Jorge Furtado: o homem que não se copiava
Jorge Furtado gosta de citar o escultor espanhol Eduardo Chillida para falar dos seus últimos trabalhos: “o artista deve fazer o que não sabe fazer”. Nos últimos anos, ele se jogou de cabeça em dois projetos de perfil inédito em sua carreira. Conhecido pelas habilidosas comédias que primam pelos bons personagens e diálogos inteligentes, como “O Homem que Copiava” (2003) e “Saneamento Básico, o Filme” (2007), o gaúcho dirigiu pela primeira vez um documentário e em seguida um drama.
No primeiro, ele se debruça sobre a atual crise da imprensa brasileira (e mundial) a partir de uma peça do século 17 em “O Mercado de Notícias”, que estreia no dia 7 de agosto. No drama “Beleza”, que estreia até o final do ano, ele conta a história de um fotógrafo (Vladimir Brichta) que procura jovens candidatas a modelo no interior do Rio Grande do Sul. Sem falar da TV, onde continua numa firme parceria com a Globo – a mais recente foi a série “Doce de Mãe”, estrelada por Fernanda Montenegro, criada a partir do sucesso de um especial de fim de ano para a emissora. A TV, por sinal, o interessa hoje mais do que o cinema – Furtado acompanha nove entre dez séries americanas.
Na entrevista, o diretor fala das pesquisas para o documentário, que o levaram à conclusão de que os governos de Lula e Dilma sofrem mais patrulha da imprensa que o de FHC (ele nunca foi petista de carteirinha, mas trabalhou como publicitário em cinco campanhas do PT). E comenta com tranquilidade o trabalho de sua produtora, a Casa de Cinema de Porto Alegre, criada há 27 anos: projetos de qualidade, sem vocação para fazer milhões de espectadores, mas cuja qualidade é reconhecida por público e crítica.
Revista de CINEMA – Por que, de tantos temas, você decidiu se debruçar sobre a imprensa brasileira no seu primeiro documentário longa-metragem?
Jorge Furtado – Esse é um assunto que me interessa muito. Eu larguei medicina para fazer jornalismo, e depois fui fazer cinema. Sempre pensei em ser jornalista. Mantenho o meu blog onde escrevo meus textos desde 1997 – quando ainda nem se usava a palavra “blog”. Não sei viver sem notícia. Percebi que o jornalismo está num momento de transformação total, de mudança de parâmetros. Isso desde que a internet começou a ocupar o lugar que antes era exclusivo dos jornais, da TV e do rádio. Quis investigar para onde ele vai no futuro.
Fui pesquisar a origem do jornalismo e cheguei num livro chamado “Uma História Social da Mídia”, de Peter Burke e Asa Briggs. E nesse livro havia uma menção breve à peça “O Mercado de Notícias”, do Ben Jonson. Aí juntou duas das minhas obsessões: a história do jornalismo e o teatro elisabetano, que eu conhecia por causa do Shakespeare. O jornalismo começou na Inglaterra em 1622, e a peça é de 1625. Ou seja, em apenas três anos, o cara percebeu a importância do jornalismo. O Jonson escrevia num inglês mais complicado que o Shakespeare, com muitas referências do dia-a-dia da época. Enquanto o Shakespeare falava da Itália, da Dinamarca, ele era um cronista da Londres da época. Chamei a Lisiane Kugland e decidimos traduzir. Levamos três anos nessa tradução.
Fiquei muito espantado com a atualidade do que ele escreve. São questões do jornalismo até hoje: a relação com a fonte, o financiamento, gente que quer aparecer, a veracidade das informações.
Revista de CINEMA – Como você vê a imprensa brasileira hoje? Em decadência, como dizem alguns jornalistas do documentário?
Jorge – Ela vive um momento de crise, que pode ser positiva ou negativa. Um dos aspectos positivos da mídia é a diversidade das fontes. Hoje, eu me sinto mais bem informado do que nunca. Quem quiser saber o que está acontecendo tem como descobrir. Não dá tempo de ler tudo o que tem de bom para ler. O Noam Chomsky falava na formação do consenso: com cinco ou seis grandes jornais no Brasil, a imprensa formava um consenso.
Bastava que esses veículos não cobrissem alguma coisa e pronto. Hoje, um garoto com Instagram e um blog pode fazer um estrago enorme. É impossível manter alguma coisa escondida.
O pior aspecto, para mim, é que nesse mundo da concorrência feroz entre blogs e sites, os critérios jornalísticos fundamentais estão sendo muitas vezes abandonados. Nesse mundo de Facebook e Twitter e mil sites, tu não sabe de onde é que veio a informação. As fofocas e baixarias poluem o ambiente de uma tal maneira… Por isso, nunca foi tão útil como agora a profissão de jornalista. A profissão dele é dizer a verdade, sempre checar suas fontes. E o leitor atual tem que ser um leitor ativo, crítico.
Revista de CINEMA – Você acredita que a mídia brasileira hoje faz uma oposição saudável ao governo Dilma?
Jorge – O Brasil foi governado durante 500 anos por representantes da elite. A eleição do Lula mudou os parâmetros. Com todos os defeitos e qualidades que o governo dele teve, a mudança foi ter um líder popular, o primeiro brasileiro que passou fome na vida chegando ao poder. Desde a eleição do Lula, a imprensa tradicional passou a falar como um partido de oposição. A própria Judith Brito, presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), disse que a imprensa hoje é a verdadeira oposição ao governo. Ou seja, a imprensa foi partidarizada. Como diz o Jânio de Freitas no filme, dependendo de quem é o presidente, a coisa é publicada ou não.
Os grandes jornais têm sim uma postura contrária aos governos Lula e Dilma. Nas minhas pesquisas, procurei “barrigas” da imprensa contra o governo Lula. Descobri pilhas, ao menos 20 erros graves dos jornais contra o governo. Aí, para me certificar que não estava louco, fui procurar barrigas dos jornais contra o governo FHC. Não achei nenhuma. Se alguém souber, por favor me mande.
Todos os veículos têm bons jornalistas. Percebo que a Folha, por exemplo, sempre procurou mostrar os dois lados. Mas a linha editorial dos jornais, inclusive da Folha, é contrária à Dilma e favorável ao PSDB. Um escândalo tucano como o das licitações dos trens envolvendo a Alstom não deixa de sair, mas o volume de notícias publicadas é muito diferente. Apesar de tudo, sou otimista. Acho que esse desequilíbrio vai ser superado com o tempo.
E não podemos esquecer que a linha editorial do jornal é definida em parte pelo departamento comercial. E o perfil do público leitor também é fator fundamental. Se tu considera que a elite na economia é de 2% a 5% do país, é exatamente esse o público leitor de jornais. Não acompanho tanto telejornal, mas acho que é um público diferente, mais amplo; a TV não pode ser tão restrita. Na TV, as classes C e D consomem os anúncios, e tu não pode desagradá-los. Existe sim uma questão de luta de classes. Como diz o Bob Fernandes no filme, Lula e Dilma são outra turma, não são do clube. Não podemos nunca nos esquecer que o Brasil é o país de maior desigualdade social do mundo, e foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão.
Revista de CINEMA – Não preciso nem perguntar então o que você achou das vaias a Dilma na abertura da Copa…
Jorge – Pô, se você paga 800 reais para ver um jogo, tem que vaiar mesmo! (risos). Primeiro, acho que foi uma deselegância total. E uma perda. Se fosse um protesto mais elegante, teria chance de alcançar a mídia do mundo todo. Mas do jeito que foi…
O que acho curioso dessa história da Copa é que rola uma esquizofrenia enorme. Quando o Brasil foi escolhido para sediar a Copa, todo mundo festejou: o Lula, o Serra, o Aécio, tava todo mundo lá. Depois, todo mundo foi tirando o pé. A Copa tinha que fracassar por interesses políticos. Depois que funcionou e deu tudo certo, ficou uma contradição louca. Quem aposta no “quanto pior, melhor”, se deu mal.
Revista de CINEMA – Houve algum jornalista que não quis falar no documentário, ou não pôde falar por algum motivo?
Jorge – Houve dois. O Elio Gaspari não quis. Agradeceu, foi muito simpático, mas nunca dá entrevistas. O outro foi o Caco Barcellos, que tinha concordado em falar, mas estava fazendo uma matéria no interior do Nordeste e não voltou a tempo.
Revista de CINEMA – Os brasileiros valorizam a liberdade de imprensa?
Jorge – Eu costumo dizer que, se tivesse que escolher entre ter governo ou ter imprensa, preferia ter imprensa. Viver num país sem liberdade de imprensa é um inferno. Como dizia o Freud, saber é sempre bom. É verdade que quem não viveu a ditadura, a fase da censura nos jornais, não dá tanto valor às coisas hoje. Estou com 55 anos, e lembro que uma vez, muito jovem, peguei um ônibus de Porto Alegre a Buenos Aires só para ver “Laranja Mecânica”, que estava proibido aqui. Eu tinha que ler muitos livros em espanhol que chegavam da Argentina porque não chegavam aqui. Uma vez, dei aula na escola de cinema de Cuba. Lembro que na TV do hotel só passavam dois canais: um era o Fidel falando, e outro era um desenho animado do Skippy, o Canguru. Um horror.
Agora, um dos problemas que vejo hoje é que o jornalismo virou em sua maioria de opinião. Você abre o jornal e uns 90% do que você lê são colunas e artigos. Está faltando a informação bem apurada. Como diz o José Roberto de Toledo, ao contrário do que os jornais pensam, o produto mais valioso que eles vendem não é informação. É credibilidade.
Revista de CINEMA – E a massa que foi às ruas nas manifestações do ano passado? Estava bem informada ou foi um protesto emocional?
Jorge – Os protestos começaram em Porto Alegre e eu pude acompanhar de perto. O maior mérito foi mostrar o interesse de uma juventude por política, quando parecia que ninguém mais se interessava por nada. Provou-se que não era verdade. Agora, os manifestantes eram contra tudo isso que está aí, mas contra o quê exatamente? Política não é só ser contra, você tem que ser a favor de algo. As manifestações foram muito negativas e pouco propositivas. Não entendemos o que esses jovens querem. Alguém é contra mais educação, mais saúde, menos violência?
O que faremos para isso é que é política. O problema é que ser contra algo tem sempre muito mais audiência do que ser a favor de algo.
Revista de CINEMA – Você ficou aborrecido com a repercussão do texto que publicou no blog sobre o pessimismo no Brasil, quando a imprensa o interpretou como uma resposta à entrevista de Wagner Moura ao Estadão?
Jorge – O meu texto falava do Joaquim Barbosa e de vários artistas. Parece que virou moda falar mal do governo. Agora que tem luz elétrica e emprego pra mais gente, não dá pra viver no Brasil? O debate vira muito emocional e muito pouco racional.
E falta à imprensa checar aquilo que os entrevistados dizem. Outro dia li uma entrevista do Ney Matogrosso em que ele dizia que a situação no Rio tá um horror porque todo dia aparece uma pessoa morta na cidade. Não, morrem dezenas de pessoas todo dia! Um dia, recebo o “Zero Hora” em casa e a manchete era essa frase do Wagner: “Não dá mais pra viver no Brasil”. E ele é um cara com quem já trabalhei e que respeito muito. Troquei emails com ele depois, e ele me disse que não falou aquela frase do jeito que saiu.
Revista de CINEMA – Como foi a experiência de dirigir documentário? Muito diferente de dirigir ficção?
Jorge – Foi uma novidade. O Eduardo Chillida, um escultor espanhol, falou uma vez que o artista deve fazer o que não sabe fazer. É isso, eu gosto de fazer o que eu não sei. Este ano, fiz duas coisas inéditas na minha carreira: um longa documentário e um longa drama. É muito interessante no documentário a coisa de não saber o que vai acontecer; na ficção, tu quer cumprir o roteiro a qualquer custo. Para mim não foi difícil porque gosto muito de conversar, gosto do diálogo. Os meus amigos dizem que eu só fiz esse documentário por causa do Picasso do INSS. (Em 2004, a Folha publicou uma reportagem que afirmava que um valioso desenho de Picasso estaria displicentemente decorando um gabinete do prédio do INSS em Brasília. Na verdade, tratava-se de uma reprodução barata, dessas que se compram em lojas de museu. O jornal não desmentiu a informação.)
Revista de CINEMA – Você tem feito um bom número de trabalhos para a TV nos últimos anos, como as séries “Decamerão, a Comédia do Sexo” e “Doce de Mãe”. Nos EUA, a excelência das séries de TV de hoje influenciam os rumos do cinema. Você sente essa troca de experiências também no Brasil?
Jorge – Cinema e TV nunca foram estanques no Brasil. O cinema brasileiro sempre se alimentou do rádio e depois da TV, com a Xuxa e os Trapalhões. E hoje se faz filmes que são grandes especiais de televisão. O que aconteceu lá nos EUA é que a inteligência criativa migrou toda para a TV, e isso deve acontecer aqui também. Hoje é na TV americana que nós encontramos maior qualidade dramática e os melhores textos – o cinema virou um negócio para vender combo do McDonald’s. Os produtores tomaram conta do cinema e os autores foram para TV.
O curioso é que sempre se disse que a TV não tem tempo de se aprofundar. Pelo contrário, ela é hoje o veículo em que mais dá tempo de se aprofundar. O Bergman nunca criou personagens como os Sopranos. A tendência é que as séries fiquem cada vez mais interessantes. Tento ver todas as séries, tenho mais interesse hoje por TV do que por cinema. Adoro “Mad Men”, “Homeland”, “The Newsroom”, “House of Cards”, “Breaking Bad”. Só “Game of Thrones” eu não entrei ainda, porque fantasia não é muito a minha praia.
Revista de CINEMA – Como está sendo a experiência de “Doce de Mãe”?
Jorge – Tenho muito orgulho da série. É uma oportunidade de fazer comédia sem baixaria, com uma protagonista de mais de 80 anos (Fernanda Montenegro). Fizemos um especial e depois mais uma temporada de 14 episódios que já foram ao ar. Fiz a direção geral e dirigi várias cenas, em colaboração com a Ana Luiza Azevedo e a Olívia Guimarães.
Gostaríamos muito de continuar, mas trabalhamos com um elenco maravilhoso que tem as agendas complicadas… vamos ver. Agora trabalho num novo projeto com a Globo sobre o qual ainda não posso falar.
Revista de CINEMA – Por que o tema da beleza para o seu primeiro drama, “Beleza”?
Jorge – Eu trabalhei com publicidade no começo da carreira, e o tema da beleza sempre foi um mistério. Se tu pensar que a Gisele Bündchen tem uma irmã gêmea e ninguém dá nem 10 reais por ela enquanto a outra ganha milhões, por que é assim? A beleza do rosto, do corpo, de uma paisagem, é uma coisa mágica. Aquilo te comove de uma maneira que tu não entende. No “Saneamento Básico”, um personagem diz uma frase do Dostoiévski: a beleza salvará o mundo.
Escrevi uma história sobre as várias formas da beleza: a beleza da ação, do sacrifício, do gesto. Meu protagonista, o João (Vladimir Brichta), é um fotógrafo que faz ensaios com mulheres lindas em cenários incríveis e de repente começa a achar tudo horrível. Eu vi isso acontecer. Uma vez, eu dirigia um comercial de água mineral, estava achando tudo lindo, de repente o fotógrafo virou pra mim e disse: “tá horrível!”. Eu e o Giba Assis Brasil estamos na fase final da montagem.
Revista de CINEMA – Foi muito estranho dirigir um drama?
Jorge – É curioso… A comédia é uma máquina, uma coisa mecânica. Tudo precisa ser feito com uma precisão cirúrgica. Meio segundo a mais numa piada muda a piada inteira. O drama é mais uma coisa que se instala, com tempos longos. As pessoas se olham, o rosto é uma paisagem. O filme tem uma cena em que quatro personagens estão jantando sem nenhuma fala – naquele momento, tu só imagina o que cada um tá pensando. Mas isso tudo fluiu naturalmente. Às vezes você se pega perguntando como uma determinada cena vai acabar e o final simplesmente acontece.
Revista de CINEMA – Por que os jovens são um dos temas prediletos do seu cinema?
Jorge – A Andrea Beltrão costuma dizer que sofre-se muito na adolescência. Se tu tem boa memória e um distanciamento, vê que é um período muito rico, de transformação, de criação de linguagem e de contestação. Acho que parte da minha fascinação pela juventude vem do fato de que, enquanto no Brasil a gente é obrigado a ler José de Alencar, um troço chato, eu fui muito formado na literatura americana. O Hemingway dizia que a literatura americana foi fundada por personagens jovens: Tom Sawyer, Huckleberry Finn, o protagonista do “Apanhador no Campo de Centeio” do Salinger.
Revista de CINEMA – Como você vê a evolução da sua produtora, a Casa de Cinema, de 1987 até hoje?
Jorge – Éramos 13 sócios originalmente. A gente fazia cinema de forma amadora e queria se tornar profissional, se juntou pra ter um endereço, telefone. Ao longo desses anos, vários sócios saíram, hoje somos quatro dos originais: eu, a Nora Goulart (produtora), o Giba Assis Brasil (montador) e a Ana Luiza Azevedo (diretora do longa “Antes que o Mundo Acabe”). Começamos fazendo TV antes de cinema, fizemos até trabalhos para o Channel Four inglês. Desde então, nunca morei em outro lugar. Hoje, há vários jovens chegando e se juntando à nossa equipe.
Descobrimos há muito tempo que não temos vocação para o mercado. A gente sabe fazer os filmes que a gente gosta de ver. Eu gostaria de fazer uma comédia de 3 ou 4 milhões de espectadores, mas simplesmente não sei fazer. O nosso consolo é que fazemos coisas mais duráveis. O Cícero falava na “Poética”: existem peças para se ver uma vez e peças para se ver muitas vezes. Quando nossos filmes passam de novo, é muito bom ver que as pessoas gostam de novo deles.
Por Thiago Stivaletti
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