«O Leopardo», livro que deu origem à obra-prima de Visconti, transforma-se em série luxuosa da Netflix
Foto: Cena de «O Leopardo», da Netflix
Por Maria do Rosário Caetano
O que leva um grupo de italianos e britânicos a unirem forças para, juntos, realizar série de seis capítulos, tendo como matéria-prima o romance «O Leopardo», do aristocrata Giuseppe Tomasi di Lampedusa, origem seminal da obra-prima assinada por outro nobre, o milanês Luchino Visconti?
«O Leopardo», uma das obras mais luminosas da carreira do «duque vermelho» (ele que já encantara o mundo com «Rocco e seus Irmãos»), conheceu a glória ao conquistar a Palma de Ouro em Cannes, em 1963, e correr mundo, seduzindo a todos com sua arrebatadora encenação de aristocrático baile, cuja sequência mais esperada é a valsa protagonizada pelo Príncipe de Salina e pela jovem Angélica (Burt Lancaster e Claudia Cardinale, sob o olhar de Tancredi – Alain Delon e a admiração de todos os presentes). As danças e contradanças ocupam 40 minutos da duração original do filme (3h05′).
Visconti confirmaria, em cores vibrantes, com vermelhos, dourados e outros matizes, o poder de sedução do Príncipe de Salina e de seu sobrinho, Tancredi (Alain Delon), que, por arranjo pautado por interesses financeiros, desposaria a jovem Angélica (Claudia Cardinale), filha do prefeito (de rude origem camponesa) Dom Calógero Sedara, da pequena Donnafugata, na Sicília. Um bruto que enriquecera pela prática de negócios escusos.
Pois quem ama «O Leopardo» viscontiano terá que fazer um rigoroso exercício de «dimenticanza» (esquecimento) ao enfrentar maratona frente à TV. Esquecer Lancaster-Delon-Cardinale. Esquecer o roteiro impecável de Suso Cecchi d’Amico e equipe. Esquecer a formidável mise-en-scène de um maiores mestres da história do cinema. Como bem registrou o crítico italiano Paolo Mereghetti, ao suprimir os dois capítulos finais do livro de Lampedusa, Visconti «transformou um romance de direita em um filme de esquerda».

«O Leopardo», produzido sob direção de Tom Shankland e criação da dupla Richard Warlow e Benji Walters, todos britânicos, está disponível na mais conhecida plataforma de streaming do mundo (a poderosa Netflix). São seis capítulos de uma hora cada um, portanto, com quase três horas a mais que o filme de Visconti.
O cineasta, como lembrou Mereghetti, eliminara intencionalmente os capítulos finais do romance do siciliano Giuseppe Tomasi di Lampedusa (Palermo, 1896 – Roma, 1957), publicado, postumamente. Ou seja, dois anos após a morte, por câncer, de seu autor, que em vão buscara uma editora (foi rejeitado por todas).
A série aproveitou tudo do livro, escorada na largueza de tempo do streaming, nos fartos recursos da Netflix e nas belezas das paisagens e palácios da Sicília (e interiores de outras joias da arquitetura romana).
A Film Comission da Sicília abraçou com gosto o projeto, felizmente falado em italiano e com elenco peninsular. Se, em seu filme, Visconti quisesse radicalizar, o dialeto siciliano seria dominante no filme. Mas, em 1963, o cinema peninsular vivia seu apogeu e contava com astros da grandeza de Marcello Mastroiani, Sophia Loren, Monica Vitti, Vittorio Gazzman, Giulietta Masina, Anna Magnani e Silvana Mangano. E o «aristocrata vermelho», já na década de 1960, aprofundava as bases de seu cinema internacional. E escolhia o norte-americano Burt Lancaster como protagonista. E o francês Alain Delon, que ele transformara em astro, três anos antes, em «Rocco», para o segundo papel, o de Tancredi.
Os roteiristas e o diretor do épico da Netflix tiveram o bom senso de realizar a série em língua italiana e com atores locais. O mais famoso deles é Kim Rossi Stuart. Coube a ele representar Don Fabricio Corbera, o Príncipe de Salina, que assiste à decadência da aristocracia siciliana.
Nos primeiros capítulos da série, a imagem de Burt Lancaster não sai de nossas retinas (o ator sempre viu no Príncipe viscontiano o seu melhor papel, o mais complexo e nuançado). Mas, com o desenvolver da trama, Stuart, com seus fartos fios capilares, suas largas costeletas, suas roupas muito bem cortadas e sua dolorosa melancolia, vai nos convencendo. Seus olhos azuis, símbolo da nobreza que vê seus domínios sendo arrebatados pela burguesia «mal-nascida e inculta», ganham relevo e profundidade. O que jamais acontecerá com o Tancredi de Saul Nanni, um jovenzinho de baixa estatura, que jamais apagará Alain Delon de nossa memória. O italiano assemelha-se a um moleque de filme de adolescentes.
Difícil, também, aceitar Deva Cassel no papel da bela Angélica, filha do burguês grosseirão e de genitora que este esconde da vista de todos, por ser ela de origem camponesa, analfabeta e incapaz de conversar com os aristocratas da família Salina. Não que Deva Cassel não seja bonita. É muito bonita. Mas Cardinale representou, como ninguém, a jovem burguesa que casou-se com o estimado sobrinho do Príncipe e, com este, dançaria a mais sedutora e aliciante das valsas impressas no celuloide.
Dois personagens, porém, encontraram intérpretes formidáveis tanto no filme de Visconti quanto na série ítalo-britânica – Dom Calógero Sedara, o camponês que será prefeito de Donnafugata e, depois, senador em Turim, e o vigário que mais parece um serviçal do Príncipe. A ponto de fazer vista grossa (acumpliciar-se, na verdade) às aventuras extraconjugais de Don Fabricio com sedutora e carnuda prostituta. Paolo Stoppa (o prefeito) e Romulo Valli (o padre) viscontianos são maravilhosos. Francesco Colella e Paolo Calbresi nos mesmos papeis (e na telinha) também brilham.
Os roteiristas (palavra que o streaming substitui por «criadores») da série «O Leopardo» ampliaram o papel de Concetta (Benedetta Porcaroli), a filha preferida do Príncipe de Salina. A jovem tem participação modesta no livro e muito secundária no filme de Visconti. Warlow e Walters, em busca de sintonia com amplas plateias contemporâneas, explorou bem os amores e dores de Concetta, apaixonada pelo primo que a trocou pela filha do carreirista Calógero Sedara.
Na segunda parte da série, um insistente (e algo folhetinesco) triângulo amoroso entre o jovem Tancredi, sua bela esposa Angélica e a prima Concetta andarão de par em par com a melancolia que toma conta do protagonista, «o Leopardo» siciliano.
Don Fabricio Corbera, que carrega metaforicamente o felino como símbolo de sua nobreza, atormentado pelas lutas revolucionário-garibaldinas, pretende abandonar seu palácio em Palermo e levar a esposa e os sete filhos para seu palácio-refúgio na pequena Donnafugata.
Em tempo de convulsão social, a transferência dependerá de salvo-conduto a ser emitido por representantes das forças comandadas por Giuseppe Garibaldi. O herói de dois mundos, naqueles anos (1860), lutava pelo Risorgimento (a unificação da Itália).
Tancredi, o estimado sobrinho do «Leopardo», luta junto às forças garibaldistas, trajada com camisas vermelhas. Ao regressar do campo de batalha, com uma venda num dos olhos, pois fora ferido em combate, ele manterá diálogo com o tio, incomodado com as mudanças propostas pelos revolucionários. A ideia central do diálogo tornar-se-ia marca registrada do livro, do filme e, agora, da série Netflix.
Tancredi faz uma primeira consideração, a título de preâmbulo: «A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos, eles nos submeterão à República». Ou seja, os garibaldinos poderão dar fim aos privilégios da aristocracia, que comanda os vários reinos (o Príncipe de Salina é ligado aos Bourbon) da (futura) Itália unificada. E o jovem concluirá: «Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude».
Quem não conhece “O Leopardo” de Visconti, deverá assistir, primeiro, à série da Netflix. Nela encontrará imagens sofisticadas, um certo didatismo, figurinos requintadíssimos e paisagens (muitas paisagens) exuberantes. O turismo na ilha mediterrânea, se a série fizer sucesso, deverá gerar hordas de visitantes.
Depois da produção Netflix, aí sim, vale recorrer à videoteca de um amigo (o filme de Visconti, nesse momento, não está disponível em nenhuma plataforma oficial de streaming) e assistir ao “Leopardo” que triunfou em Cannes. Quem sabe a série traz o filme – que “transformou um romance de direita em filme de esquerda” – de novo à fruição do espectador?
O tom realista-decandentista do romance de Lampedusa ganha no filme viscontiano um tratamento realista-transformador. O Príncipe de Salina, a esposa e os filhos chegarão a Donnafugata, depois de enfrentar estradas de terra, dentro de carruagem puxada por cavalos, cobertos de poeira. Nada da assepsia na série.
E há o gênio do mestre peninsular. Além do mais belo baile engendrado pela história do cinema, há momentos capazes de provocar pequenas epifanias. O primeiro deles se dá no encontro entre o Príncipe de Salina e seu estimado sobrinho, que regressa do campo de batalha, cercado de amigos (um deles interpretado pelo futuro astro do western spaghetti, Giuliano “Dolar Furado” Gemma).
O Príncipe faz a barba e tem sua imagem projetada em espelho de reduzidas proporções. É nele que veremos projetada a imagem de Tancredi, materializada na beleza juvenil de Alain Delon. E notem, cinéfilos, que entre os filhos do aristocrata está um adolescente que marcaria o cinema de Pasolini e até de Buñuel – Pierre Clementi.

Por fim, um testemunho pessoal. A primeira vez que assisti à versão integral do “Leopardo” viscontiano (a de 185 minutos), fui arrebatada – amante que sou de épicos político-sociais – por sequência que acontece fora do refinado salão de baile. Don Fabrício Corbera sente imenso mal-estar. Percebe que seus dias estão chegando ao fim (assim como a classe que ele representa). Cambaleante, busca fôlego fora do grande salão e depara-se com cômodo ocupado por refinados urinóis de louça. Quase todos repletos.
Ali, naquela inusitada sala, os convivas da imensa festa davam vazão às suas necessidades fisiológicas. Era a primeira vez na minha vida que eu, como espectadora, era instada a imaginar (a ver) onde os aristocratas decadentes e os burgueses ascendentes aliviavam suas necessidades vitais, depois de beber taças e taças de fino champagne.
É de todos sabido que os 185 minutos da versão original de “Il Gattopardo” foram reduzidos a de duas horas e meia, em cópia internacional, que estreou nos EUA (dublada em inglês) e espalhou-se pelo mundo. Eu conhecia essa versão. Foi uma maravilha assistir à versão integral. Porém, passados muitos anos, assisti à novíssima cópia restaurada do filme, de longa duração. Mas sem os penicos de louça.
Fui assistir ao “Gattopardo” com um grupo de amigos e teci loas à famosa sequência. Enfatizei que o “duque vermelho” era um cultivador tão convicto do grande cinema realista, que, semelhante a um documentarista, criara uma cena de alma, digamos, documental. Pela ficção, nos mostrava os receptáculos da urina de refinados nobres e burgueses incultos-endinheirados.
Qual não foi minha decepção: os urinóis não apareceram. E a versão tinha umas três horas de duração. O tempo passou e comecei a imaginar que “inventara” aquela sequência. Ela não existia.
Depois de ver a série e (rever pela sexta ou sétima vez) esse que é um dos “vinte filmes’ da minha vida, reencontrei a cena. E fiz fotos, para provar aos meus amigos que eu não delirara. Visconti, tinha, sim, colocado o Príncipe de Salina, tomado pela mais profunda melancolia, defronte aos penicos de louça, recheados com excremento humano. Com a dura poesia da mais refinada arte.
O Leopardo | Il Gattopardo
Série em seis capítulos de média de 60 minutos cada
Direção: Tom Shankland
Criação: Richard Warlow e Benji Walters
Elenco: Kim Rossi Stuart (Príncipe de Salina), Benedetta Porcaroli (Concetta), Deva Cassel (Angélica Sedara), Saul Nanni (Tancredi), Francesco Colella (Don Calógero Sedara), Paolo Calabresi (Don Pirrone, o vigário), Astrid Meloni (Princesa Stela de Salina), Mario Patamé (mordomo do Príncipe de Salina), Corrado Invernizzi (Chevalley), Greta Esposito (Chiara)
Fotografia: Nicolai Brüel
Trilha sonora: Paolo Buonvino
Direção de arte: Dimitri Capuano
Figurino: Carlo Poggioli e Edoardo Russo
Onde assistir: Netflix
O Leopardo | Il Gattopardo
Itália, 1963, 185 minutos
Direção: Luchino Visconti
Roteiro: Suso Cecchi d’Amico, Pasquale Festa Campanile, Enrico Medioli, Massimo Franciosa e Luchino Visconti
Elenco: Burt Lancaster (Príncipe de Salina), Alain Delon (Tancredi), Claudia Cardinale (Angélica), Paolo Stoppa (Dom Calógero), Rina Morelli (Princesa Stela de Salina), Romulo Valli (Dom Pirrone, o vigario), Terence Hill – Mario Girotti (Conde Cavriaghi), Lucila Morlacchi (Concetta Salina), Pierre Clementi (Francesco Paolo de Salina), Giuliano Gemma (soldado de Garibaldi)
Fotografia: Giuseppe Rotunno
Trilha sonora: Nino Rota (e Verdi)
Achei fraca a minissérie O Leopardo. Enredo ruim, evidenciando a filha do Leopardo e seu sobrinho. Muita audácia desse diretor fazer esse remake.