Ugo Giorgetti lança série com memória do cinema paulista

Ugo Giorgetti está vivendo momento muito especial em sua trajetória de cineasta dedicado, há mais de 40 anos, à ficção e ao documentário. No próximo dia 21 de janeiro, o canal SescTV lança, on demand, a série “O Cinema Sonhado”, composta de quatro episódios sobre profissionais que fizeram o audiovisual paulista, de 1963 e 1990. Ao mesmo tempo, ele cuida da finalização de longa documental sobre o economista austríaco-brasileiro Paul Singer (1932 –2018) e prepara a produção de seu novo longa ficcional, “Dora e Gabriel”.

Pela primeira vez em sua carreira, iniciada em 1973 com o curta “Bairro dos Campos Elísios”, seguido por “Rua São Bento”, “Prédio Martinelli” e “Praça da Sé”, Giorgetti filmará roteiro que foi intensamente discutido com professores, alunos e público mobilizado por instituição de ensino superior, no caso a Unicamp (Universidade de Campinas).

Durante três meses do ano passado, dezenas de campineiros assistiram a dois de seus curtas e 17 longas-metragens, feitos para cinema e TV, em curso livre e especial. Coube ao diretor de “Festa”, “Sábado” e “Boleiros” debater seus filmes e, em caráter excepcional, o roteiro de “Dora e Gabriel” (de sua autoria, como os anteriores).

A experiência vivida na Unicamp segue o modelo de residências artísticas e nasceu de convite de Alcir Pécora, professor da Unicamp e crítico literário dos mais respeitados. A instituição propôs ao cineasta, conhecido como “o Adoniran Barbosa das imagens” (por sua paixão pela cidade de São Paulo e sua gente), que participasse de encontros, debates e “aulas” no IDEA (Instituto de Estudos Avançados-Unicamp).

“Não hesitei um instante em aceitar o convite” – admite Giorgetti. “Até porque este tipo de convite não acontece com frequência e, principalmente, porque foi feito por alguém da estatura intelectual do professor Alcir Pécora”. Ao longo de doze semanas, o cineasta compareceu aos “encontros e debates” em Campinas. Prefere não caracterizar seu trabalho no curso do IDEA como “aulas”, na medida em que, pondera, “eu mesmo, de modo algum, sou professor”.

Ugo Giorgetti e sua obra foram tema de dois livros escritos por Rosane Pavan, um na Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial de SP, e outro, “O Cineasta Historiador – O Humor Frio e o Filme Sábado”, fruto de dissertação de mestrado defendida na USP e publicada pela Alameda. O realizador paulistaliano diz que aprendeu muito com os “alunos” da Universidade de Campinas. “Foi, realmente, muito proveitoso dialogar com aquele público privilegiado”, rememora. Tanto que “meu enriquecimento foi maior que o deles”. E mais: “é preciso considerar que o público se compunha de uma mistura de alunos e professores de vários departamentos da Unicamp” e que “era aberto também a público exterior à Universidade”.

Todos os encontros, debates e “aulas” foram gravados pelo IDEA-Unicamp. Giorgetti não sabe se destes três meses de diálogo resultará um livro. Só sabe que viveu “um fato surpreendente, inesperado e importante na minha carreira, que já soma mais de quatro décadas”.

“Tinha indícios” – avalia – “através de obras que já me tinham sido dedicadas que, se meu trabalho pudesse despertar verdadeiro interesse, isso se daria por meio da Academia. Só não esperava que esse interesse fosse mobilizar a Unicamp”.

Dos múltiplos encontros, o diretor de “Um Noite em Sampa” destaca a proposta, efetivamente realizada, de abrir para discussão um roteiro de longa-metragem. “Não um roteiro concebido como simples exercício acadêmico, mas um roteiro real (“Dora e Gabriel”), para o qual já tenho aportes da Spcine e da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Ou seja, um roteiro, que será filmado”.

Giorgetti conta que “tinha inúmeras dúvidas sobre pontos do roteiro e pensava em mudanças”. No diálogo propiciado pelo curso livre da Unicamp, “pudemos estudar juntos, o público e eu, alternativas e palpites. Fizemos isso por várias quartas-feiras. Foi muito estimulante ver até professores da escola dando ideias entusiasmados”. E constata: “foi, realmente, uma boa ideia examinar um filme próximo de ser filmado, o que significa começar a defrontar-se com problemas de direção e produção que o exercício de escrever roteiros talvez raramente proponham”.

Os 19 filmes de Ugo Giorgetti foram exibidos, “não em ordem das datas de suas produções, mas na ordem em que revelavam uma cidade que aparecia gradativamente através deles, nas várias décadas do século XX”. Tal procedimento “resultou em uma visão ampla de São Paulo, por vezes amarga, outras vezes nem tanto, já que todos os meus filmes se passam nessa cidade, onde nasci”.

Enquanto “Paul Singer” e “Dora e Gabriel” não chegam às telas, o melhor é assistir à série “O Cinema Sonhado”, que o SescTV distribuirá gratuitamente, on demand. Nesta série de documentários, Giorgetti resgata memórias de cineastas, técnicos e ex-alunos de cursos de cinema paulistanos, atuantes da década de 1960 até os anos 1990.

Para compor os 27 minutos de cada um dos quatro documentários do canal SescTV, o diretor e apresentador ouviu veteranos, muitos deles formados no cinema de estúdios da década de 1950, e realizadores e técnicos de outras gerações, em especial os formados pela ECA-USP, nos anos 1970.

A velha geração se faz representar por Rodolfo Nanni, de 94 anos, César Mêmolo (em depoimento de 2006), Carlos Roberto de Barros, o Necão, Marília Santos (viúva de Robertos Santos), Julinho Xavier, Jeremias Moreira, Pedro Siaretta, Bia Palmari (viúva do cineasta Roberto Palmari) e Walter Carvalho (não confundir com seu homônimo, o paraibano-carioca que tornou-se, também, diretor de filmes como “Cazuza” e “Budaspeste”). O fotógrafo paulista assina as imagens de alguns dos longas de Ugo Giorgetti e, também, de “Sargento Getúlio” e “A Mulher no Cangaço”, ambos de Hermano Penna, “Últimos Dias de Lampião”, de Maurice Capovilla, “Sete Dias de Agonia”, de Denoy de Oliveira, entre muitos outros.

Nomes de outras gerações como o produtor e documentarista Guga Oliveira (1941-2018), se somam nos três outros episódios. Destaque para Hermano Penna, Suzana Amaral, André Klotzel, Francisco C. Martins, o Ícaro, Ismail Xavier, Carlos Augusto Calil, Isa Castro, Olga Futemma, Pedro Farkas, Ricardo Dias, Zé Bob, Roberto Gervitz, Guilherme Lisboa, Alain Fresnot, Cláudio Khans e Mário Masetti (com depoimento de arquivo, pois ele morreu em 2006), a quem a série é dedicada.

Os profissionais mobilizados por cada episódio revelam os temas que galvanizam seus depoimentos (alguns participam de dois programas). “Pelas Ruas do Bexiga”, o primeiro episódio, reúne os profissionais que se formaram nos anos 1950 e, com a crise da Vera Cruz, se dividiram entre a publicidade e o cinema. Já na abertura da série, Giorgetti avisa ao espectador que há fragmentos de informação falhos, mas que não foram corrigidos, pois o importante era trazer tais lembranças para o tempo presente. No meio da narrativa, o próprio cineasta, na função de apresentador dos mais participantes, reflete sobre o tipo de cinema brasileiro que tem público e aquele que não tem.

“Mazzaropi e os Trapalhões nunca reclamaram de falta de público”, constata. Já “um cinema que tenta pensar o país”, estabelecer problemáticas mais complexas, este encontra imensas dificuldades nas bilheterias”.

O recém-falecido Guga Oliveira, irmão de Boni, relembra, em depoimento vibrante, os anos de ouro da produtora Blimp, responsável por filmes como “Sargento Getúlio” e “Sete Dias de Agonia”, e por alguns dos melhores documentários dos anos de ouro do Globo Repórter. Este episódio é de rara importância, pelo muito que revela. Os depoimentos são ótimos e, alguns, instigantes e bem-humorados. Walter Carvalho, o paulista, conta que Guga era muito atrevido. “Se dizíamos a ele que necessitávamos de dez câmaras, ele retrucava: então vamos comprar 20!”. Hermano Penna relembra o poder da empresa: “houve um momento em que a Blimp mantinha, só no Rio de Janeiro, oito equipes trabalhando simultaneamente”. A produtora paulistana “detinha o maior parque de equipamento em 16 milímetros da América Latina. Chegávamos a apresentar 15 temas para novos Globo Repórter. O comando da Globo examinava e aprovava pelo menos três”.

André Klotzel, Ismail Xavier, Carlos Augusto Calil, Cláudio Kahns, Ricardo Dias, Isa Castro, Zé Bob (José Roberto Eliézer), Olga Futema e Alain Fresnot dão ótimos depoimentos sobre a ECA (Escola de Comunicação e Arte da USP). À medida que o programa avança, o então professor uspiano Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977) transforma-se na estrela mais brilhante do programa.

Ismail lembra a “fase jacobina”, marcada pelo desespero, vivida pelo autor de “Trajetória no Subdesenvolvimento”. Era o tempo do pavor mediciano, da tortura, do cerceamento às liberdades individuais. Foi naquele momento, como bem lembra Zé Bob, com precisão conceitual, que Paulo Emilio incentivou seus alunos a verem todo tipo de filme, inclusive os da Boca do Lixo. “Ele entendia” – relembra o diretor de fotografia de “Cidade Oculta” e “Filme Demência” – que “todos os filmes brasileiros eram importantes”, pois “diziam mais de nós mesmos que o melhor filme estrangeiro”.

“Nos Caminhos da Vila Madalena”, o quarto e último episódio da série, “relembra os anos que geraram, no bairro paulistano, filmes como “Marvada Carne”, de André Klotzel, e “Feliz Ano Velho”, de Roberto Gervitz, produções da Tatu Filmes, agrupamento de jovens egressos da ECA-USP. Relembra também outras produtoras do bairro, como a Gira Filmes e a Superfilmes.

Isa Castro testemunha que os jovens cineastas da Vila Madalaena não entendiam nada de produção, nada de dinheiro. Fresnot confirma: “certa vez, fomos assinar um contrato com a Shell. Fizemos o cálculo num relógio Cássio. Quanto, no orçamento, seria usado para nossa remuneração? 10%, sugerimos. Só que na hora de digitar, saiu 100%. A Shell aceitou o cálculo!”.

A imagem final do programa, que antecede a dedicatória a Mário Masetti, traz a famosa foto do cinema oitentista da Vila Madalena, que reúne algumas dezenas de realizadores. A mesma que, ainda hoje, decora a produtora de Alan Fresnot.

O Cinema Sonhado
Episódios: “Pelas Ruas do Bexiga”, “Blimp Film”, “ECA – Escola de Comunicação e Artes da USP” e “Nos Caminhos da Vila Madalena”
Duração: 27 minutos cada
Produção: SP Filmes
Realização: SescTV

Os episódios estarão disponíveis, gratuitamente e na íntegra, a partir de 21 de janeiro, em sesctv.org.br.

 

Por Maria do Rosário Caetano

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