“Jovens Amantes”, “Pedaço de Mim e “Hot Milk” atestam vitalidade do cinema feminino
Foto: “Jovens Amantes”, de Valeria Bruni Tedeschi
Por Maria do Rosário Caetano
O cinema feminino está em alta no circuito exibidor brasileiro. Além de “Apocalipse nos Trópicos”, da brasileira Petra Costa, três cineastas – duas francesas e uma britânica – apresentam, em nosso circuito de arte e ensaio, filmes selecionados para os festivais de Cannes, Veneza e Berlim.
O mais, e merecidamente, badalado é “Jovens Amantes”, da atriz e diretora ítalo-francesa Valeria Bruni Tedeschi, que participou da disputa pela Palma de Ouro, em Cannes 2022. Uma maravilha cinematográfica, recomendada, em especial, aos que amam o teatro e seus artífices. No caso, o grande encenador (e cineasta) Patrice Chéreau, que transformou a Rua das Amendoeiras (daí o título original, “Les Amandiers”), em foco de criação cênica. A parisiense Nantère, com seu teatro-escola, transformou-se em objeto de desejo para aqueles interessados em novas experiências de vida e arte. Isso na década de 1980, quando a Aids chegou para atormentar os libertários filhos de 1968.
O outro filme – “Mon Inséparable”, de Anne-Sophie Bailly – recebeu, em português, o título “Pedaço de Mim”, tão cativante quanto os versos de Chico Buarque (na canção de mesmo nome). A narrativa é protagonizada por Mona (Laure Calamy, da aliciante série “Dix pour Cent”), que cuida sozinha do filho neurodivergente, Joël (Charles Peccia Galletto), já rapaz feito.
Os exigentes cuidados filiais deixam Mona em estado de esgotamento. Ela deseja cuidar de sua própria vida, esfrangalhada do ponto de vista amoroso e sexual. Até conhecer Franck (o belga Geert van Rampelberg). Para complicar tudo, o filho e a namorada Océane (Julie Froger), também neurodivergente, lhe trarão grande e inesperada preocupação.
O terceiro filme – “Hot Milk”, de Rebecca Lenkiewicz – participou do Festival de Berlim. A cineasta acompanha a viagem de Rose (a veterana Fiona Shaw) e de sua filha Sophia (Emma Mackey), vindas da Inglaterra até a Espanha, onde passarão férias sob o sol litorâneo de Almeria. “Férias” entre aspas, pois o objetivo de Rose é submeter-se a tratamento com um enigmático curandeiro, de nome Gómez (Vincent Perez). A britânica espera que ele, que cobrou significativo valor em euros, encontre solução para sua rara e misteriosa doença, cuja consequência mais greve é a paralisia de seus membros inferiores. Ela vive presa a uma cadeira de rodas, empurrada pela filha, nascida de sua relação com companheiro grego, que a trocou por esposa bem mais jovem.
O sol escaldante do verão espanhol estimula Sofia a respirar, buscar saídas, pois a relação com a mãe, possessiva e exigente, torna-se cada dia mais difícil. Enquanto realiza, com ajuda de seu computador, estudos antropológicos, a jovem remói desejos eróticos. Na praia, conhecerá Ingrid (Vicky Krieps, a Sissi quarentona de “Corsage”), viajante misteriosa, excêntrica e disposta a viver fora de regramentos convencionais.
O filme abandonará a relação mãe-filha para transformar-se em romance lésbico?
Não. Em sua estreia como diretora, a festejada dramaturga britânica (coautora do polônes “Ida” e de “Colette”), Rebecca preferiu realizar um drama psicológico feminino, centrado em três mulheres muito complicadas. Mais que cenas de sexo, interessa à diretora estreante, de 57 anos, mergulhar nas amarguras e ressentimentos de suas personagens. O filme chegará, em breve, ao streaming (na plataforma MuBi).

Sobre “Jovens Amantes”, há que se destacar o amadurecimento de Valeria Bruni Tedeschi como diretora. Atriz reconhecida (quem não se lembra dela como uma das “doidinhas” de “Loucas de Alegria”, de Paolo Virzì?), Valeria realiza seu filme mais fascinante. E que nunca perde o ritmo, apesar de seus 126 minutos. Tudo começa no Teatro das Amendoeiras, onde Patrice Chéreau (1944-2013), interpretado por Louis Garrel, divide com Pierre Romans (Micha Lescot) um território de invenção teatral. Eles recebem 40 aspirantes a frequentar o curso nada convencional de sua escola-laboratório e a participar das encenações teatrais da companhia.
Apenas 12 vagas são disponibilizadas. Os jovens passarão por duros testes. A seleção é feita e um décimo-terceiro nome é acrescentado, à mão, na lista. Começam os exercícios e os ensaios. Duas peças vão marcar o filme – “A Prostituta Respeitosa” (Sartre, 1944) e “Platónov” (1880), primeiro texto de Tchecov (escrito quando o russo somava apenas 19 anos).
O público brasileiro perceberá, numa parede nobre da Escola de Chéreau & Romans, vistoso cartaz do grupo Macunaíma, comandado por Antunes Filho (1929-2019). O espetáculo, recriação da rapsódia romanesca de Mário de Andrade, estreou no Brasil no final dos anos 1970 e encantou a Europa, em especial a França, no começo dos anos 1980. Por isso, o cartaz ganhará o merecido destaque. A trupe de Antunes marcou, mesmo, o imaginário de todos os alunos, em especial, de Valeria Bruni Tedeschi, filha de família de ricos industriais de Turim. Ela radicou-se na França nos anos em que as Brigadas Vermelhas começaram a ameaçar os bilionários da Península. Hoje, divide-se entre Roma e Paris. Tem dupla nacionalidade e filma nos dois países. “Les Amandiers” é um longa-metragem 100% francês.
Tomada por imensa alegria, Valeria revive prazerosamente aqueles anos loucos, quando apaixonou-se por um rapaz – na trama, Etienne (Sofiane Bennacer) – que mergulhou no teatro, no amor, no sexo e nas drogas. Naqueles anos, ela viu suas amigas, depois de transarem sem camisinha, entrarem em pânico, pois a Aids espalhava-se como um epidemia. E ceifava vidas.
Para transformar seus anos loucos de formação em filme apaixonante, a cineasta recorreu à ajuda de três colaboradoras. Uma delas – a atriz, roteirista e diretora Noémi Lvovsky – é um patrimônio do cinema francês. Já sexagenária, Lvovsky soma 13 participações (nas mais diversas categorias) nas cerimônias dos Prêmios César, o Oscar francês. E já fascinou o público, por seu talento, com papéis luminosos, mesmo que coadjuvantes. O mais delicioso de seus filmes é “Filles de Joie” (“Donas da Alegria”, de Anne Paulicevich e Frédéric Fonteyne). Nele, ela interpreta uma mulher francesa, casada, que, em situação difícil, vai com duas amigas prostituir-se na vizinha Bélgica.
Tudo indica que Noémi Lvovsky seja a matriz (livremente reinventada) de Adèle (Clara Bretheau), a amiga mais próxima e doidinha de Stella. Aquela que anda sem calcinha e mostra a bunda para os paqueradores de rua. E que os provoca, dizendo que elas não irão dar atenção a eles, pois são portadores do vírus da Aids. A mais pura irreverência da juventude.
Nada é gratuito em “Jovens Amantes” (do teatro, dos amigos, da vida). O que Valeria quis mostrar, ela conseguiu (também com a ajuda de outra roteirista, Agnès De Sacy, e colaboração especial de Caroline Deruas Peano). Quatro mulheres unidas para evocar um tempo que deixou muitas saudades. E dores.
As imagens do diretor de fotografia Julien Poupard ajudam a criar atmosfera única. O roteiro traz a pulsão de um tempo pregresso, mas que fala muito a qualquer jovem contemporâneo desde que disposto a se jogar de cabeça nos desafios da vida. Nada é fácil, nem para a milionária Stella, que mora em mansão com mordomo e todos os confortos burgueses.
A passagem pelo Actors Studio nova-iorquino, de Lee Strasberg, ajuda a tornar vertiginosa a narrativa do sétimo longa-metragem de Valeria. A trilha sonora soma canções de Charles Aznavour (“Parce que”) a “Me & Bob Mc Gee”, na voz de Janis Joplin, à italianíssima “Guarda che Luna”, de Malgoni, e “Les Feilles Mortes”, de Prévert & Kosma. Tais canções só fazem aumentar o poder de sedução (e evocação) dos “Jovens Amantes” da Rua das Amendoeiras.

“Pedaço de Mim”, além de nos revelar uma diretora (Annie-Sophie Bailly) de talento dos mais promissores, nos mostra uma narrativa que foge da piedade cristã. A realizadora não se propõe a arrancar lágrimas por mobilizar personagens que carregam algum tipo de deficiência.
A protagonista (Laure Calamy, aos 50 anos, dona absoluta de seus recursos dramáticos e cômicos) é uma mulher que trabalha como depiladora num centro de tratamentos estéticos e vive para arrumar o dinheiro necessário às despesas domésticas. E para cuidar do filho Joël (já adulto), neurodivergente. Ele presta serviços num centro de atendimento a jovens como ele. E namora a rechonchuda Océanie, também neurodivergente.
Num certo dia, a casa cai. Para desespero da família da moça e para a solitária Mona. Em busca de saída, a mãe de Joël resolve fazer uma viagem com o filho rumo à “feíssima” Charleroi, cidade belga, situada na Valônia de expressão francesa. A escolha de tão inusitado destino será revelada em seguida. Ao término desse filme imperdível – pois construído com realismo e ternura (jamais com chantagem sentimental) –, concluiremos, satisfeitos, que é possível driblar apelos fáceis na abordagem de temas difíceis.
O britânico “Hot Milk” é denso e de fruição complicada. Rebecca Lenkiewicz, experiente dramaturga inglesa, compõe personagens complexas e inquietantes. Coloca suas protagonistas, inglesas como ela, em solo espanhol e aposta no multiculturalismo. Além de ser filha de pai grego, Sophia vai relacionar-se com Ingrid Bauer, de origem germânica e libertária, que, por sua vez, relaciona-se casualmente com um jovem africano. Ela, também, está de passagem pela costa da Almeria, província autônoma da Andaluzia.
Quem quiser fruir um filme meio fora do esquadro, pode gostar desse “leite quente” fervido por Rebecca Lenkiewicz. Que não deverá agradar a todos os paladares. Principalmente, por seu final, digamos, por demais aberto e desconcertante.
Jovens Amantes | Les Amandiers
França-Itália, 2022, 126 minutos
Direção: Valeria Bruni Tedeschi
Roteiro: Valeria Bruni Tedeschi, Noémi Lvovsky, Agnès De Sacy e Caroline Deruas Peano
Elenco: Nadia Tereszkiewicz (Stella), Sofiane Bennacer (Étienne), Louis Garrel (Patrice Chéreau), Léna Garrel ( Anaïs), Micha Lescot (Pierre Romans), Clara Bretheau (Adèle), Noham Edje (Franck), Vassili Schneider (Victor), Eva Danino (Claire), Liv Henneguier (Juliette), Batiste Carrion-Weiss (Baptiste), Sarah Henochsberg (Laurence), Oscar Lésage (Stéphane), Alexia Chardar (Camille), Sandra Nkaké (professora do Actoirs Studio)
Fotografia: Julien Poupard
Montagem: Anne Weil
Designer de som: François Waledisch
Distribuição: Pandora Filmes
Pedaço de Mim | Mon Inséparable
França, Bélgica, 2024, 95 minutos
Direção e roteiro: Anne-Sophie Bailly
Elenco: Laure Calamy (Mona), Charles Peccia Galletto (Joël), Julie Froger (Océanie), Gert van Rampelberg (Franck)
Fotografia: Nader Chalhoub
Montagem: Quentin Sombsthay e François Quiqueré
Distribuição: Filmes do Estação
Hot Milk
Reino Unido, 2025, 93 minutos
Direção e roteiro: Rebecca Lenkiewicz
Elenco: Emma Mackey (Sophia), Fiona Shaw (Rose), Vicky Krieps (Ingrid Bauer), Vincent Perez (terapeuta), Vangelis Mourikis (pai de Sophia), Yann Gael (namorado de Ingrid), Patsy Ferran e Korina Gougouli
Fotografia: Christopher Blauvelt
Montagem: Mattew Herbert
Distribuição: O2 Play e MuBi
FILMOGRAFIA
Valeria Bruni Tedeschi (Turim, Itália, 16 de novembro de 1966)
Atriz e diretora de cinema, radicada na França (tem dupla nacionalidade)
2022 – “Jovens Amantes”
2018 – “A Casa de Veraneio”
2016 – “Une Jeune Fille de 90 Ans”
2015 – “”Les Trois Soeurs” (para TV)
2013 – “Um Castelo na Itália”
2007 – “Atrizes”
2003 – “La Vie Come Viene”
Anne-Sophie Bailly
Atriz, roteirista e diretora formada pela FEMIS (ex-IDHEC). Nasceu em Franche-Conté, França.
2024 – “Pedaço de Mim” (França-Bélgica)
Rebecca Lenkiewicz
Dramaturga, roteirista e cineasta britânica (Plymouth, Reino Unido, 1968)
2025 – “Hot Milk” (Inglaterra, Espanha, Grécia)
Adorei!
Só vi por enquanto, Jovens Amantes.