesto desmedido faz parte do folclore político. Não teve existência real.
Johan Grimonprez e seu “Trilha Sonora para um Golpe de Estado” têm um rival quase imbatível pela frente na disputa ao Oscar de 2 de março, domingo de Carnaval — o palestino-israelense “No Other Land”, dirigido pelo quarteto Basel Adra, Hamdan Ballal, Yuval Abrahão e Rachel Szor.
O nosso tempo histórico nos leva a torcer abertamente pelo êxito de “No Other Land”, por suas imensas qualidades narrativas, por sua coragem e sua natureza utópica. Seus artífices são filhos da Palestina e de Israel. Dois palestinos uniram-se a dois israelenses para denunciar a brutalidade da extrema-direita comandada por Netanyahu, que insiste em invadir e colonizar terras históricas dos palestinos.
“Trilha Sonora para um Golpe de Estrado” já acumula diversos prêmios internacionais desde sua estreia no Sundance e já foi vendido para múltiplos mercados. Grimonprez pode orgulhar-se de ter feito de seu documentário um título incontornável. Um esforço de produção que um brasileiro dificilmente empreenderia. Onde arrumar dinheiro para pagar direito de uso de imagens e sons vindos de tantas empresas cinematográficas e televisivas?
Grimonprez encontrou parceiros em sua Bélgica natal, na França e na Holanda. Pôde, assim, pagar o que lhe cobravam. Mesmo que, em alguns espectadores, suas imagens de ritmo vertiginoso causem espécie, vale reafirmar que seu documentário é imperdível. Gerado, aliás, em finíssima sintonia com nosso tempo marcado pela pressa e pela aceleração dos sentidos. Ao nos arremessar numa orgia de imagens e sons (que podem até nos confundir) o belga, decerto, espera que pelo menos algumas delas fiquem impressas em nossas retinas e mente. O filme poderá ser visto e revisto. E livros existem para enriquecer experiências que o audiovisual nos proporcionou.
Grimonprez presta a Patrice Lumumba, ao longa de duas horas e meia de projeção, a mais exuberante homenagem que ele poderia receber, se não tivesse sido assassinado aos 35 anos.
Trilha Sonora para Um Golpe de Estado | Soundtrack to a Coup d’Etat
Bélgica, França, Holanda, 2024, 150 minutos
Direção: Johan Grimonprez
Participação: Patrice Lumumba, Malcolm X, Nikita Krushev, Louis Armstrong, Thelonious Monk, Dizzy Gillespie, John Coltrane, Abbey Lincoln, Max Roach, Nina Simone, entre outros
Idiomas: francês, inglês e russo
Distribuição: Pandora Filmes