O Cinema Latino-Americano de Cris Marker

A aventura latino-americana do cineasta Cris Marker (1921-2012), o “mais célebre dos cineastas desconhecidos”, é tema de substantivo livro, nascido de tese de doutorado defendida na USP, pela brasileira Carolina Amaral de Aguiar. Ler O Cinema Latino-Americano de Cris Marker, publicado pela Alameda Casa Editorial, é mergulhar em nossa história cinematográfica, social e política durante os ardentes e conturbados anos 1960 e 70.

Carolina, professora da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana), analisa, ao longo de 334 páginas, os documentários que o cineasta francês realizou sobre a revolução cubana (“Cuba Si”, “La Bataille de Dix Millions”) e sobre o Chile convulsivo de Salvador Allende (“On Vous Parle du Chili: Ce que Disait Allende”, “L’Ambassade”, “La Spirale”, este com participação do brasileiro Sílvio Tendler). E, em capítulo especial, o monumental “O Fundo do Ar É Vermelho”, em que o país andino tem presença significativa.

A pesquisadora analisa, também, os filmes “brasileiros” de Marker: “On Vous Parle du Brésil: Tortures” (1969) e “On Vous Parle du Brésil: Carlos Marighela” (1971). Neste último, aparecem imagens do enterro do estudante Edson Luís (em março de 1968), registradas por Eduardo Escorel. Os dois filmes foram realizados no que se convencionou chamar de “cinema de arquivo”, segmento que teve no francês seu expoente máximo. E que, no Brasil, gerou obras da grandeza de “Imagens do Estado Novo 1937-1945”, de Escorel, e “No Intenso Agora”, de João Moreira Salles.

Na apresentação de “O Cinema Latino-Americano de Cris Marker”, o professor Marcos Napolitano, orientador da tese que deu origem ao livro, lembra suas preocupações iniciais com o projeto. Quando a jovem Carolina apresentou seu plano de estudo – a obra de um cineasta francês – ele a questionou. “Não por duvidar da capacidade intelectual e da seriedade da pesquisadora”, mas “pela complexidade do tema”. Ou seja, parecia muito ousada a proposta de analisar “o olhar sobre a América Latina no cinema engajado de Cris Marker, entre o final dos anos 1960 e a década de 1970, momento dramático, doloroso e crucial para as esquerdas latino-americanas e europeias”.

Napolitano temia, ainda, o “enigma Cris Marker”. Todos sabem que o cineasta era dos mais arredios e misteriosos (ele ainda estava vivo quando Carolina iniciou sua pesquisa). E mais: estudar sua obra poderia parecer redundante e até “pretensioso” da parte de “uma jovem pesquisadora de universidade importante, a USP, mas periférica”.

Ao aceitar, enfim, a função de orientador, Napolitano desafiou Carolina a ler tudo que já fora escrito sobre Marker e sobre seus filmes latino-americanos (parte de sua vasta obra realizada em diversos continentes). A doutoranda entregou-se à missão. Só que suas pesquisas revelaram que “não havia tantas teses e livros ‘de fôlego’ sobre Marker”. Havia, sim, críticas, artigos em revistas especializadas, livros-homenagens e depoimentos. Mas nenhum estudo mais profundo sobre os filmes latino-americanos do reservado realizador.

A pesquisadora brasileira mergulhou, então, em seu objeto de estudo. Fez inúmeras viagens à França, acessou (apesar de todas as dificuldades) o recluso cineasta (atendimento restrito ao e-mail) e, para satisfação de seu orientador, evitou “a rarefação pós-moderna na linha do ‘tudo é linguagem, história não existe’”.

O resultado de sua densa pesquisa está impresso no livro da Alameda, ilustrado com fotogramas dos filmes estudados e arrematado com sólida bibliografia e completa filmografia do produtivo cineasta. Marker, vale lembrar, foi parceiro de Alain Resnais (“Les Statues Muerent Aussi”), de Joris Ivens (“À Valparaíso”), de Godard e Varda (“Loin du Vietnam”), de Patricio Guzmán (“La Première Année”) e realizou filmes na URSS (“Lettre de Sibérie”) e, depois, na Rússia (“Une Journée d’Andrei Arsenevitch”), Vietnã e, claro, em sua França natal (destaque para “La Jetée”, sua produção mais conhecida e festejada).

Registre-se que Marker encerrou sua vida de cineasta, que amava a História e seus arquivos, com o média-metragem “Chats Perchés” (2004). Ou seja, com um filme sobre gatos, sua maior paixão depois das revoluções às quais dedicou sua vida (de 91 longos anos).

Comentários subjetivos

Ao analisar os primeiros filmes de Cris Marker, o crítico e historiador Georges Sadoul (1904-1967) engendrou percepção de grande pertinência sobre o recorrente recurso à narração em off. Não aquela em que um locutor, pretensamente objetivo, tudo vê e tudo sabe (e que Jean-Claude Bernardet tão bem estudou em “Cineastas e Imagens do Povo”). Mas sim um narrador subjetivo.

Sadoul, conterrâneo do documentarista, escreveu, depois de deixar claro que não era defensor da supressão de todo comentário (em off): “É certo que devemos evitar o rom-rom explicativo e abusivo dos documentários da ‘vieille vague’. Conheço excelentes curtas em que não podemos ver mais as imagens, de tanto que temos as orelhas afetadas pela declamação de grandiloquências imperativas ou de finas alusões ‘poéticas’. O grande mérito de Marker é ter criado um novo estilo de documentário, em que as imagens adquirem um novo sentido graças aos seus comentários” (página 62).

No monumental “O Fundo do Ar É Vermelho” ouvimos a voz over de oito companheiros de militância política e artística de Marker: Simone Signoret, Yves Montand, Jorge Semprún, François Maspero, Sandra Scarnati, François Perrier, Laurence Cuvilier e Davos Hanich. O filme estreou em 1977 e alcançou boa receptividade na França (apesar de suas quatro horas de duração, permaneceu em cartaz por 16 semanas e atingiu perto de 50 mil espectadores). Dez anos depois, Marker realizou versão de três horas para a TV inglesa. E, em 1997, chegou à versão derradeira e atualizada deste filme-em-processo.

Quem se dedicar à leitura do livro de Carolina desfrutará de sólido e vibrante estudo sobre a obra latino-americana de Marker e, entre suas reflexões, encontrará histórias inesquecíveis. A mais impressionante delas dá conta de que o cubano Fidel Castro resolveu, em novembro de 1971, visitar o Chile do presidente Allende. E – pasmem – permaneceu na terra de Pablo Neruda por longos 24 dias. Sim, 24 dias (de 10 de novembro a 4 de dezembro).

Noutro trecho do livro, Carolina explica o enigmático título do documentário “Le Fond de L’Air Est Rouge”, cuja tradução brasileira carece de sentido e precisão (O Fundo do Ar é Vermelho). O que seria o “fundo do ar”? A atmosfera?

Para a pesquisadora Ursula Langmann (in “O Manual de História Idealizado/O Bestiário Crítico de Cris Marker”, Lisboa, 1986), o título do mais longo dos documentários markerianos faz alusão “à expressão francesa, praticamente intraduzível – le fond de l´aire est frais – cujo sentido é algo como ‘há um friozinho no ar‘, não significando, no entanto, que esteja realmente frio, mas sim que, sob o calor aparente (dos dias de começo do verão), perpassa uma aragem bastante fresca”. E prossegue a pesquisadora: “Indiretamente, o título já deixa entrever o estado de espírito que está por trás de todo o filme: nem euforia, nem desespero”. Apesar “do fracasso de todos os movimentos revolucionários apresentados no filme, alguma coisa mudou, embora isto só se note, só se ‘sinta’ à segunda vista, tal como o friozinho que perpassa o calor” (página 277) .

Quem sabe – vale sugerir – título mais adequado, em português, seja “Apesar de Tudo, Atmosfera Vermelha”. E torcer por seu tardio lançamento nos cinemas (e em DVD).

O longo filme – junto com “La Jetée”, o mais conhecido de Cris Marker – recorre, em sua trilha sonora, ao Hino da Comuna de Paris (“Les Temps de Cerises”) e também à canção “La Musica Delle Strade di Madrid”, de Luigi Bocherini. Quem ler o livro de Carolina encontrará sólida motivação para empreender mergulho na imensa obra do realizador francês, um dos mais internacionais documentaristas de nosso tempo.

Embora a leitura do texto de “O Cinema Latino-Americano de Cris Marker”, nascido como tese de doutorado, algumas vezes pareça penosa (e redundante), vale enfrentar suas mais de 300 páginas. A paixão de Carolina pela trajetória do grande documentarista francês não bloqueia seu olhar crítico. Neste denso estudo, ela conclui que “o cinema latino-americano de Marker pode ser definido como um percurso de duas décadas entre o otimismo revolucionário (primeiro por Cuba, depois pelo Chile de Allende) e a melancolia autocrítica”.

Quem quiser familiarizar-se ainda mais com os cinemas revolucionários dos politizados anos 1960, deve ler, também, o livro “Cámaras em Trance – El Nuevo Cine Latinoamericano, Un Proyeto Cinematográfico Subcontinental”, do chileno (radicado no Brasil) Ignácio del Valle Dávila, professor na mesma Unila e companheiro de Carolina Amaral. Publicado em espanhol (pela Editora Cuarto Proprio), o livro estuda o cinema cubano (os “Noticieros” comandados por Santiago Alvarez, “Lucia”, de Humberto Solás, “La Última Carga al Machete”, de Manuel Octavio Gómez), o brasileiro (“Eldorado, país y continente hambriento en la obra de Glauber Rocha”), o argentino (Fernando Birri e Fernando Solanas) e o Cinema Chileno da época da Unidade Popular, comandada por Allende.

O Cinema Latino-Americano de Cris Marker
Autora: Carolina Amaral de Aguiar
Editora: Alameda Casa Editorial
Páginas: 334 páginas
Preço: R$ 60,00

Por Maria do Rosário Caetano

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