Uma prisão, muitos olhares

Dos diretores brasileiros de hoje, Aly Muritiba tem a melhor história para contar de como se tornou cineasta. Seu currículo inusitado só perde para o de Ozualdo Candeias (1918-2007), pioneiro do cinema marginal, que foi militar, caminhoneiro, office boy, metalúrgico e funcionário público.

Nascido na pequena Mairi, no interior da Bahia, Alysson (nome completo) estudou História na USP e morava em São Paulo quando decidiu se mudar para Curitiba para viver com a namorada. Sem emprego, começou a prestar os concursos públicos que apareciam. O primeiro no qual passou foi para ser bombeiro e salva-vidas – trabalhou seis meses nas operações de resgate, mas o salário era muito baixo e desistiu.

No segundo concurso, tornou-se agente penitenciário, e tomou um duro choque com a realidade das penitenciárias. Até que encontrou uma brecha útil na lei – ele poderia ser dispensado do trabalho se estivesse cursando o ensino superior. Foi quando decidiu estudar Cinema e TV na Faculdade de Artes do Paraná. “Em resumo, fui fazer cinema para sair da cadeia”, conta.

O cárcere no cinema 

Entre os primeiros curtas, começou a pensar no que chamou de a “Trilogia do Cárcere”, retratando as relações entre os presos e destes com as pessoas de fora da cadeia. O primeiro projeto foi o curta de ficção “A Fábrica” (2011), sobre uma mãe que aceita o risco de levar um celular para o seu filho na cadeia em dia de visita. O curta recebeu nove prêmios em festivais nacionais e internacionais, como os de Toronto, Lisboa e Varsóvia, e foi semifinalista ao Oscar da categoria.

No segundo curta, o diretor optou pelo ensaio documental. “Pátio”, um retrato do momento de ócio dos presidiários, quando jogam bola ao ar livre e conversam sobre a vida, foi selecionado para a Semana da Crítica do Festival de Cannes. Os dois curtas o prepararam para seu projeto mais ambicioso, o longa “A Gente”, em que acompanha a rotina de árduas negociações de seu colega, Jeferson Walkiu, membro da Equipe Alfa, grupo que faz a guarda e a custódia de cerca de mil detentos numa penitenciária no Paraná.

Para o filme, Muritiba pediu reintegração no seu trabalho de agente penitenciário – e teve acesso a imagens que só um membro da categoria poderia obter. Em cada filme da trilogia, ele aborda a mesma realidade, mas sob perspectivas diferentes, oscilando entre o documentário e a ficção, o ponto de vista dos detentos e dos agentes. No longa, os presos quase não aparecem, a não ser pelas vozes fora do quadro. Walkiu, o colega-personagem, divide-se entre as restrições orçamentárias no limite do absurdo que recebe do governo – até o cafezinho para os presos é regulado –, a vontade de tornar menos desumana a vida dos detentos sem dar sinal de fraqueza, e a religião, que lhe dá força para seguir.

Um dos documentários mais importantes dos últimos anos sobre a relação do poder com os marginalizados – ao lado de “Morro dos Prazeres”, de Maria Augusta Ramos –, “A Gente”, infelizmente, não foi distribuído nos cinemas, restringindo-se ao circuito de festivais.

Ficção envereda pelo thriller 

Seu próximo passo foi experimentar o único formato pelo qual ainda não tinha se aventurado: o longa de ficção. Recém-premiado no Festival de Montréal, no Canadá, como melhor longa-metragem de ficção, “Para minha Amada Morta”, que ele define como “uma espécie de drama que se transforma num thriller”, segue Fernando (Fernando Alves Pinto), um jovem viúvo que cuida sozinho do seu filho. Um dia, arrumando as coisas da falecida, ele encontra uma fita VHS com imagens pessoais. “Isso, no início, traz um alento, mas numa das fitas ele a vê transando com outro cara. Ele decide então encontrar esse sujeito, e a vida dele vira um inferno”, explica o diretor.

Cena de “Para a minha Amada Morta”, longa de estreia de Aly Muritiba na ficção, que traz Fernando Alves Pinto como protagonista

“Para a minha Amada Morta” foi um dos filmes brasileiros mais cotados para a seleção do Festival de Cannes, mas por fim não conseguiu a vaga. O longa tem previsão de estreia no circuito comercial em março de 2016 e será distribuído pela Vitrine Filmes.

Além de diretor, roteirista e produtor de seus próprios filmes, Muritiba acumula mais uma função que vem lhe trazendo prestígio nos últimos anos: a de diretor de festival. Junto com seus colegas Antonio Junior e Marisa Melo, fundou há quatros anos o Olhar de Cinema, um festival de cinema independente na capital paranaense. A última edição, realizada em junho, reuniu 92 filmes, divididos em mostras competitivas de longas e curtas, além de retrospectivas e sessões de filmes clássicos. Segundo Muritiba, cerca de 90% da programação é feita de filmes inéditos no Brasil. “A nossa ideia era só fazer os nossos filmes. Mas a gente voltava dos festivais cheios de coisas pra contar e não tinha com quem conversar, estávamos muito solitários nessa parte da produção e difusão. Foi aí que decidimos criar o festival”, explica.

O circuito aumentou em relação à primeira edição – se antes o Olhar ocupava apenas as três salas do Espaço Itaú no Shopping Cristal, agora engloba também duas salas no Shopping Curitiba. O festival, hoje, tem uma boa reputação entre críticos e cinéfilos, mas Muritiba tem vontade de botar o pé no freio. “O festival já me ocupa hoje seis meses do ano. Não quero crescer demais, porque meu negócio é continuar a fazer meus filmes”.

 

Por Thiago Stivaletti

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