“Ary”, filme de abertura do Festival Aruanda, resgata o criador de “Aquarela do Brasil” de imerecido ostracismo

Por Maria do Rosário Caetano, de João Pessoa (PB)

“Ary”, filme inaugural da vigésima edição do Festival Aruanda do Audiovisual Brasileiro, faz, ainda que tardiamente, justiça cinematográfica à memória do compositor da emblemática “Aquarela do Brasil”. O músico conquistou fama, também, como humorista, cronista e o mais parcial dos locutores de futebol do país. Sua ardorosa militância pela causa rubro-negra, enchia de alegria o coração de seus fãs e correligionários. E de desespero os que torciam pelo Botafogo, Vasco ou Fluminense.

O cineasta, designer e pianista carioca André Weller, de 54 anos, veio — com o longa documental “Ary” — enriquecer a reduzida representação cinematográfica do artista mineiro (nascido em Ubá, mas preservado no imaginário brasileiro como “baiano”.). O multiartista fez muito para ganhar dupla cidadania musical (tripla, se levarmos em conta que o Rio de Janeiro foi sua morada mais duradoura e túmulo). Como diz Tárik de Souza em seu novo livro (“João Gilberto e a Insurreição da Bossa Nova”), Ary Barroso foi o verdadeiro criador de “uma Bahia mítica e edênica”.

Antes de André Weller, autor de filmes sobre Miltinho, príncipe do sambalanço, João Roberto Kelly, craque das marchinhas, e o cronista Rubem Braga, houve quem realizasse filmes sobre Ary Barroso (1903-1964). Caso de Ângela Zoé (“Ele Era Assim”), e de Dimas Oliveira Jr, diretor do telefilme “O Brasil Brasileiro de Ary Barroso” (SescTV). Faltava, porém, um longa-metragem de maior ambição sobre o múltiplo criador, que teve trinta de suas mais de 250 composições gravadas pela bombshell Carmen Miranda.

“Ary”, conciso no nome e na duração (apenas 71 minutos), é um filme notável, um documentário realmente cinematográfico. Ou seja, nada televisivo, didático ou expositivo. Daqueles que defendem a obra do artista-personagem e buscam construir trama potencializadora de sons e imagens. Não testemunhos laudatórios e redundantes.

Weller construiu “Ary” ao longo de 16 anos. Pianista como seu personagem, ele adotou recorte explícito: mostrar um músico brasileiro, praticante de ofícios diversos, que deixou obra de imensa riqueza, complexidade e importância. Tanto que Weller vê seu personagem como soma de “Galvão Bueno, Silvio Santos e Anita”. Heim????

O cineasta explicou — durante o movimentado debate de seu filme — essa exótica soma de paradigmas: “Ary Barroso foi o locutor esportivo mais famoso de sua época (como Galvão Bueno),  apresentador de Programa de Calouro na TV Tupi, tão popular quanto o dono do SBT, e capaz de projetar nossa música no exterior (como a cantora Anita)”. Essa compreensão não está articulada de forma explícita no filme, mas aparece em suas entrelinhas.

Com auxílio de trechos de chanchadas da Atlântida e de produções internacionais (inclusive dos Estúdios Disney), de registros domésticos (em especial de famílias que visitaram o Rio ou a Bahia) e pequenas dramatizações, Weller construiu seu filme. E recorreu a poderosa voz-narrativa (em primeira pessoa) de Lima Duarte. O ator fala por Ary Barroso.

O documentarista deixou de lado a enumeração de dados biográficos (do nascimento ao túmulo) e da vida político-cidadã de seu personagem (o compositor foi vereador pela UDN e ligado a ideais conservadores). Não investiu, também, em ideia sedimentada nos meios musicais — Ary seria eterno devedor do genial arranjo feito pelo maestro Radamés Gnatalli para “Aquarela do Brasil”. E mais: foi o nome mais estelar da constelação de cultores do samba-exaltação. O porta-voz melódico-sonoro de um “Brasil brasileiro”, idealizado, maravilhoso, desprovido de contradições brutais-estruturais.

E por isso o filme perde sua relevância?

De forma alguma. Continua muito importante (e necessário), pois nos faz lembrar de criações da grandeza de “Serra da Boa Esperança” (parceria com Lamartine Babo), “Rancho dos Namorados” (com Vinicius de Moraes), “Na Baixa do Sapateiro”, “Os Quindins de Iaiá”, “Folha Morta” e “Pra Machucar meu Coração”.

E ninguém pense que assistirá a um documentário musical com parco uso de… números musicais! Graças ao apoio do grupo empresarial Energisa, erguido na Zona da Mata Mineira, a mesma que viu Ary nascer, o cineasta pôde pagar robustas quantias pela cessão de direitos autorais. Treze minutos de arquivos internacionais foram adquiridos. O mesmo se deu com o licenciamento do uso de composições do acervo dos Irmãos Vitale e de trechos de filmes brasileiros. Em especial das chanchadas “Carnaval Atlântida”, de José Carlos Burle (1952), e “Três Colegas de Batina”, de Darcy Evangelista (1952).

Do primeiro, saborosa comédia carnavalesca, veremos número de antologia, no qual Grande Otelo e Eliana, a musa de titio Watson Macedo, cantam versos do mestre Ary. Otelo, então, prova (como se preciso fosse) o quanto era grande. E Eliana derrama simpatia e brejeirice.

Já no filme de Evangelista, uma comédia ingênua e rasgada, veremos o compositor e apresentador de TV interpretando a si mesmo. Servindo-se de seu carisma e humor para receber três frades, que, para promover benfeitorias numa favela, necessitam de dinheiro.

Como encontrá-lo?

Participando de concurso de calouros, num programa de TV, apresentado por Ary Barroso. Foi nesse filme, produzido por Oswaldo Massaini, que André Weller conseguiu as melhores imagens em movimento do autor de “Isto Aqui o que É?”, que costumamos identificar como “Sandália de Prata”. Apesar de ser um dos artistas mais famosos (tanto no Brasil quanto nos EUA da Política da Boa Vizinhança, nas décadas de 1940 e 50), Ary deixou raras imagens em movimento. Ele morreu, de cirrose, aos 60 anos, num dia de Carnaval de 1964.

Weller externou, sucessivas vezes (durante o debate de seu documentário), preocupação com o ostracismo a que Ary e sua obra foram (estariam sendo) relegados. Por isso, fez questão de driblar qualquer ênfase nas ideias conservadoras do artista. E até relativizou o imenso destaque dado ao arranjo de Radamés Gnatalli para “Aquarela do Brasil”.

Sendo músico de formação erudita (são dele muitas das execuções pianísticas que ouvimos no filme), Weller pondera que Ary era um músico experiente, que somou informações sinfônicas e populares em sua “Aquarela”. E contou, ainda, com a colaboração do baterista Luciano Perrone (1908-2001) no referido arranjo gnatalliano. Foi este músico, o percussionista, quem salpicou os “arranjos violinísticos” do maestro ítalo-brasileiro, de boas doses da rítmica do samba.

Será que alguém, hoje em dia, está preocupado com as opções políticas de Ary Barroso nos tempos de Vargas e nas décadas seguintes?

Ou o compositor de Ubá, como dezenas de grandes artistas brasileiros, é apenas mais uma das vítimas da mediocridade sonora que tomou conta de nossos meios de comunicação (TV, rádios e streaming) nas últimas décadas?

Ary Barroso, afinal, continua grande e respeitado. Se a morte não o tivesse colhido justo no dia oito de fevereiro de 1964, ele teria assistido ao desfile da então irresistível Império Serrano. Que fizera dele o tema-enredo, traduzido em magnífico samba do mestre Silas de Oliveira. A escola entraria na avenida minutos depois do anúncio do falecimento de seu homenageado. Passados 14 anos, em 1988, ele seria homenageado por outra agremiação, a União da Ilha, com o enredo “Aquarylha do Brasil”.

E continuaria no coração dos amantes da Bossa Nova e do Tropicalismo. No disco “Brasil”, os baianos João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Bethânia homenageariam o “inventor da Bahia mítica” com gravação antológica de “Aquarela do Brasil” (gravação que fecha o filme de Weller). E Gal Costa dedicaria um disco inteiro ao mineiro-baiano-carioca, torcedor fanático e hilário do Flamengo.

Daqui de João Pessoa, o cineasta-pianista, que já apresentou o filme no Festival do Rio, na Mostra SP e em Ubá, segue para o Festival de Troncoso, no litoral baiano. Se depender dele, Ary Barroso será arrancado do imerecido ostracismo a que foi arremessado.

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