Mostra da Spcine revê e debate a obra do chileno Miguel Littín

Por Maria do Rosário Caetano

Coube a dois cineastas germânicos, Walter Heynowski e Gerhard Sheumann, documentar o Palácio de la Moneda, em Santiago do Chile, sob bombardeio aéreo e em chamas. De dentro da sede do Governo, seria retirado, morto, o corpo do presidente deposto Salvador Allende (1908-1973). Triunfava o golpe militar liderado pelo General Pinochet.

Por que evocar tal fato histórico? Porque ele mantém relação profunda com o protagonista (o próprio Allende) de dois documentários – “Companheiro Presidente” e “Actas General de Chile” – que compõem a mostra O Cinema Latino-Americano de Miguel Littín, programada, on-line e gratuitamente, pela Spcine Play, dessa quinta-feira, primeiro de abril, até o dia 8.

A produção das trágicas imagens registradas, em 1973, por Heynowski e Sheumann serviram como “escola” para Littín realizar “Actas General de Chile”. Exilado político, pois integrava a Chile Films, braço cinematográfico do Governo Allende, o chileno resolveu, em 1985, regressar, clandestino, a seu país. Sua aventura, além do documentário que integra a Mostra da Spcine, gerou um livro-reportagem de Gabriel García Márquez (“Miguel Littín Clandestino en Chile”, publicado também no Brasil).

Heynowski e Sheumann eram cidadãos da Alemanha Oriental, a RDA, de governo comunista. Mas, ao documentarem o trágico 11 de Setembro chileno, conseguiram furar o cerco policial como jornalistas internacionais. No encerramento de seu filme, Littín agradece ao documentarista cubano Santiago Alvarez e aos dois cineastas germânicos.

Para entrar clandestinamente em seu país, governado por Pinochet, e filmar líderes sindicais, movimentos sociais, ruas e monumentos (incluindo o Palácio de La Moneda), Littín montou sofisticada estratégia. Primeiro, raspou barba e bigode, domou os cabelos e vestiu-se como um executivo. E, claro, providenciou documentos falsos. Antes de desembarcar na capital chilena, enviou equipe italiana, que se propunha a documentar as belezas turísticas do Chile, incluindo o lindíssimo e muito bem reformado Palácio de la Moneda. O que ninguém sabia é que ele, em pessoa, revisitaria (filmaria), com os colegas estrangeiros, tais ambientes e reencontraria lideranças e militantes da Unidade Popular, esfacelada depois do triunfo do golpe militar.

“Actas General de Chile” (que evoca “Actas de Marusia”, o filme mais famoso de Littín) será visto em versão reduzida (110 minutos), cedida pela Cinemateca de Cuba (a versão original durava 270 minutos). Dividido em três partes, este documentário ganha força em seu terceiro e último segmento, “Da Fronteira ao Interior do Chile: A Chama Acesa”. A primeira traz “Miguel Littín: Clandestino no Chile” e a segunda, “Norte do Chile: Quando Fui para o Pampa”.

Actas General de Chile

Gabriel García Márquez lê, no documentário, trecho curto e contundente de crônica que escreveu para evocar a memória de Allende (“A Verdadeira Morte de um Presidente”). Fidel Castro e a viúva Hortensia Allende relembram o dirigente que perdeu a vida no La Moneda. E as imagens de Heynowski e Sheumann – aquelas que correram mundo com o palácio presidencial em chamas – são de arrepiar.

O outro documentário da Mostra Littín, “Companheiro Presidente”, tinha tudo para ser chato e chapa branca. Afinal, trata-se de registro de entrevista do francês Régis Debray – companheiro de Che Guevara na guerrilha boliviana – com Salvador Allende, em Santiago do Chile. O encontro se deu em janeiro de 1971, portanto, nos primeiros meses do Governo da Unidade Popular (e socialista), empossado em 4 de novembro de 1970. Só que a conversa entre o jovem Debray, aos 30 anos, e o “Companheiro Presidente”, de 62, é eletrizante. Perguntas inteligentes, bem formuladas e questionadoras são respondidas com argúcia por Allende. Os 70 minutos de filme correm céleres. Imperdível. E – registre – naquele momento de euforia, ninguém poderia imaginar que tudo terminaria de forma tão trágica.

Miguel Littín, de 78 anos, é um dos nomes mais conhecidos do cinema latino-americano. Hoje, porém, a centralidade que lhe coube outrora foi deslocada em direção a Patricio Guzmán, 79 anos, considerado um dos maiores documentarista do mundo, e a diretores mais jovens, como Pablo Larraín (“Tony Manero”, “El Club”), Sebastián Lélio (“Glória” e “Uma Mulher Fantástica”) e Andres Wood (“Machuca” e “Violeta Foi para o Céu”).

Os outros dez filmes que compõem a Retrospectiva Littín são obras ficcionais. O primeiro deles – “O Chacal de Nahueltoro” (1969, 90 minutos), bem-sucedida estreia do jovem de 25 anos – saiu direto das páginas policiais dos periódicos chilenos. Um homem muito pobre, de nome José del Carmen Valenzuela Torres, torna-se um assassino. Mata uma mulher, que lhe dera abrigo e comida, e os cinco filhos dela. Interpretado por Nelson Villagra (prestem atenção nesse ator, que fará outros filmes de Littín e estará em “A Última Ceia”, de Tomas Gutierrez Alea), Valenzuela será caçado e sentenciado. Em poéticas e atmosféricas imagens em preto-e-branco, o filme esculpirá duro retrato do mundo dos deserdados sociais. Aqueles que vivem sem pão, encharcados em álcool e escorraçados de casas, bares e ambientes assemelhados.

No último ano do breve Governo Allende, Littín filmou “A Terra Prometida” (1973, 125′), fruto de parceria entre Chile e Cuba. À frente do elenco, dos mais numerosos, Nelson Villagra, que contracena com Aníbal Reyna, Pedro Manuel Alvarez, Rafael Benavente. O filme, fotografado pelo brasileiro Affonso Beato, ambienta-se nas primeiras décadas do século XX. O cineasta tempera sua ficção com recursos documentais e alegóricos, em mistura que hoje parece datada. Atores naturais somam-se a profissionais para narrar a luta de camponeses pela posse da terra, seus mitos e lendas da instauração de uma fugaz experiência de República Socialista.

A Terra Prometida

Já no exílio, tendo o México como país adotivo, Miguel Littín faria seu filme mais conhecido, “Actas de Marusia” (1976, 110′). À frente do elenco, o mais engajado dos astros italianos, Gian Maria Volonté. Com ele, contracenam Diana Bracho, Alicia del Soto, Claudio Obregón (o John Reed, de “México Insurgente”, de Paul Leduc), Arturo Beristáin, Jorge Fegán, Guillermo Gil, Salvador Godínez, Silvia Mariscal e Patricio Castillo. O longa, de formato coral, tem dezenas de personagens. Seu propósito é relembrar episódio sombrio da história chilena – a revolta de trabalhadores de mineradora regida, de forma draconiana, pelos proprietários ingleses. Em 1907, ao se rebelarem, os mineiros serão em maioria mortos e a vila que os abrigava, destruída por forças do Governo Chileno. Claro que Littín usa a carnificina como metáfora da tragédia que assistira em seu país, quando do golpe de 1973. O filme perdeu muito da força de outrora. Força que o levara à competição do Festival Cannes e a indicação ao Oscar.

Nelson Villagra protagoniza, mais uma vez, uma nova ficção de Littín, “O Recurso do Método” (¡Viva el Presidente!, 1978, 153′). Produção mexicano-cubana, o filme baseia-se em um dos mais famosos livros de Alejo Carpentier (1904-1980). No elenco, uma das maiores estrelas do cinema mexicano, Katy Jurado, que atuara em muitos filmes norte-americanos (“Matar ou Morrer”, “Lança Partida”, “A Face Oculta”). Além dela, outro mexicano famoso, Ernesto Gómez Cruz (de “O Império da Fortuna”, de Ripstein, e “Beco dos Milagres”, de Jorge Fons). Mais María Adelina Vera, Reynaldo Miravalle, Raúl Pomares, Ildefonso Tamayo , Salvador Sánchez, Alain Cuny e Gabriel Retes.

A cópia que será exibida na Retrospectiva Littín foi recuperada pelas Cinemateca de Cuba e Chile. Na trama, o presidente de uma república latino-americana, que se encontra em Paris, recebe a notícia de um levante, comandado por general disposto a destroná-lo. Regressa a seus país e sufoca a rebelião.

Mais uma estrela internacional, Geraldine Chaplin, filha de Charles “Carlitos” Chaplin e então companheira de Carlos Saura, encabeça um filme de Littín, “A Viúva de Montiel” (1979, 110′). Depois de Carpentier, o chileno exilado adapta contos de Gabriel García Márquez, reunidos no livro “Los Funerales de la Mamá Grande” (1962). E comprova seu prestígio ao reunir esforços do México, Colômbia (terra de Gabo), Venezuela e Cuba.

Geraldine Chaplin está maravilhosa na pele da viúva Montiel, os figurinos e cenários são fascinantes, há momentos notáveis, mas Littín não consegue quebrar o tabu. Dezenas de cineastas tentaram, mas não conseguiram (ainda) realizar um filme capaz de traduzir a fértil imaginação do autor de “Cem Anos de Solidão”.

Gabo amou o cinema com imensa intensidade. Apoiou múltiplos projetos no México, na Colômbia e, especialmente, em Cuba, onde esteve na linha de frente da Fundação do Novo Cinema Latino-Americano e da Escola Internacional de Cinema de San Antonio de los Baños. Triunfou na Literatura (Prêmio Nobel, em 1982) e no Jornalismo, mas não no Audiovisual.

Nelson Villagra e Ernesto Gomez Cruz têm papéis de destaque também nessa história da viúva Montiel, ambientada em povoado encharcado de chuva e de desmandos brutais de machos fardados. A frágil viúva rememora sua existência, cercada de homens autoritários. Os filhos, que foram viver na Europa, não se dispõem a visitá-la nem nos momentos mais difíceis, como a perda do marido. Não estão dispostos a trocar, nem por curtos momentos, o mundo civilizado, Paris, por um vilarejo esquecido.

Uma cena de “A Viúva Montiel”, por seu poder metafórico e de notável síntese, justifica o filme: um homem, o ambicioso Montiel, visita mandatário militar. O faz calçando sapatos herdados de um defunto. Sapatos que, de número menor que o exigido por seus pés, o torturam. Ao saber o que se passa, o fardado atira rumo ao vistante um par de botas. Com elas, Montiel conhecerá o poder discricionário. O filme participou do Festival de Berlim.

Mais um longa-metragem internacional, “Alsino e o Condor” (1982, 89′), será feito por Littín, no exílio. Trata-se de produção mais modesta que aquelas baseadas em Carpentier e García Márquez. Filmado na Nicarágua, recém-saída de guerra civil, “Alsino e o Condor” conta a história de um garoto camponês, cujo maior sonho é voar. A trama se desenrola no ambiente histórico da Revolução Sandinista, que derrubou a ditadura Somoza, e tem no elenco o norte-americano Dean Stockwell (de “Paris Texas”). México e Costa Rica foram coprodutores.

Depois do filme nicaraguense e de volta a seu país – a redemocratização iniciara-se em 1988, com o triunfo do “não” a Pinochet, e materializara-se em 1990 –, Littín não realizou mais nenhum filme notável. “Os Náufragos (1994, 121′), produção chilena, em parceria com Canadá e França, participou do Festival de Gramado e não entusiasmou a nenhum dos críticos presentes. A trama, em cujo elenco destacam-se Marcelo Romo, Valentina Vargas, Bastián Bodenhöffer e Luis Alarcón, estava a anos-luz do vigor e síntese narrativa de “El Chacal de Nahueltoro”.

O mesmo se passou com “Terra de Fogo” (2000, 99′), ficção chilena, em parceria com Espanha e Itália. À frente do elenco, o astro cubano Jorge Perugorría e a italiana Ornella Muti. E, mais uma vez, Nelson Villagra, com Tamara Acosta, Alvaro Rudolphy, Nancho Novo, Luis Alarcón, Claudio Santamaría, Uxía Blanco, Ángel Parra, Mateo Iribarren, María Jurado, entre outros. Baseado em obra literária de Francisco Coloane, a narrativa de “Terra do Fogo” se situa em meados do século XIX, quando o engenheiro romeno Julius Popper chega à Patagônia em busca de ouro e de terras.

Na paisagem inóspita, Popper encontra imigrantes provenientes de diversos lugares e, como ele, dispostos a tudo para acumular fortuna. O romeno é ajudado por Armenia, uma italiana dona de um bordel, e por um grupo de homens comandados pelo alemão Fritz Novak. O filme não deslancha nem convence.

O décimo-primeiro longa da Retrospectiva Littín é “A Última Lua” (2005, 105′), ficção chilena em parceria com Espanha e México. Impressionante como o cineasta sempre teve capacidade de mobilizar parceiros internacionais. No filme, Littín buscou suas origens no Oriente Médio. Especificamente na Palestina, onde, em 1914, o jovem Solimon e seu amigo, o judeu Jacob, começam a construir uma casa na colina judia de Beit-Sajour. O fazem com pedras trazidas de Beit-Yala. O lugar vive sob aparente calmaria. Só que explosões de violência anteciparão dias de guerra. No elenco, Ayman Abu Alhuzolof, Tamara Acosta, Alejandro Goic (ótimo ator, vide “O Clube”, de Larraín), Francisca Merino e Saba Musleh.

O último filme da Retrospectiva, “Dawson, Ilha 10 (2009, 117′), tem duas novidades em seus créditos: a presença do Brasil na produção e dois baianos no elenco, o ator Bertrand Duarte (amado por Edgard “SuperOutro” Navarro e por Carlão “Alma Corsária” Reichenbach) e Caco Monteiro. Mais uma ficção baseada em fatos reais, retirados de livro-relato de Sérgio Bitar. Ministros e colaboradores do Governo da Unidade Popular, com a deposição (e morte) de Allende, são levados para um no campo de prisioneiros na ilha Dawson, no sul do país.

Esta produção chileno-brasileiro-venezuelana, reúne elenco imenso, como gosta Littín. Entre os atores escolhidos para narrar a história estão, além dos dois baianos, Benjamín Vicuña, Pablo Krögh, Cristián de la Fuente, Sergio Hernández, Alejandro Goic, Luis Dubó, Horacio Videla, Matías Vega, Mario Bustos, Enrique Epíldora, Víctor Hugo Ogaz, Juan Carlos Brown, Daniel Antivilo, Ramón González, Raúl Sendra, Luis Bravo, Sergio Allard, Nicolás Klein, Guillermo Salinas, Iván Fuentes, Javier Valiño, Daniel Alcaíno, Andrés Skoknik e Elvis Fuentes.

Esta infindável lista, que mais parece um catálogo telefônico, serve para mostrar que a trama se passa em ambiente 100% masculino. E nos estimula a evocar um dos momentos mais impressionantes do documentário “Miguel Littín Clandestino no Chile”: os bombardeios do Palácio de la Moneda, que induzem o suicídio de Salvador Allende. Ao saberem que o presidente está morto, militares golpistas emitem, por serviço de rádio, comentário infame: “até morto esse ‘gallo’ nos cria problema”. Agora – vocifera o transgressor da lei –, virá a confusão para enterrá-lo. O corpo está sendo reclamado pela família. Por que não o enterram em Cuba?

O corpo de Salvador Allende foi enterrado, em cerimônia secreta e às escondidas (numa noite escura) em Viña del Mar. Depois, com a redemocratização, seus restos mortais foram transferidos para o mausoléu da família no Cemitério Geral de Santiago.

 

Mostra O Cinema-Latino Americano de Miguel Littín
Data: 1 a 8 de abril
Online e gratuito
Curadoria: Lívia Fusco
Local: Spcine Play – Os filmes ficarão disponíveis por apenas 24 horas e poderão ser acessados diretamente no site www.spcineplay.com.br
Na abertura da mostra, haverá debate mediado por Francisco César Filho, diretor do Festival de Cinema Latino-Americano, com Alexsandro de Sousa e Silva, especialista na obra de Littín, e com a curadora Lívia Fusco (nessa quinta-feira, às 17h). No sábado, dia 3, às 16h, Alexsandro ministrará masterclass ao vivo (no canal do YouTube, da Mostra Retrospetiva).

 

PROGRAMAÇÃO

Dia 01/04 – Quinta-feira

17h00 – Debate disponível até o dia 08
19h00 – O Chacal de Nahueltoro, 1969, 90 min.
19h00 – Companheiro Presidente, 1971, 70 min.

Dia 02/04 – Sexta-feira

19h00 – A Terra Prometida , 1973, 125 min.
19h00 – Actas de Marusia, 1975, 110 min.

Dia 03/04 – Sábado

Masterclass – disponível até dia 08

Dia 04/04 – Domingo

19h00 – A Última Lua , 2005, 105 min.

Dia 05/04 – Segunda-feira

19h00 – O Recurso do Método, 1978, 153 min.
19h00 – A Viúva de Montiel, 1979, 110 min.

Dia 06/04 – Terça-feira

19h00 – Alsino e o Condor, 1982, 89 min.
19h00 – Acta General de Chile, 1986, 115 min.

Dia 07/04 – Quarta-feira

19h00 – Os Náufragos, 1994, 121 min.
19h00 – Terra do Fogo, 2000, 99 min.

Dia 08/04 – Quinta-feira

19h00 – Dawson Ilha 10 , 2009, 117 min.

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