Obra-prima em Tóquio

Algumas das obras mais marcantes e celebradas da cinematografia mundial são de difícil acesso: vistas em momentos especiais, como mostras ou homenagens em festivais importantes. O cultuado cineasta japonês Yasujiro Ozu (1903-1963) inspirou nomes como Wim Wenders, tanto quanto é objeto das mais variadas leituras e interpretações. Mas o culto a Ozu não corresponde à circulação de seus filmes no mercado de DVDs.

Por isso, deve ser saudada a iniciativa da Versátil, que acaba de lançar uma caixa em três discos que reúne cinco clássicos do mestre japonês. Dentre estes, para deleite dos cinéfilos, aquele que para muitos é sua obra-prima: “Era uma Vez em Tóquio” (1953).

Desde a antiguidade, uma das exigências a uma obra de arte é que ela comova. Mas comova à medida que mantenha equilíbrio no fluxo temporal da narrativa, na composição da psique dos personagens e carregue mensagem que leve ao espectador a identificação. Do contrário, a queda ao melodrama, ao artificialismo vazio, ou ao maneirismo. Numa obra cujo propósito é comover, justapor esses elementos é um desafio a que poucos têm êxito.

Ozu, no entanto, domina os elementos dessa justaposição de tal modo que sua obra deixa a sensação de que tudo é feito do modo mais natural possível. Ele capta os sentimentos dos personagens e os ajusta ao fluxo narrativo com uma delicadeza tal que o espectador sente a dor em uma cena por referência à sua experiência pessoal. Nesse sentido, “Era uma Vez em Tóquio” não só é a súmula de sua obra como uma das obras máximas na arte cinematográfica.

No filme, a viagem de um casal idoso de Onomichi a Tóquio. Isolados numa casa à beira de um rio, depois de muitos anos, eles decidem rever os filhos, os netos que crescem e amizades antigas. Quando chegam à grande cidade, são recebidos com formalidade, mas sem afeto. Filhos e netos, na verdade, se incomodam com a presença dos anciões. Imersos no cotidiano de um grande centro urbano, eles não têm tempo para o casal de “velhos”. Apenas a nora, que fora casada com o filho que morrera na Segunda Guerra, se afasta do trabalho para lhes dar atenção.

A estada deles em Tóquio é pontuada por momentos melancólicos. Dois, em especial, são comoventes. Os filhos tentam resolver o incômodo com a presença deles e os enviam para uma estância turística. Mas o casal se ressente, percebe a rejeição e ela começa a se sentir mal. Em outro momento, enquanto ele visita amigos de juventude, ela visita a nora. Entre os amigos, a conversa gira em torno da nostalgia e do confronto com os novos tempos. Na conversa, regada a saquê, ele se embriaga. Já ela – ao lado da nora – percebe a tristeza da jovem viúva, que preserva a foto do filho morto, e assim mantém viva sua memória.

E assim se passa a estada em Tóquio. Na volta a Onomichi, a saúde dela se complica; em consequência, sem muito sofrimento, o óbito. A família, então, se reúne novamente para as exéquias. Na cena final, depois que os filhos voltaram para seus afazeres, ele fica com a nora, que se retém mais tempo para lhe dar apoio emocional. Na despedida, ele a presenteia com um relógio que foi dela, e lembra à nora que a relíquia não está na moda.

Diante de “Era uma Vez em Tóquio”, uma experiência estética que nos lembra como a arte cinematográfica pode alcançar o sublime. Sentimento, decerto, que nos humaniza.

 

Por Humberto Pereira da Silva

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