François Ozon faz de “Quando Chega o Outono” mais um filme de suspense e moral intencionalmente duvidosa

Por Maria do Rosário Caetano

O incansável François Ozon chega aos cinemas brasileiros, nessa quinta-feira, 27 de março, com seu mais novo filme, “Quando Chega o Outono”, o vigésimo-terceiro de sua produtiva e instigante carreira.

Depois de deliciosa comédia-vaudeville, “O Crime é meu”, que vendeu mais de um milhão de ingressos na França, ele troca duas protagonistas muito jovens por duas coroas que exerceram, no passado, o mais antigo dos ofícios femininos. Elas são interpretadas por Hélène Vincent, de 81 anos, oriunda da respeitada Comédie Française, e Josiane Balasko, de 75, vinda do coletivo Café de la Gare, força renovadora do humor francês.

“Quando Chega o Outono” resultou em um filme de fruição prazerosa, que se passa numa pequena cidade da Borgonha, com suas árvores de múltiplas cores, pois outonais. Região, registre-se, onde florescem os melhores champignons, os requisitados cogumelos, ingrediente importantíssimo na culinária francesa. E na trama. Como o foram no inventivo e originalíssimo “Misericórdia”, do subversivo Alain Giraudeau.

François Ozon fez de uma lembrança de infância o ponto de partida do filme. Escutara do pai relato que o fascinava: uma tia teria servido prato à base de cogumelos aos parentes. Todos comeram, menos ela. Todos passaram mal, menos ela. Criou-se, então, na família Ozon, a divertida ideia de que a tia queria envenenar os familiares.

“Quando Chega o Outono”, que vendeu quase 700 mil ingressos na França, começa com duas velhas amigas, já aposentadas – Michelle e Marie-Claude –, colhendo cogumelos nas redondezas da cidade. Quando Michelle colhe um exemplar do “alimento saprófago”, Marie-Claude a alerta – “este é venenoso!”.

Ao regressar ao lar, vovó Michelle, que espera a chegada de Valérie (Ludivine Sagnier), sua única filha, radicada em Paris, e, principalmente, do neto adolescente, começa a preparar comidas frescas. Até consulta livro destinado a esclarecer quais são os cogumelos comestíveis e os impróprios. Entusiasmada, aguarda a hora de desfrutar de férias ao lado do garoto.

Marie-Claude, por sua vez, aguarda a saída do filho Vincent (Pierre Lottin) da prisão. Homem feito, de cuja vida pregressa quase nada saberemos, ele carrega jeitão despachado e impetuoso. E, mesmo em liberdade, continuará trazendo alguns sobressaltos à mãe.

O projeto de dias felizes ao lado do neto, tão bem preparado por Michelle, não dará certo. Depois de comer os cogumelos cozidos com tanto zelo pela mãe, Valérie vai parar no hospital, intoxicada. Furiosa, impedirá que Lucas permaneça na Borgonha. Intempestivamente, arruma as malas e regressa, com ele, a Paris.

Consternada, Michelle segue sua vida ao lado da amiga Marie-Claude, frequentando a igreja, cuidando do pomar e buscando soluções para os problemas domésticos. Vincent, o ex-presidário, tenta rearranjar sua vida. Vai trabalhar como uma espécie de “faz tudo” na casa de Michelle. Até conseguir realizar seu sonho – montar casa noturna onde se beba muito e se dance sem preocupações com o amanhã.

A trama sofrerá grande reviravolta, quando o rapaz visitar a angustiada e deprimida Valérie, em Paris. Nada veremos, pois Ozon faz questão de construir, de forma elíptica, momentos essenciais à trama. Assim agindo, deixa a imaginação do espectador preencher as lacunas. Um recurso que instiga e revitaliza essa saborosa trama, que soma dramas familiares com boas doses de suspense e comédia fina.

O resultado de “Quando Chega o Outono” é cativante, subversivo e marcado pelo inesperado (nunca sabemos o que vai acontecer). Que ninguém, portanto, espere personagens certinhos. Vovó Michelle é, sim, muito amorosa, mas jamais uma santa. Vincent, o egresso do sistema prisional, tudo fará para ajudar sua protetora. Mesmo com procedimentos, digamos, fora da caixinha. Com personagens dispostos a cometer transgressões que lhes facilitem a vida, Ozon, aos 57 anos, continua sua trajetória marcada pela irreverência e pelo anticonformismo.

Como poucos, o diretor (e roteirista) consegue somar boas bilheterias (próximas à casa do milhão) a inquietações e provocações. Seus filmes não apostam no previsível. Estão, sempre, interessados na ambiguidade. Até suas velhinhas fogem do estereótipo comumente a elas atrelados. São bondosas ou não. Depende do momento.

Assistir a “Quando Chega o Outono” é desfrutar do trabalho de ótimos atores, de trama original e, como bem observou a crítica francesa Nathalie Chifflet, “Ozon não seria Ozon, se não houvesse (em seus filmes) uma questão a se insinuar – a da violência ligada ao amor”. Nos filmes do parisiense, os sentimentos amorosos e a violência se entrelaçam.

O sucesso comercial do filme quebra tabu ao mostrar que duas coroas podem protagonizar trama atraente. No caso, duas veteranas muito especiais. Hélène Vincent, atriz dramática, a todos encanta com seu tipo mignon e beleza cultivada. Josiane Balasko, atriz e diretora de muitos filmes, vem de outras origens e nunca teve na beleza sua marca registrada. Formada nos esquetes do Café de la Gare (com Coluche, Gérard Depardieu, o saudoso Patrick Dewaere e Miou-Miou), ela chamou atenção dos cinéfilos de muitos países (incluindo o Brasil), quando formou inusitado triângulo amoroso com Depardieu e a escultural Carole Bouquet.

Em “Linda Demais para Você” (Bertrand Blier, 1989), coube a Balasko o papel da secretária gordinha e sem atributos de beleza física, que atrai e encanta o chefe (Depardieu), marido da belíssima e escultural Bouquet. Uma inversão à qual, com relativa frequência, o cinema francês costuma recorrer.

Com distribuição da Pandora, de André Sturm, programador do Circuito Belas Artes, dá para prever longa temporada para esse novo filme de Ozon. Não de um ou dois anos inteiros, como a de “Medos Privados em Lugares Públicos” (Alain Resnais, 2009), mas de alguns meses. Sturm, afinal, costuma dar longa vida a filmes que atraem cinéfilos assumidos. E Francois Ozon conta com admiradores juramentados.

 

Quando Chega o Outono | Quand Vient l’Automne
França, 2024, 102 minutos
Direção: François Ozon
Elenco: Hélène Vincent, Josiane Balasko, Pierre Lottin, Ludivine Sagnier, Garlan Erlos, Sophie Guillemin, Mailk Zidi, Paul Baeurepaire
Roteiro: François Ozon e Philippe Piazzo
Fotografia: Jérôme Alméra
Montagem: Anita Roth
Distribuição: Pandora Filmes

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