Bruno Barreto promete dar fim à “maldição” que, há 70 anos, impede realização de cinebiografia ficcional de Carmen Miranda
Foto: “Carmen Miranda – Bananas is my Business”, de Helena Solberg
Por Maria do Rosário Caetano
A “maldição” que pesa sobre a realização de longa-metragem ficcional sobre a trajetória da cantora e atriz Carmen Miranda está com os dias contados. Passados 70 anos da morte da “Pequena Notável”, o cineasta Bruno Barreto garante que “em julho, com Larissa Manoela como protagonista e a Paris Filmes e Globo Filmes como produtoras”, começará a rodar “Pra Você Gostar de Mim”, cinebiografia da “Brazilian Bombshell”.
“Bomba brasileira” em sentido positivo. Muito positivo! Ou seja, “mulher atraente, ícone da beleza e da sensualidade”. Era assim que os norte-americanos percebiam a artista brasileira por eles adotada. Gostavam daquela baixinha (de 1m52) atrevida, cheia de vida. E, ainda por cima, montada sobre imensas sandálias-plataforma, vestida com roupas extravagantes, arrematadas por turbantes recheados de frutas, em especial de tropicalíssimas bananas.
Nos anos 1940, começo dos 50, a estrela de concorridíssimos shows na Broadway e de 14 filmes, nove deles produzidos pela Twenty Century Fox, integrava a linha de frente do showbis planetário. Residia numa invejável mansão em Beverly Hills.
Ela até tentaria fugir do estereótipo, da caricatura bananeira. Faria um filme com Groucho Marx, “Copacabana” (Alfred E. Green, 1947), para mostrar que era capaz de interpretar outros tipos. No caso, uma cantora francesa, Mademoiselle Fifi. Mas, no mesmo filme, repetiria o estereótipo, interpretando Carmen Novarro, atriz brasileira agenciada pelo divertido Lionel Devereaux (papel de Groucho). As coisas saíam do prumo no nomento em que dono do clube se apaixonava por uma delas.
Carmen Miranda ainda é, junto com Pelé, o símbolo máximo do Brasil no exterior. Ela nasceu em Portugal, em fevereiro de 1909. Chegaria, pequenina, ao Brasil. Bem jovem iniciou carreira como cantora, atuou em filmes como “Alô, Alô Carnaval” (em dueto de antologia com a irmã Aurora) e “Banana da Terra”. Neste, ensinou – com receita musical de Dorival Caymmi – “O que é que a Baiana Tem”. Mudou-se para os EUA aos 29 anos. E lá morreu, em agosto de 1955, aos 46 anos. Distante de seu país natal e acusada de “americanizada”. A ponto da língua ferina de David Nasser vituperar:
“Carmen Miranda esqueceu a língua portuguesa, desaprendeu o ritmo do samba, que ela mesma notabilizou, e trocou as rendas da baiana pela fantasia de cowgirl do Texas. É como se Carmen fosse conquistada por uma potência estrangeira e cumpria retomá-la mesmo que fosse à força. Mas de que jeito, se ela própria se entregava feliz às tropas de ocupação?”.
É justamente sobre a difícil relação de Carmen com o Brasil que se erguerá o principal pilar do filme que Bruno Barreto promete tirar em breve do papel. Ele não pretende contar a história da “Pequena Notável” do nascimento ao túmulo. Mas sim, concentrar-se no período que ela viveu nos EUA, primeiro em Nova York, depois em Los Angeles.
Para conhecer melhor o projeto anunciado como vigésimo-quarto longa-metragem do diretor de “Dona Flor e seus Dois Maridos (10.735.305 espectadores), “A Estrela Sobe” (1.076.885) e “Beijo no Asfalto” (880.334), a Revista de CINEMA entrevistou Bruno Barreto. Aliás, um carioca (como Carmen, com a devida licença dos lusitanos), filho dos produtores Lucy e Luiz Carlos Barreto, nascido no ano da morte dessa personagem que ele persegue “desde 1973”, pouco depois de sua estreia no cinema.
Revista de CINEMA — Você vai quebrar, mesmo, a “maldição” que parece recair sobre a cinebiografia ficcional de Carmen Miranda, morta sete décadas atrás e nunca filmada? Aníbal Massaini prometeu levar roteiro de Lauro César Muniz aos cinemas, e não conseguiu. Só a brasileira Helena Solberg realizou longa documental (“Bananas is my Business”), 31 anos atrás. Mas, no terreno da ficção, nada vingou.
Bruno Barreto – Pois agora é para valer. Começaremos as filmagens em julho, com produção da Giros, de Belisário Franca, um cineasta e produtor muito competente, que dirigiu “Menino 23” e acaba de produzir “Sexa”, de (e com) Glória Pires. Nós contamos com produção da Paris Filmes e da Globo Filmes. Em abril, estaremos com toda a equipe contratada. Não tem volta. Filmaremos até 15 de setembro, no Brasil, mesmo que o período retratado seja aquele vivido nos EUA. Claro que faremos externas em Nova York e em Los Angeles. Mas a base será brasileira, assim como a produção. O roteiro é de Melanie Dimantas, Guilherme Gonzalez e meu. E olhe que não costumo escrever roteiros. Mas, nesse caso, essa paixão – mostrar a história de Carmen nos EUA – é tão grande e antiga, que trabalhei junto com a Melanie.
Em que momento você se apaixonou pela história de Carmen Miranda?
Bruno – Quando tinha 19 ou 20 anos. Depois de estrear aos 17, 18, com “Tati, a Garota”, eu realizei meu segundo filme, “A Estrela Sobe”, baseado em romance de Marques Rebelo (1906-1973). Conheci o escritor, que morava no Cosme Velho, e ele me contou que se inspirara, para narrar a história da cantora Leniza Meyer (Betty Faria), nos primeiros anos da carreira de Carmen Miranda. Eu prometi a mim mesmo que faria um filme sobre a história dela, que sempre vi como uma performer, mais que uma cantora. Mas meu pai só pensava em “Dona Flor e seus Dois Maridos”. Me disse que, se fizesse a adaptação do livro de Jorge Amado, depois faríamos o filme da Carmen. “A Estrela Sobe” teve ótima repercussão, inclusive de público, e contou com produção dos meus pais, em parceria com Walter Clark e Aloísio Salles.
Mas, repito, muitos tentaram produzir a cinebiografia ficcional de Carmen Miranda e não conseguiram. Caso do produtor Aníbal Massaini, que trabalharia com roteiro encomendado ao dramaturgo Lauro César Muniz…
Bruno – Massaini me convidou para dirigir o filme, que se chamaria “A Pequena Notável”. Trabalhamos juntos no projeto, que infelizmente não foi feito. E eu continuei alimentando meu desejo de realizar esse filme que está no meu imaginário desde o começo do anos 1970. À medida que o tempo foi passando, me coloquei novos desafios. Me perguntei: que recorte farei no meu filme sobre a performer e cantora brasileira? Como dizemos no jargão cinematográfico: qual é o ‘rosebud’, o trenó do “Cidadão Kane”, de nosso roteiro? Foi aí que me veio a ideia de filmar os anos que ela passou nos EUA, começando em 1939, quando partiu, convidada pelo empresário Lee Schubert, para atuar na Broadway. Ela foi chegando aos EUA e estourou. A estrela subiu com uma rapidez impressionante. Costumam dizer que Marilyn Monroe foi uma estrela “desenhada” pelos produtores. Eu digo que Carmen criou sua própria personagem. A personagem que viria a interpretar em tantos filmes. Claro que Hollywood e a Política da Boa Vizinhança iriam interferir nesse desenho, mas a base dele foi estabelecida pela própria Carmen. Ela sempre sonhou ser atriz. Sabia que a irmã Aurora, seis anos mais nova que ela, era a cantora da família. Mas Aurora acabaria abandonando a carreira para cuidar do marido, por quem era apaixonada, e dos filhos. Carmen seguiu como cantora e performer. Tanto que – e isto estará na abertura do nosso filme – ela pagou, do próprio bolso, a produção de teste para “Casablanca” (Michael Curtiz, 1942). Ela queria interpretar o papel que ficou com Ingrid Bergman. Mas não teve jeito. Hollywood a queria como uma “caricatura”, com suas roupas extravagantes e frutos na cabeça. A queria em filmes coloridíssimos, não num filme em preto-e-branco. Mas ela, quando conquistou sua estabilidade financeira, pagou multa para rescindir o contrato com a Fox e realizar o melhor dos filmes dela nos EUA – “Copacabana”, com Groucho Marx, no qual interpreta duas personagens, pelo menos uma fora do estereótipo. Ela sabia falar inglês sem sotaque. Mas o produtor, o estúdio e o público a queriam falando errado.
Carmen é um ícone gay. Em muitos de seus (vossos) filmes, desde “A Estrela Sobe” (1974), nos deparamos com personagens homoafetivos. A cantora veterana interpretada por Odete Lara na adptação de Marques Rebelo, as protagonistas de “Flores Raras” (Lotta Macedo e Elizabeth Bishop), a personagem de Larissa Manoela em “Traição entre Amigas”. Há, no roteiro de “Pra Você Gostar de Mim”, linha narrativa que aborde a paixão dos gays pela “Brazilian Bombshell”?
Bruno – Não diretamente, pois nosso novo filme tem como eixo principal a questão da identidade. A história de uma artista brasileira que mudou-se para os EUA, onde permanceria até sua morte. A relação dela com a indústria dos grandes shows e com o cinema foi muito complexa. Alice Faye, que trabalhou com Carmen em “Entre a Loura e a Morena” (1943), contava que a brasileira não gostava do próprio nariz. Por isso, recorreria a uma cirurgia plástica. Queria se assemelhar às atrizes de Hollywood. Aperfeiçoou-se na pronúncia do inglês, pois queria interpretar papéis variados. Mas (Darryl F.) Zanuck, o poderoso produtor da Fox, queria uma Carmen carnavalesca, caricata, que falasse errado. Ele era louco por ela, profissionalmente, claro. Por isso, não a cedia a outros estúdios, prática corrente em Hollywood. A Disney queria Carmen num filme e ele vetou. Não “emprestava”, não cedia. Então, essas questões, em especial a da identidade, permearão o nosso filme inteiro. Escrevemos um final lindo. Todo mundo que lê o roteiro se emociona. E tem a ver com o sonho dela, de sair da camisa de força do tutti-frutti, da chanchada multicolorida.
Antes de optar por Larissa Manoela, que protagonizou seu último filme (“Traição entre Amigas”, ainda em cartaz), você pensou em trabalhar com Tatá Werneck e, até, com a cantora Anitta?
Bruno – Com Tatá Werneck, sim, uma intérprete talentosíssima com um senso cômico impressionante. Eu me encantei com ela assistindo à telenovela “Amor à Vida”, na qual ela fazia a filha da personagem da Elizabeth Savala. Novela de Walcyr Carrasco, o Almodóvar dos nossos folhetins. Como o espanhol, ele adora um melodrama. Quando convidei Tatá para ser Carmen Miranda, ela ficou enlouquecida. Adorou. Ela me contou que virou atriz de tanto imitar Carmen Miranda, desde os tempos da infância. Mas a agenda dela é complicada. Com o “Traição entre Amigas”, descobri em Larissa Manoela a intérprete ideal. Mas ela tem compromissos com a Globo. Então, reservou o período de julho até o comecinho de setembro, para as filmagens. Quanto à Anitta, não a convidei para esse papel. Ela é maravilhosa e adoraria fazer um filme com ela. Mas não esse.
Boa parte do elenco do filme será composta de profissionais norte-americanos, não? Afinal, Carmen se integrou ao mundo do espetáculo nos EUA.
Bruno – Sim, claro, além do marido dela (David Alfred Sebastian, 1909-1990), haverá muitos personagens norte-americanos, como Zanuck, por exemplo. Claro que vou convidar atores norte-americanos para interpretá-los. E haverá muitos brasileiros, como Aurora Miranda, Aloysio Oliveira, do Bando da Lua, entre outros. Aliás, já acertei com André Luiz Frambach, o Gabriel de “Traição entre Amigas”, para ele interpretar Aloysio Oliveira. Frambach (marido de Larissa na vida real) é um ótimo ator, gostei muito do trabalho dele na nossa primeira parceria. Estou definindo os outros intérpretes, sempre a partir de testes. Não posso escalar uma atriz para o papel de Aurora Miranda, antes de testá-la junto com Larissa (Manoela). Tem que ter química entre as duas.
Tem um personagem para Wagner Moura, que está concorrendo ao Globo de Ouro e pode concorrer ao Oscar, no seu filme?
Bruno – Seria maravilhoso trabalhar com ele, um grande ator. Mas não vejo um personagem adequado à faixa etária dele. O Zanuck, por exemplo, tem que ser um judeu-americano. Por que colocar brasileiros interpretando americanos e vice-versa?

No “Traição entre Amigas”, a personagem de Larissa Manoela, que mede 1m53, faz teste na Broadway para interpretar Carmen Miranda. Ela fabrica bijuterias do tipo balangandãs e usa saltos plataforma, como a Pequena Notável. Foi decisão sua, já colocar Carmen Miranda na vida da personagem?
Bruno – Foi sugestão minha. O roteiro de “Traição entre Amigas” foi escrito pela Thalita Rebouças, autora do livro-base da narrativa, e por Marcelo Saback. Mas fiz sugestões, que eles acataram. Foi uma forma de fazer um acréscimo que reafirmasse minha obsessão pela Carmen. E coube muito bem na trama…
E, no “Traição entre Amigas”, uma candidata a atriz, Juanita, de origem hispano-americana, ganha o papel de Carmen Miranda, enquanto a brasileira fica como “reserva”, para quando a titular folgar ou não puder se apresentar…
Bruno – Foi uma brincadeira que tem tudo a ver. Os americanos confundem os países da América Latina, pensam que Buenos Aires é capital do Brasil. Morei e trabalhei lá por muitos anos, conheço esta realidade. E isto me liga à trajetória de Carmen Miranda. Eu também enfrentei dificuldades parecidas com as dela. Nos EUA, é normal lermos roteiros que estão em busca de viabilidade. Eles rodam, passam por muitas mãos. Um dia, questionei meu agente. Perguntei por que só me chegava determinado tipo de roteiro. Pedi que trouxesse outros roteiros, de forma que eu os lesse e entendesse. Foi assim que fiz o meu filme americano do qual mais gosto – “Atos de Amor” (Carried Away, 1996), com Dennis Hopper. Ele está entre os cinco ou seis dos meus filmes preferidos. Aqueles que considero acima da média.
Você concorreu ao Oscar internacional com “O que É Isso, Companheiro?”. Também um filme que tem protagonistas brasileiros em complexa relação com um embaixador dos EUA, sequestrado pela guerrilheira urbana. Você está formatando “Pra Você Gostar de Mim” como uma obra capaz de chamar atenção da Academia de Cinema de Hollywood? Vai mergulhar nas zonas de sombra de Carmen Miranda? Impossível esquecer que o final da vida dela foi trágico.
Bruno – Não farei um musical, nem uma comédia. Não que eu tenha algo contra esses gêneros. De forma alguma. Mas nosso roteiro é um drama. Sim, com alguns ingredientes trágicos. Vamos, sim, abordar os momentos difíceis vividos pela cantora e performer brasileira, nos muitos anos vividos nos EUA. Lá ela lutou para sair da caricatura, fugir do estereótipo. Mas, ao mesmo tempo, ela buscava o aplauso. Era dependente do aplauso.
O filme é uma adaptação da biografia de Carmen Miranda (“A Vida da Brasileira Mais Famosa do Século XX”) escrita por Ruy Castro (Companhia das Letras, 2005)?
Bruno – Não, embora o livro do Ruy seja uma de nossas fontes de consulta permanente. Mas ele escreveu uma biografia que vai do nascimento ao túmulo, em 800 páginas. Uma biografia maravilhosa, muito completa. Mas não há um fio, um recorte cinematográfico-narrativo nela. Por isso, optamos pelo período de 1939 a 1955, da chegada aos EUA, até a morte prematura.
Você vai usar imagens de arquivo? A sequência de abertura mostrará o teste real de Carmen Miranda para interpretar o papel de Ilsa Lund Lazlo, que ficou com a sueca Ingrid Bergman?
Bruno – Não. Vamos reconstituir o teste com a Larissa Manoela, em preto-e-branco. Não haverá ‘footage’ no nosso filme. Nada. Nenhum trecho de longa-metragem que a Carmen tenha feito nos EUA. Não usarei procedimento similar ao usado em filmes como “2 Filhos de Francisco” e “Homem com H”. Ou seja, introduzir a personagem real na parte final da narrativa. Tudo, em “Pra Você Gostar de Mim”, será produzido por nós, com nosso elenco.
Quando Carmen voltou ao Brasil para apresentação no Cassino da Urca, patrocinada pela primeira-dama, Dona Darcy Vargas, ela foi acusada de “americanizada”. Davi Nasser escreveu texto demolidor, que Helena Solberg reproduz em seu “Bananas is my Business”. Haverá espaço, no seu filme, para o embate dela com seus críticos?
Bruno – Ih, não quero dar spoiler. Mas vou adiantar a penúltima cena. Veremos Carmen num diálogo com um crítico brasileiro, no Copacabana Palace. O crítico resultará da fusão de vários críticos reais, como Alceu Penna, de A Cigarra, e o próprio David Nasser, de O Cruzeiro. Meu pai trabalhou com muitos deles nos veículos dos Diários Associados. Nasser foi, sim, muito virulento. E escrevia numa revista que era uma espécie de TV Globo de sua época, tamanha a repercussão que alcançava.
Você foi, durante muitos anos, responsável pela maior bilheteria do cinema brasileiro, “Dona Flor e seus Dois Maridos” (quase 11 milhões de ingressos). Suas produções mais recentes, embora sigam abordando temas contemporâneos, portanto sem apego ao passado, não têm conseguido boas bilheterias. Por que Bruno?
Porque o mercado mudou muito, o preço do ingresso marginalizou o público popular. O espectador se pergunta: por que vou gastar tanto dinheiro no cinema, se daqui a quatro meses o filme estará no streaming e praticamente de graça, pois já pago a assinatura? Hoje, quem vai ao cinema é o que podemos chamar de ‘público exigente’. Não estou, de forma alguma, dizendo que o público popular não seja exigente. É! Mas está cada vez mais difícil arcar com o preço de uma ida ao cinema. Eu, de minha parte, procuro fazer o melhor que posso, procuro contar boas histórias. E filmar sempre. Tenho que filmar, senão perco minha razão de viver. Fiz comédias impregnadas com minha verdade. “Férias Trocadas” é meu “A Classe Operária Vai ao Paraíso”, “Vovó Ninja” é meu “Jardim Secreto”. Apaixonei-me pelo cinema muito cedo e aos 17 já estava realizando meu primeiro longa-metragem. E vivo para fazer filmes. Meu pai trouxe “Dona Flor” para mim e fiz o melhor que pude. Minha mãe me entregou dois projetos nos quais ela apostou tudo: “O que É Isso, Companheiro?” e “Flores Raras”. A comédia “Crô” partiu de uma ideia minha. Eu quis, com ele, fazer o meu “O Terror das Mulheres”, uma comédia incrível de Jerry Lewis. Claro que sei que só uns cinco ou seis dos meus 23 filmes estão acima da média.
“BANANAS IS MY BUSINESS”, DISPONÍVEL NO CURTA ON, CONSTITUI-SE COMO RICO MERGULHO NO UNIVERSO DE CARMEN MIRANDA
Os admiradores de Carmen Miranda terão muito a ganhar se, enquanto aguardam a concretização de “Pra você Gostar de Mim” – assistirem ao longa documental “Bananas is my Business”, da brasileira Helena Solberg, disponível no Curta On, o streaming do Canal Curta!.
O filme de Helena é sólido e obrigatório. Como Carmen e Bruno Barreto, ela viveu longos anos nos EUA. Carmen casou-se com David Alfred Sebastian; Bruno, com Amy Irving, ex de Steven Spielberg, e Helena, com David Meyer, seu competente e dedicado produtor.
Durante anos, a dupla se entregou à realização de “Carmen Miranda – Bananas is my Business”. Valeu a pena cada minuto investido na cinebiografia documental da Brazilian Bombshell.
Tudo começa em Portugal, em Marco de Canaveses, onde nasceu a pequena Maria do Carmo Miranda da Cunha. O pai migrou para o Rio de Janeiro, se estabeleceu como barbeiro e esperou esposa e filha chegarem. A menininha tinha quatro anos. Cresceu no Brasil, estudou em colégio de freiras, dedicou-se à feitura de chapéus e tornou-se cantora. Fez filmusicais e alimentou o sonho de ser atriz. Até que um dia foi convidada por um produtor da Broadway, Lee Schubert, para fazer carreira em Nova York. Partiu e, como diz Ruy Castro, tornou-se a “brasileira mais famosa do século XX”.
O casal Solberg-Meyer foi muito bem recompensado. O filme foi eleito o melhor pelo júri popular do Festival de Brasília, conquistou o Prêmio Coral de melhor documentário no Festival de Havana e ainda hoje é o título mais conhecido entre os muitos documentários realizados por Helena, seja nos EUA, na América Hispânica ou no Brasil. Mais conhecido, até, que a ficção “Vida de Menina”, que ela adaptou do livro de Helena Morley e conquistou o prêmio máximo no Festival de Gramado.
Em Marco de Canaveses, Helena colhe excelente testemunho de uma prima de Carmen (Maria José Queiroz de Miranda), camponesa já entrada nos anos, que define a parente como “portuguesa da gema”. Brasileira que nada.
Nos EUA (em Nova York e Los Angeles) serão colhidos outros (e excelentes) testemunhos. De Aurora Miranda, Aloysio Oliveira, Laurindo de Almeida, Cesar Romero, Rita Moreno, Alice Faye, Jeanne Allen, de Estela Romero, a doméstica hispânica da estrela, e de Raul Smandek, adido cultural dos EUA no Brasil. Na Inglaterra, um fã dos mais devotos, Ivan Jack, que tatuou a Brazilian Bombshell no volumoso braço e batizou sua filha com o nome de Carmen Miranda.
No Brasil, testemunhos do compositor Synval Silva (“Adeus Batucada”), do fã Cássio Barsante, do playboy Jorginho Guinle, do primeiro amor de Carmen, o campeão de remo Mário Cunha, e do amigo Caribé da Rocha.
Essa grande quantidade de depoimentos faz do filme um “cabeças falantes”?
De forma alguma. Até porque não são falas declaratórias. São testemunhos sinceros, que sempre revelam algo importante na curta vida da cantora e atriz, sem esconder suas zonas de sombra.
Aurora Miranda evocará a desconfiança da família com a chegada do marido norte-americano à mansão de Carmen. Ele — intuiu Aurora — parecia mais interessado em dinheiro que na saúde e descanso da esposa. Por isso, foi só ele chegar ao lar dos Miranda para Aurora e o marido deixarem o convívio com a irmã.
Rita Moreno, que também foi vítima do estereótipo latino, lembrará do estigma que colou-se à persona das duas, a dela e a de Carmen.
A narração em primeira pessoa de Helena é contida e, ao mesmo tempo, reveladora. E as inserções ficcionais – de duas Carmens (a adolescente e a que se transformará em símbolo de latinidade) e a da fofoqueira Luella Hopper – resultam muito eficientes.
Solberg contou à Revista de CINEMA que, durante a feitura do filme, perguntou a Aurora Miranda quem ela indicava para incorporar a persona de Carmen. A cantora foi ao ponto: Erick Barreto (1962-1996). Sim, o transformista que deu vida a Carmen em muitos palcos com imensa dedicação. Devoção.
E há, no documentário, riquíssimo material de arquivo visual e sonoro. Trechos de filmes — como “Alô, Alô Carnaval” e “Banana da Terra”, verdadeiras preciosidades brasileiras — somam-se a trechos dos principais filmes de Carmen realizados nos EUA. E há músicas, muitas músicas.
Helena Solberg leu o roteiro de “Pra Você Gostar de Mim” e está satisfeita com o foco escolhido por Bruno Barreto e Melanie Dimantas. “É muito importante mostrar o quanto Carmen foi rejeitada pela elite brasileira, uma elite que se envergonhava de vê-la interpretando os papéis a ela atribuídos”.
“No meu documentário” – pondera – “abrimos espaço para temas espinhosos, como a Política da Boa Vizinhança. Houve, sim, o uso da imagem de Carmen pelos dois governos, o de Vargas e o dos EUA”. Mas o que ficou da artista — na avaliação de Solberg — “foi a felicidade que emanava dela quando estava no palco ou frente às câmaras”. Cantando, dançando ou interpretando, “era ela feliz, pois amava seu ofício”.
Como não usará imagens de arquivo, Bruno Barreto estará livre dos gastos que atormentaram Helena Solberg e David Meyer: “a Fox nos cobrava 8 mil dólares por minuto de cada filme que utilizássemos”. Por isso, “David (montador do filme com Amanda Zinoman) e eu brincávamos que o conceito de nossa edição era a ‘montagem em dólar’”. Ou seja, “tínhamos que cortar a cada 60 segundos, para o preço não duplicar”. (MRC)
Carmen Miranda – Bananas is my Business
Documentário com pequenas inserções ficcionais
Brasil, 1994, 91 minutos
Direção: Helena Solberg
Produção: David Meyer
Elenco: Letícia Monte (Carmen jovem), Erick Barreto (Carmen nos sonhos da diretora) e Cynthia Adler (a fofoqueira Luella Hooper)
Onde assistir: no Curta On, o streaming do Canal Curta! (abrigado no Prime Video)
A Era do Rádio
EUA, 1987, ficção, 88 minutos
Direção: Wood Allen
Elenco: Woody Allen, Mia Farrow, Diane Keaton, Seth Green, Dianne Wiest, Jeff Daniels e a brasileira Denise Dumont, que interpreta uma latin singer, evocação de Carmen Miranda
Onde assistir: Amazon Prime Video e Google Play

É uma verdadeira ironia que um filme chamado “Pra você gostar de mim”, música que consagrou a Carmen aqui no Brasil, simplesmente ignore sua carreira brasileira. Para mim, esse filme já nasce sem valor.