Entrevista: João Vieira Jr.

O desejo de fazer um único filme motivou o jornalista e advogado João Vieira Jr. a criar a REC Produtores Associados, ao lado de Chico Ribeiro e Ofir Figueiredo. O ano era 1998, quando o cinema brasileiro começava a se reerguer do hiato forçado, ocasionado pelo fim da Embrafilme, oito anos antes. Se o contexto era árido no Rio e em São Paulo, que tinham um forte histórico de produção, era ainda mais complicado no Recife. A estreia de “Baile Perfumado”, em 1996, dirigido pelos pernambucanos Lírio Ferreira e Paulo Caldas, provara, no entanto, que o sonho poderia até ser difícil, mas não impossível.

“Cinema, Aspirinas e Urubus” chegaria às salas apenas em 2005, e sua trajetória até aí diz muito sobre a transformação e o impulso tomado pelo próprio cinema brasileiro ao longo desse período, com a descentralização de políticas culturais pelo país e o advento de sistemas de financiamento público para o setor. Diz também sobre a constituição de um modo de fazer, alçado quase a gênero neste início de século 21: o do cinema pernambucano.

“Esse foi um filme-escola para mim e para um monte de gente, porque foi o primeiro longa do [diretor] Marcelo Gomes, do [diretor de fotografia] Mauro Pinheiro, do [ator] João Miguel…”, lembra Vieira Jr. Tal aprendizado que se dá no fazer, coletivo, colaborativo e horizontalizado, é do que o produtor tem se munido para enfrentar os sets de filmagem, em que chega a coordenar até 70 profissionais, em longas como “Baixio das Bestas” (2007), de Cláudio Assis, “Era uma Vez Eu, Verônica” (2012), de Marcelo Gomes, e “Tatuagem” (2013), de Hilton Lacerda, e também para se articular em prol do fortalecimento das políticas para o cinema dentro e fora de Pernambuco.

Nesta entrevista, Vieira Jr. reflete sobre as mudanças ocorridas no cenário da produção, em seus quase 20 anos de REC, e a responsabilidade frente aos projetos que decide tocar. Ele defende também a coprodução como arma para o fortalecimento de arranjos regionais e fala sobre suas primeiras experiências no desenvolvimento de séries para a TV paga.

“Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes, grande sucesso internacional produzido por João Vieira, em coprodução com a Dezenove Som e Imagem, de São Paulo

 

Revista de CINEMA – Você aprendeu a ser produtor de cinema na raça, após experiências com publicidade. Se estivesse começando hoje, que cenário você encontraria diferente daquele no qual você começou? 

João Vieira – A publicidade me ajudou a desenvolver uma organização direcionada a cronogramas, prazos, planejamento orçamentário. Tive esse trabalho no final dos anos 1980 e começo dos anos 1990, quando a produção de cinema no Recife ainda não absorvia isso de forma tão clara. A REC foi criada em 1998 e, no ano anterior, haviam sido lançados três longas-metragens nacionais no Brasil. Em 2015, foram 154 longas em salas de cinema. Esses números são muito significativos. Naquela época, não existia Ancine [a Agência Nacional do Cinema seria criada apenas em 2001], nem a Lei do Audiovisual da forma como funciona hoje. O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) só viria em 2008. Criar um plano financeiro com meta profissional de captação era muito difícil. Comecei “Cinema, Aspirinas e Urubus” em 1998 sem saber quando ele ia acabar. Filmamos em 2003 e lançamos apenas em 2005. No quadro de hoje, tenho uma carteira de projetos. Temos seis longas em desenvolvimento – um deles é “Joaquim”, de Marcelo Gomes, que está em fase de finalização –, e a pretensão é filmar outros dois no próximo ano, então, eu consigo traçar um cronograma e um plano financeiro. Mas nada disso é aleatório. Estou calcado também na construção e no fortalecimento desse mercado, com um calendário de chamadas públicas do FSA já muito definido, após uma política de descentralização de recursos e de transparência nos editais, proposta pela equipe do ex-ministro da Cultura Gilberto Gil (2003-2008). Isso permitiu a uma produtora sediada no Recife e a um produtor estreante levar esses projetos à frente, contribuindo para que aqueles diretores se expressassem e ajudando a construir carreiras.

Revista de CINEMA – Qual a principal diferença entre produzir no Nordeste e no chamado eixo Rio-São Paulo?

João Vieira – Esses são mercados consolidados há muito mais tempo, com uma geração de autores e produtores que começou a trabalhar e a lançar seus filmes ainda nos anos 1990. O modelo de produção não é tão diferente, mas, no Recife, não podíamos ficar presos a certos dogmas. Era preciso horizontalizar mais os departamentos, porque, naquele momento, você não tinha todos os profissionais com experiência. Isso fez com que o produtor executivo não se distanciasse tanto da equipe e estivesse fisicamente presente o tempo inteiro nas filmagens. É importante estar na base e acompanhar as necessidades de cada departamento para saber interferir criativamente sobre eles e propor soluções quando você não tem o orçamento ideal.

“Baixio das Bestas”, do diretor Cláudio Assis, uma das primeiras produções de João Vieira em Pernambuco

Revista de CINEMA – Você imagina a possibilidade de criação de novos arranjos de produção cultural e o surgimento de um eixo nordestino, por exemplo?

João Vieira – Talvez a palavra não seja mais eixo, porque a ideia de descentralização, que se discutiu há 10, 12 anos, está em plena ebulição. São muitas possibilidades, talvez sejam vários polos. Mas acho que o principal é entender com quem você dialoga e se esses diálogos são, de fato, colaborativos. O grupo de diretores com quem já trabalhei inclui Marcelo Gomes e Hilton Lacerda (Pernambuco), Karim Aïnouz (Ceará) e, agora, Sérgio Machado (Bahia), além de alguns estreantes. Quando propusemos a criação de um núcleo criativo, percebemos que essas pessoas todas já colaboravam entre si e já tinham atuado em muitos projetos uns dos outros. Era um núcleo que já existia informalmente. A gente só buscou formalizá-lo e fortalecê-lo dentro de uma proposta mais consolidada, no qual eu opero como um elemento de ligação entre os desejos e os projetos daqueles diretores.

Revista de CINEMA –E como é possível potencializar os mercados regionais?

João Vieira – Acho que a gente tem que ter um grande arranjo nacional no qual o modelo de coprodução interno seja juridicamente reconhecido. Nossa legislação para coprodução internacional é muito clara, mas dentro do Brasil é possível ter apenas uma empresa como proponente. Isso dificulta o processo de captação. Se a REC tem um projeto inscrito na Ancine como produtora, eu posso apresentá-lo ao nosso edital regional, o Funcultura. Se esse projeto tiver uma coprodução efetiva com uma produtora em Belém e lá houver também um edital regional, ele não pode ser apresentado ali, porque a responsabilidade jurídica é da REC e a Ancine entende que ela seja a única proponente. Todos os Estados que dispõem de algum incentivo exigem que a empresa seja sediada neles e que também seja a proponente junto à Ancine. O tempo médio de captação de um projeto hoje no Brasil é de pelo menos três anos. A gente pode abreviar isso no momento em que tivermos uma legislação capaz de reconhecer a responsabilidade jurídica de coproduções onde mais de uma empresa é responsável. Com isso você tem mais volume de trabalho e mais emprego.

Revista de CINEMA – Você falou dos impactos financeiros de uma coprodução, mas quais seriam os impactos artísticos dessas parcerias?

João Vieira – A coprodução é ótima porque permite identificar que talentos são mais adequados a cada projeto e não ficar preso só aos serviços que estão mais próximos de você. Quem lucra com isso é sempre o filme. Em “Cinema, Aspirinas e Urubus”, a gente propôs uma coprodução com a Dezenove Som e Imagens, de São Paulo, que contribuiu muito para o sucesso dele. Tudo o que favorece a troca soma ao projeto. Você ganha não só na qualidade técnica, mas na qualidade artística também.

Cena de “Tatuagem”, produção de João Vieira, do primeiro filme dirigido pelo roteirista Hilton Lacerda © Flavio Gusmão

Revista de CINEMA – Como você definiria sua linha editorial?

João Vieira – No início, eu não tinha um plano claro. As coisas vieram por camadas e foram se somando. O que une as pessoas e possibilita que elas trabalhem nos projetos umas das outras é o fato de nosso catálogo ser de cinema autoral, com força nos personagens e todo de baixo orçamento. São filmes que também são distribuídos em sala de cinema, vendidos para a TV e exibidos em festivais internacionais. Esses são elementos de ligação que ajudam a construir essa linha editorial, embora cada projeto seja uma nova aventura. Não sei se o resultado final dele vai estar alinhado com esse outro conjunto de fatores, mas a gente trabalha para isso.

Revista de CINEMA – Você entende o trabalho de produtor como alguém que administra carreiras. Como você lida com essa responsabilidade?

João Vieira – Quando você falou, aumentou a responsabilidade! (risos). Veja o Hilton Lacerda. Ele era um roteirista já muito conhecido e reconhecido no cinema brasileiro. Eu vi os dois curtas que ele fez nos anos 1980 e, em um momento, perguntei se ele não gostaria de voltar a dirigir. Dois meses depois, ele me apresentou o projeto de “Tatuagem”, que foi uma produção muito feliz. Essa responsabilidade de administrar carreiras significa entender que um roteirista também pode dirigir e em que momento isso pode acontecer, por exemplo. Quando você faz essas escolhas, você está colaborando com essas trajetórias. Claro que o diretor e o roteirista têm uma responsabilidade maior sobre o resultado, mas você constrói algo com eles ao mesmo tempo em que cria uma linha editorial dentro da sua empresa. Acho que tudo isso é feito é conjunto.

Revista de CINEMA – O conceito de cinema pernambucano o incomoda. Por quê?

João Vieira – Assim que comecei, achava que isso localizava demasiadamente e temia que essa diferenciação tirasse alguma importância dessa produção. Eu rebatia dizendo que a gente fazia cinema brasileiro, até porque você nunca fala de um cinema siciliano, mas do cinema italiano, certo? Isso aconteceu em um tempo em que essa produção pernambucana ganhava muita visibilidade em festivais nacionais e internacionais, além de distribuição nas salas de cinema. Talvez agora eu comece a ver um pouco diferente. Acho que o cinema pernambucano tem, sim, uma singularidade e apresenta um modo de fazer que encontrou um espaço inegável dentro da produção brasileira e que hoje talvez saia até de Pernambuco, já que profissionais de outros Estados vêm trabalhar nos nossos filmes e ficam com aquele jeito de pensar o cinema.

João Vieira e o diretor de “Tatuagem”, Hilton Lacerda: parceria construída ao longo dos anos © Edison Vara

Revista de CINEMA – Como produtor, você administra sonhos. Como é o diálogo com o diretor para que o senso de realidade não sufoque esse aspecto?

João Vieira – Digamos que esses são sonhos sob controle (risos). Como produtor, adoro a fase do desenvolvimento do projeto: esse sonho do tema, da proposta, da intenção, do que inspira e do que motiva o autor a querer fazer aquele filme. Gosto de estar nesse momento e ajudar a dar essas definições, saber para que lugar a gente está indo, descobrir qual é a melhor equipe, o melhor orçamento, o melhor tempo de fazer. Talvez seja essa a etapa que eu chame de sonho.

Revista de CINEMA – O lado produtor também exige um quê de articulador político?

João Vieira – Sim, atuei bastante nesse sentido, especialmente, nos anos 1990, mas não atuei sozinho. O Funcultura é um sistema bem importante que ajudou muito a criar um modelo de produção. No início, ele premiava três curtas-metragens. Era a época daquela geração de Marcelo Gomes, Cláudio Assis, Lírio Ferreira, Paulo Caldas, que começavam a aprender a cobrar uma atuação um pouco mais ampla da política de fomento do governo de Estado, e esse sistema foi se ampliando e se aperfeiçoando até se transformar em um fundo. Não acho que isso tenha necessariamente vindo de um plano, mas de articulação, de luta e de organização. Isso foi nos anos 1990, mas acho que existe hoje, em todos os realizadores, um envolvimento político muito maior dentro dos fóruns, numa atuação mais consciente e mais naturalizada. Ela já está tão inserida na atividade profissional como o próprio hábito de produzir.

Revista de CINEMA – Os sistemas de leis de incentivo têm sido postos em xeque, em especial a Lei Rouanet. Você teme que esses questionamentos cheguem também ao audiovisual?

João Vieira – Esse questionamento já chegou. Meu temor não é que os sistemas de financiamento e o FSA acabem. É triste que se coloque na berlinda qualquer financiamento à cultura, quando a indústria automobilística é financiada desde que existe no país. Por que a cultura incomoda? Acho que as políticas vão se manter, porque essa classe é organizada para defendê-la. Elas são patrimônio do povo brasileiro também, e a gente vai lutar pela permanência delas. O que me entristece é que se criminalize a atividade do artista. Aí eu me pergunto onde é que nós estamos. Eu não reconheço esse lugar. Isso nunca fez parte do Brasil dos meus sonhos. Eu achava que isso existia vagamente, em algum lugar do passado, mas não que se materializaria dessa forma novamente.

Cena da série “Fim do Mundo”, de Hilton Lacerda, produção de João Vieira para o Canal Brasil

Revista de CINEMA – Como a REC tem se aproveitado da nova lei da TV Paga?

João Vieira – A gente queria passar por essa experiência levando para a produção de TV algo parecido com o que já fazíamos no cinema, no que tange a resultados e a investimento artístico. Queríamos que fosse algo de dramaturgia, já que a maioria de nosso catálogo é de filmes de ficção. Acabamos de entregar ao Canal Brasil nossa primeira série de TV, chamada “Fim do Mundo”, de autoria de Hilton Lacerda e dirigida por ele e Lírio Ferreira, com atuações de Hermila Guedes, Jesuíta Barbosa e Marcélia Cartaxo. Foi uma experiência bem feliz, e deve ir ao ar no fim do ano, provavelmente em dezembro. Em 2017, a gente deve rodar duas coproduções com a Loma Filmes, de São Paulo. São duas séries de Hilton. Uma se chama “Chão de Estrelas”, uma espécie de spin-off de “Tatuagem”, sobre um grupo de teatro contemporâneo que mora no centro de uma grande cidade e faz espetáculos ali. Outra é “Lama dos Dias”, que se aproxima do movimento mangue do Recife, nos anos 1990, e acompanha a criação de uma banda fictícia em paralelo a acontecimentos, como o surgimento do Chico Science, do Mundo Livre e das outras bandas da época.

Revista de CINEMA – Tem alguma grande diferença entre produzir para cinema e para TV?

João Vieira – Não consigo ver uma diferença com tanta clareza. São orçamentos um pouco menores, e você tem que fazer com mais ritmo. Na experiência que a gente teve, levamos os mesmos conceitos da produção de longa para a TV. Acho que a gente fez mais rapidamente do que se tivesse fazendo longa, mas aplicamos os mesmos cuidados e conceitos no desenvolvimento, no tempo de roteiro e na pré-produção. Talvez essas diferenças ainda apareçam para a gente nas próximas experiências.

Revista de CINEMA – De que forma essa produção para TV alimenta a produção para cinema?

João Vieira – Ela pode abreviar a entressafra, esse prazo entre fazer um filme e começar outro. Acho saudável para a equipe estar sempre produzindo. Nossos planos são realizar dois longas e uma série por ano, mas você fica preso aos períodos de captação, ao cronograma, ao desenvolvimento adequado. Hoje, na produtora, a gente também flerta com alguns outros segmentos artísticos, e acho que isso é saudável e alimenta um pensamento novo. No ano passado, montamos uma peça de teatro e a cada dois anos a gente tem a intenção de produzir um espetáculo. No nosso planejamento, ainda consta fazer uma exposição em 2017. O audiovisual é nosso carro-chefe absoluto, mas se relacionar com outras expressões artísticas faz bem para todo mundo.

Revista de CINEMA – Qual o maior desafio de fazer produção em Recife hoje?

João Vieira – É torná-la autossustentável. É fortalecer as empresas produtoras, tornando-as mais formalizadas, mais consolidadas, conseguindo ampliar seu volume de trabalho, garantindo mais emprego para as pessoas. É fazer arranjos financeiros entre o sistema de incentivo local e outros incentivos, outras possibilidades de captação. Outro ponto é a distribuição e como a gente pode se organizar para fazer nossos filmes ocuparem mais salas e conquistarem um público mais amplo.

 

Por Amanda Queirós

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