Festival Aruanda, que prestará tributo a Vladimir Carvalho, homenageia as atrizes Lucy Alves e Suzy Lopes
Foto: “Lispectorante”, de Renata Pinheiro
Por Maria do Rosário Caetano
O Festival Aruanda do Audiovisual Brasileiro realiza sua décima-nona edição, em João Pessoa, a partir dessa quinta-feira, 5 de dezembro, prestando tributo à memória do documentarista Vladimir Carvalho (1935-2024) e ao diretor de fotografia Manoel Clemente (1933-2024). Dois companheiros velhos de guerra e artífices de “O País de São Saruê” e de “A Bolandeira”, curta-metragem que será exibido na noite inaugural do evento.
Os parceiros paraibanos morreram nesse ano em curso, Clemente em janeiro, aos 90 anos, e Vladimir mês passado, aos 89. Lucio Vilar, professor da Universidade Federal da Paraíba e diretor do Festival Aruanda, esperava contar com Vladimir no tributo ao amigo fotógrafo. Jamais imaginou homenagear os dois no mesmo, e triste, momento.
O festival paraibano vai festejar duas de suas atrizes mais conhecidas — a cantriz e sanfoneira Lucy Alves, que fez sucesso no “The Voice Brasil” e protagonizou a telenovela “Travessia” (ambos na TV Globo), e Suzy Lopes, dona de sólidos recursos dramáticos e cômicos. Integrante do elenco de filmes como “Bacurau” e “A Febre”, Suzy vem marcando presença em telenovelas da Globo (“Mar do Sertão”, “No Rancho Fundo”). Ano que vem, ela será vista no novo filme de Kleber Mendonça (“Agente Secreto”) e na novela-série “Guerreiros do Sol”.
Até o dia 12 de dezembro, o festival exibirá dez longas-metragens distribuídos em duas mostras – a brasileira e a de filmes feitos “Sob o Céu do Nordeste”. No primeiro recorte — o nacional — estão seis produções.
“Lispectorante”, de Renata Pinheiro, e “Manas”, de Marianna Brennand, ambas pernambucanas, chegam para mostrar a força feminina no cinema nordestino.
O filme de Renata é protagonizado por Marcélia Cartaxo, atriz paraibana, revelada no cinema ao interpretar Macabeia, criação de Clarice Lispector (1920-1977), impressa no romance “A Hora da Estrela”. Que, depois, seria levado ao cinema por Suzana Amaral e renderia à sua protagonista um Urso de Prata no Festival de Berlim.
Em seu novo diálogo com o universo de Clarice, Marcélia interpreta Glória Hartman, mulher madura, em crise existencial e financeira. Ela regressa à sua cidade natal, o Recife, metrópole envolta em processo de degradação urbana. Através de fenda nas ruínas da edificação onde morou a escritora, originária da Ucrânia, Glória vislumbrará cenas fantásticas. Que acabarão por alterar sua vida.
“Manas”, que tem a Ilha do Marajó como cenário, centra-se em Marcielle (Jamilli Correa), menina de 13 anos. Ela vive em comunidade ribeirinha, na companhia do pai, da mãe e de três irmãos. E venera a irmã mais velha, Cláudia, que teria partido para longe, numa balsa, “na companhia de um homem bom”. Mas o tempo vai passando e a menina irá defrontar-se com ambientes abusivos.
Dira Paes, Rômulo Braga, Rodrigo Garcia, a paraibana Ingrid Trigueiro e a cearense Fátima Macedo estão no elenco do primeiro longa ficcional de Marianna Brennand. Todos, sem exceção, têm desempenhos notáveis.
Dois documentários integram a competição nacional do Festival Aruanda – “Os Afro-Sambas, o Brasil de Baden e Vinícius”, de Emílio Domingos, e “A Queda do Céu”, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha.
O carioca Emílio Domingos regressa ao festival paraibano um ano depois de apresentar — no telão do Cinépolis Manaíra — o vibrante “Black Rio! Black Power!” (sobre a música negra que sacudiu os subúrbios do Rio de Janeiro nos anos 1970).
Nesse seu novo filme, Emílio reconstitui o processo de criação de um dos discos mais importantes da história da música popular brasileira – “Os Afro-Sambas”, gravado em 1966, por Baden Powell e Vinícius de Moraes. A dupla se fez acompanhar por coro que incluiu as “baianinhas” do Quarteto em Cy e a então jovem bailarina (e atriz iniciante) Betty Faria.
Como os dois compositores-cantores já morreram, Emílio Domingos recorre ao testemunho de contemporâneos (da dupla), como Roberto Menescal, Dori Caymmi, Marcos Valle e Maria Bethânia, familiares, críticos musicais e amigos dos artistas.
O destaque do filme está na inclusão das oito faixas que compõem o disco – os Cantos de Ossanha, Iemanjá, Xangô e do Caboclo Pedra Preta, Tempo de Amar, Tristeza e Solidão, Lamento de Exu e Bocoché.
Baden Powell, que, nos anos derradeiros de sua vida, tornar-se-ia evangélico, deixaria de tocar, em seu violão virtuoso, os cantos que evocavam as entidades afro-brasileiras. Mas o disco continuou fertilizando a música popular brasileira.
Eryk Rocha, premiado com o “Olho de Ouro”, em Cannes, por seu documentário “Cinema Novo”, participa do Aruanda com “A Queda do Céu”. O filme recria o livro homônimo de Davi Kopenawa Yanomami, uma das mais importantes lideranças indígenas brasileiras.
O xamã dedicou-se, por 30 longos anos, à escrita dessa obra que fecundou o documentário de Eryk e Gabriela. A dupla apresenta, ao longo de 110 minutos, a cosmologia do povo Yanomami, o trabalho dos xamãs para segurar e curar o mundo das doenças produzidas pelos não-indígenas, o garimpo ilegal, o cerco promovido pelo ‘povo da mercadoria’ e a vingança da terra.
Duas ficções, ambas muito festejadas no Festival do Rio, fecham a competição – “Baby”, de Marcelo Caetano, que dividiu o Troféu Redentor de melhor filme com “Malu”, de Pedro Freire, e “Kasa Branca”, de Luciano Vidigal (melhor direção, ator coadjuvante, fotografia e trilha sonora).
O segundo longa-metragem de Marcelo Caetano é ainda melhor que o anterior, “Corpo Elétrico”, sua estreia realizada em 2017. Imagens registradas com calor e sensorialidade (pela dupla Pedro Sotero e Joana Luz) mostram Wellington (João Pedro Mariano), em seus últimos dias num centro de detenção de jovens.
Ao recobrar a liberdade, o rapaz não encontra os pais, nem moradia onde se fixar. Sem rumo, vaga por São Paulo. Num cinema pornô, ganhará o apelido de Baby. Ao conhecer Ronaldo (Ricardo Teodoro), encontrará nele parceiro de alegrias e infortúnios, com quem aprenderá novas formas de sobrevivência.
“Baby” é um filme de narrativa complexa e apaixonante, com uma cidade, uma metrópole igualmente complexa, como vigoroso pano de fundo. No elenco, além dos dois ótimos protagonistas, estão Ana Flávia Cavalcanti, Bruna Linzmeyer, Maurício Barros, Luiz Bertazzo, Sylvia Prado, Marcelo Várzea, Kelly Campello, Paula Pretta, Roberto Audio, Ariane Aparecida e Bacco Pereira.
“Kasa Branca” tem em Dé (Big Jaum), um adolescente negro da periferia carioca, seu centro narrativo. Ele vive com sua avó, Dona Almerinda (Teca Pereira), acometida pelo Mal de Alzheimer. Com a ajuda de dois amigos, Dé enfrentará dificuldades cotidianas e tentará realizar aqueles que supõe serem os desejos da avó. No elenco, destacam-se, também, Roberta Rodrigues, Gi Fernandes, Babu Santana e L7nnon.
Quatro longas-metragens compõem a Mostra Sob o Céu do Nordeste, dedicada à produção dos nove estados da região. Eles serão avaliados por júri próprio, mas em conjunto (competição brasileira e regional) pela Crítica, que atribuirá o Prêmio Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema.
Duas ficções – o cearense “Centro Ilusão”, de Pedro Diógenes, e o pernambucano “Ainda Não é Amanhã”, de Milena Times — e dois documentários – o baiano “Quem é Essa Mulher?”, de Mariana Jaspe, e o cearense “Lampião, Governador do Sertão”, de Wolney Oliveira – compõem essa compacta representação do Nordeste. É tão abundante a produção realizada entre a Bahia e o Piauí, que a mostra poderia abarcar, sozinha, dez títulos bem escolhidos.
“Centro Ilusão” dá seguimento à carreira solo de Pedro Diógenes, que integrou, de 2010 a 2016, o Coletivo Alumbramento, com o qual realizou os filmes como “Viagem à Ythaca” e “Os Monstros”.
Depois de “Pajeú” e “A Filha do Palhaço”, Diógenes, de 40 anos, dedica-se à história de dois músicos, de gerações diferentes, que se conhecem em audição para concorrido laboratório de música na cidade de Fortaleza. Tuca (Fernando Catatau) tem 50 anos e sente-se frustrado com sua carreira. Kaio (Bruno Kunk), de 18, é aspirante a artista e deseja fazer sucesso com sua composições.
Milena Times realiza sua estreia no longa-metragem com “Ainda Não é Amanhã”. Sua protagonista, Janaína, tem 18 anos, estuda Direito e mora com a mãe e a avó na periferia do Recife. Uma gravidez inesperada ameaça os planos que ela traçou para sua vida.
O documentário “Lampião, Governador do Sertão” é fruto de mais duas décadas de trabalho do cearense Wolney Oliveira com a temática do sertão e do cangaço. Tudo começou em 1999, com o docudrama “Milagre em Juazeiro”. Ao pesquisar a relação da Beata Maria de Araújo com o Padre Cícero, Wolney inteirou-se da importância do produtor (e realizador) Adhemar Albuquerque, seu conterrâneo, na retaguarda das filmagens de “Lampeão”, realizadas, na década de 1930, pelo mascate Benjamim Abrahão.
Apaixonado por histórias de cangaceiros, ouvidas desde a infância, o cineasta, de 64 anos, fixou suas atenções no assunto e resolveu fazer um filme sobre Virgulino Ferreira (1898-1938).
No meio do caminho, conheceu a história de dois integrantes do Bando de Lampião, Moreno e Durvinha. Colheu tanto material sobre a vida deles, que no processo de edição ouviu do montador Mair Tavares: “você quer fazer um filme sobre Lampião ou sobre o casal Durvinha e Moreno?”
O mestre da montagem foi além e, com sua sinceridade cristalina, alertou: “aqui, você tem não um, mas dois filmes”.
O realizador cearense, que sempre ouviu, com muito respeito, as opiniões de Mair Tavares, concentrou-se no cangaceiro Moreno e em sua mulher Durvinha, que – findo o ciclo do cangaço – refugiaram-se, clandestinos, em Minas Gerais, depois de fuga que atravessou muitos estados.
O documentário sobre o casal – “Os Últimos Cangaceiros” (2011), a mais premiada de suas realizações (exibido em 50 festivais brasileiros e internacionais ) – é considerado, pelo próprio Wolney, seu melhor filme. Treze anos depois, ele concluiria “Lampião, o Governador do Sertão”.
E por que tanto tempo depois? Porque Wolney, de tão envolvido com o assunto, não se dava por satisfeito. Estava sempre correndo atrás de um novo personagem, fosse um jovem cabeludo, doido por cangaceiros. Ou uma pesquisadora singular, como Cristina Matta Machado, que morreu aos 33 anos e deixou livro seminal – “Tática de Guerra dos Cangaceiros”. Ou uma francesa apaixonada pelo Brasil, Sylvie Pierre, que viu semelhanças entre o chapéu de Napoleão Bonaparte e o de Lampião e seus bandoleiros.
O cineasta ouviu quase uma dezena de estudiosos. Os melhores e mais respeitados estão no filme (entre eles, Antônio Amaury, Frederico Pernambucano de Mello, Luiz Bernardo Pericás). Sem esquecer os familiares, os herdeiros de Virgulino e Maria Bonita, a filha Expedita, a neta Vera Ferreira e suas sobrinhas.
Porém, o que o filme tem de melhor é sua polifonia. Há vozes que tecem loas ao mais famoso dos cangaceiros. E há vozes corrosivas, que destroem a mítica do cangaço e, em especial, a do pernambucano Virgulino Ferreira.
As vozes dissonantes são da incisiva cientista social Luitigarde Oliveira Cavalcanti Barros, do pesquisador Leandro Fernandez, do médico Margébio de Lucena e, também, do escritor Ariano Suassuna. Mas, no frigir dos ovos, o que o filme faz é mostrar que, amando ou odiando o líder máximo dos bandoleiros, ele tem lugar cativo no imaginário popular. Tornou-se figura mítica, como mostrará o apoteótico e vitorioso desfile da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, comandado pelo inventivo carnavalesco Leandro Vieira.
Mariana Jaspe se impôs como tarefa, no documentário baiano “Quem é Essa Mulher?”, traçar retrato da primeira médica negra do Brasil, Maria Odília Teixeira (São Félix, 1884- Salvador, 1970). E o fez pelo olhar da pesquisadora Mayara Santos, mestre em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBa).
Frente à precariedade de imagens e de documentação histórica, a realizadora estabelece relações entre as trajetórias das duas mulheres, separadas por um século, no mesmo território, a Bahia. Odília realizou seu curso de Medicina, em Salvador, e teve parte de sua trajetória ligada a cidades do Recôncavo, onde nasceu e cresceu.
Ao casar-se com um homem branco, a médica quase matou a sogra de desgosto. Mas enfrentou todos os revezes e tornou-se, por sua imensa cultura (conhecia o francês, o latim e o grego), a primeira professora afro-brasileira da pioneira Escola de Medicina da UFBA. Sua tese acadêmica versou sobre “Algumas Considerações Acerca da Curabilidade e Tratamento de Ciroses Alcóolicas”. O tema era uma novidade nos estudos médicos femininos, até então restritos à Ginecologia e à Pediatria. A importância do filme restringe-se a seu tema, já que do ponto de vista estético deixa muito a desejar.
MOSTRA COMPETITIVA (Brasil)
Longas-metragens:
. “Lispectorante”, de Renata Pinheiro (ficção, Pernambuco)
. “Manas”, de Marianna Brennand (ficção, Pernambuco)
. “A Queda do Céu”, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha (doc., Roraima e São Paulo)
. “Os Afro-Sambas, o Brasil de Baden e Vinicius”, de Emílio Domingos (doc., Rio de Janeiro)
. “Kasa Branca”, de Luciano Vidigal (ficção, Rio de Janeiro)
. “Baby”, de Marcelo Caetano (ficção, São Paulo).
Competição de curtas-metragens:
. “Serão”, de Caio Bernardo (Doc., Coxixola-PB)
. “Ladeira Abaixo”, de Ismael Moura (ficção, Cuité-Paraíba)
. “Umbilina e Sua Grande Rival”, de Marlom Meirelles (ficção, Cabaceira – PB)
. “A Voz de Guadakan”, de Joel Pizzini (doc. Mato Grosso do Sul)
. “Jupiter”, de Carlos Segundo (ficção, Brasil-França)
. “Movimentos Migratórios”, de Rogério Cathalá (ficção, Bahia)
. “A Última Valsa”, de Fábio Rogério e Jean-Claude Bernardet (doc. São Carlos e São Paulo)
. “Pássaro Memória”, de Leonardo Martinelli (ficção, Rio de Janeiro)
. “Helena de Guaratiba”, de Karen Black (ficção, Rio de Janeiro)
. “Almadia”, de Mariana Medina (animação, Ceará)
. “Navio”, de Alice Carvalho, Larinha R. Dantas e Vitória Real (ficção, Rio Grande do Norte)
. “Eu Fui Assistente de Eduardo Coutinho”, de Allan Ribeiro (doc., Rio de Janeiro)
MOSTRA SOB O CÉU NORDESTINO
Competição de longas-metragens (produção nordestina):
. “Centro Ilusão”, de Pedro Diógenes (ficção, Ceará)
. “Ainda Não é Amanhã”, de Milena Times (ficção, Pernambuco)
. “Quem é Essa Mulher?”, de Mariana Jaspe (doc. Bahia)
. “Lampião, Governador do Sertão”, de Wolney Oliveira (doc. Ceará)
Competição de curtas-metragens paraibanos:
. “Nua”, de Fabi Melo (ficção, Campina Grande- PB)
. “Areia, Memória e Cinema”, de Letícia Damasceno (doc., Areia-PB)
. “Concha”, de Pattrícia de Aquino (ficção, Campina Grande-PB)
. “O Sonho de Anu”, de Vanessa Kypá (ficção, Itaporanga-PB)
. “Suspiro”, de Nill Marcondes (ficção, João Pessoa-PB)
. “Rita Não Anda Só”, de Ary Régis Lima (ficção, Guarabira-PB 2024)
. “Marilak”, de Carlos Mosca (ficção, Campina Grande-PB)
. “Breu”, de Joilson Custódio (ficção, Bananeiras-PB)
. “A Menina da Serra”, de Cleyson Gomes (animação, Paulista-PB)
. “Salvatério”, de Dani L. (ficção, João Pessoa-PB)
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