Encenação documental

Para um espectador vindo de uma sociedade organizada para o privilégio do homem, espanta e alumbra um dos cantos de “As Hiper Mulheres”, em que as índias dizem “vou quebrar você dentro de mim”. A frontalidade dessa letra é apenas uma peça num quebra-cabeça maior que, quando montado, revela uma paisagem em que a mulher determina a ação – o homem é coadjuvante, complemento.

O recorte documental feito pelos diretores Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro reforça essa percepção. Registram-se os preparativos do Jamurikumalu, o maior ritual feminino do Alto Xingu. Resgatam-se cantos que ainda resistem nas lembranças dos velhos – a festa é montada justamente pela iminência da morte de uma das mulheres, cuja memória fraqueja. Kanu, a única que conhece todas as músicas, também está doente. É preciso que ela se recupere para que o show comece.

Talvez pela própria diferença de origem dos realizadores, apareça em “As Hiper Mulheres” um bem-vindo híbrido conceitual. Fausto é antropólogo, Sette é cineasta, Kuikuro começou a filmar no programa Vídeo nas Aldeias. Há um equilíbrio entre interesse etnográfico – viver a experiência do ritual Jamurikumalu –, ensaísmo cênico – a montagem tem papel fundamental nisso – e um olhar endógeno – em nenhum momento o filme fica embasbacado pelo “exotismo” de seus personagens.

Premiado nos festivais Olhar de Cinema e Gramado, além de ter sido exibido em Roterdã, o documentário não encara um personagem indígena como o nativo a ser registrado. Constrói-se performance, e fazer menção a isso é acessar automaticamente um vocabulário que passa tanto por “Jogo de Cena” quanto por “A Cidade É uma Só?” e “O Céu sobre os Ombros”. Apesar da proximidade, “As Hiper Mulheres” não se enquadra inteiramente em nenhum desses registros de dramaturgia. Rouba, quando necessário, um pouco da especulação sobre a performance e outro tanto da ficção inundada pelo real.

A câmera ora se posiciona como observadora privilegiada – os ensaios dos cantos das mulheres durante os preparativos do ritual –, ora indica compor um filme de ficção, sensação acentuada também pelos diálogos construídos, por personagens que tentam comandar a ação (“olhe para cá”, “diga isso”), roteiro que estabelece tensões e procedimentos de montagem alternada.

A atmosfera de olhar construído de dentro para fora é fruto do envolvimento dos índios em várias etapas da realização do filme, especialmente na transferência do privilégio do enquadramento ao personagem, procedimento comum no documentário híbrido contemporâneo brasileiro.

Diferentemente de “Pacific” e “Doméstica”, “As Hiper Mulheres” é o único em que se percebe não a feitura de imagem, mas de plano, de cinema – ou seja, o mérito vai além da possa da câmera e está no próprio resultado, o filme.

Chamá-lo de documentário etnográfico é insuficiente, pois não entrega de bandeja o assunto, nem encara o espectador como objeto a ser informado de uma realidade distante. Dá pinceladas discretas sobre o que irá acontecer, mas é preciso caminhar rumo ao filme, recolher suas pistas, deixar o tecido musical penetrar.

Mais do que encarar “As Hiper Mulheres” como um filme que registra, faz mais sentido enxergá-lo como um filme que encena, que inventa um mundo a ser lido pelo cinema. Pois o principal evento é justamente a encenação de um ritual, posto de pé para a câmera. Esse arejamento dá força ao filme: a festa das mulheres é tanto uma expressão da tradição, um registro da presença de rastros temporais que nos escapam das mãos e da memória, quanto uma invenção cinematográfica – corpos se relacionam, num tempo e espaço, com uma câmera.

Além do valor como registro, a especulação sobre encenação faz de “As Hiper Mulheres” um filme que pensa o próprio cinema, o “eu” e o “outro”.

Assista o trailer do filme aqui.

As Hiper Mulheres
(BRA, 80 min., 2012)
Direção: Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro
Distribuição: Vitrine Filmes
Estreia: 7 de junho

 

Por Heitor Augusto

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