Cineastas e instituições internacionais protestam contra descaso pela Cinemateca Brasileira

O Brasil possui uma das Cinematecas mais respeitadas do mundo – a Cinemateca Brasileira, implantada ainda nos anos 1950, por Paulo Emilio Salles Gomes e grande equipe. Uma instituição respeitada como suas congêneres internacionais, a Cinemateca Francesa, a Belga, a de Bolonha, que organiza o Festival Il Cinema Ritrovato, a Mexicana, a Japonesa e a Russa.

Só que a incúria do atual governo deixou a instituição brasileira sem direção (sim, não há grupo gestor encarregado de sua administração), sem funcionários e sem recursos financeiros.

Para tornar a situação ainda mais grave, um incêndio no final da tarde da última quinta-feira, 29 de julho, queimou parte significativa do acervo da instituição, guardado em subsede na Vila Leopoldina (a sede principal situa-se na Vila Clementino, na Vila Mariana).

Ainda não há balanço definitivo das perdas causadas pelo fogo. Mas Carlos Augusto Calil, que já foi diretor-presidente da instituição e hoje preside a associação de Amigos da Cinemateca, calcula que foram incinerados documentos acumulados ao longo dos últimos 60 anos por instituições como o INC (Instituto Nacional de Cinema), Embrafilme, Concine e Fundação do Cinema Brasileiro.

O incêndio repercutiu mundialmente e gerou matérias na imprensa internacional (vide o Libération francês, texto da correspondente Chatal Rayes) e protestos de organismos como a FIAF (Federação Internacional de Arquivos Fílmicos) e dezenas de Cinematecas espalhadas por todos os continentes.

Abaixo, a Revista de CINEMA publica depoimentos de cineastas e a íntegra do texto “Crime Anunciado!”, dos Trabalhadores da Cinemateca.

. Laís Bodanzky, diretora de “Bicho de Sete Cabeças”: “É um dia de luto pro audiovisual brasileiro, pra nossa indústria do cinema brasileiro, porque de fato nossa memória está sendo apagada. Já vinha sendo, isso é um projeto. Se tem uma coisa que esse governo atual tem como projeto é desfazer toda a nossa indústria cultural, nossa memória. O dia de hoje é simbólico, porque esse incêndio está apagando completamente o que nos resta.”

. Sandra Kogut, diretora de “Três Verões”: “Muito importante a gente dizer que a Cinemateca não é um depósito de filmes, é algo muito maior do que isso. A gente tem ali registros de quem a gente é. Eu, por exemplo, só faço filmes, porque antes de mim, muitas pessoas fizeram. E foi vendo esses filmes, dessas pessoas, que eu me tornei uma pessoa que faz filme. E a gente tem o registro ali de como as pessoas no Brasil falavam, gesticulavam, viviam, ao longo dos últimos 100 anos. E a Cinemateca está pedindo socorro há mais de um ano. Esses funcionários que foram demitidos também são um patrimônio, são frutos de muito investimento. Trabalhar em um acervo como esse, requer muito saber, muito conhecimento. Os filmes que estão ali pedem atenção constante. Eles precisam ser manipulados, precisam estar conservados em condições muito específica de temperatura, umidade, então é uma tragédia de proporções realmente gigantescas”.

. Walter Salles, diretor de “Central do Brasil”: “O incêndio do galpão da Cinemateca Brasileira é o resultado do desprezo e incompetência de um governo que veio para apagar a nossa memória coletiva, e não para preservá-la. Ao afastar o corpo técnico altamente especializado da Cinemateca, o governo criou as condições para essa tragédia anunciada. Esse desastre não é um incidente, e sim a consequência de uma política de Estado. Uma Cinemateca guarda a memória visual de todo um país. É um bem público, que pertence a todos os brasileiros e não a um governo. Simbolicamente, o incêndio do galpão da Cinemateca Brasileira – e portanto da nossa memória coletiva – é como o incêndio das terras públicas na Amazônia. Um crime”.

. Lauro Escorel, diretor de fotografia e cineasta (“Fotografação”): “É uma tragédia anunciada. A gente já vivia essa expectativa. As questões dos incêndios fazem parte da história da nossa cultura, Museu Nacional, Museu da Língua Portuguesa, e a própria Cinemateca. É uma tragédia, onde a gente ainda não tem noção exata do que se perdeu, mas se perde o patrimônio do país, o patrimônio de todos nós. E a falta de compreensão e a negligência como a Cinemateca vem sendo tratada nos últimos anos exige que se responsabilize alguém pelo o que está acontecendo. Não é possível que a gente siga com tantos incêndios. Não é só o acervo do Glauber Rocha, são muitos filmes, parecem que são toneladas de documentação, a história do cinema brasileiro. É uma tragédia que poderia ter sido evitada. E certamente se houvesse uma outra compreensão da especificidade do trabalho de uma Cinemateca, não é qualquer empresa que pode ser contratada. Existem técnicos capazes de cuidar disso, que foram despedidos. Então é uma história muito triste e está acontecendo uma coisa que a gente temia que acontecesse e infelizmente hoje a gente recebeu essa notícia”.

. Vladimir Carvalho, diretor de “Conterrâneos Velhos de Guerra”: “Não era preciso ser profeta para antecipar esse sinistro incêndio que atingiu a Cinemateca Brasileira que nos deixa em estado de choque neste exato momento. Há um ano e dois meses escrevi um artigo na página nobre do Correio Braziliense cujo título era “S.O.S. da Cinemateca de Paulo Emilio”. Comentava justamente o equivocado e prejudicial comportamento do governo de Jair Bolsonaro com relação ao cinema brasileiro em geral e em particular à Cinemateca Brasileira que enfrentava séria crise naquele momento, quando já havia uma mobilização e um documento com mais de dez mil assinaturas de protesto e em defesa daquela instituição da qual fui Conselheiro por mais de vinte anos. Neste momento estou acompanhando as reportagens e sofrendo e torcendo para que o fogo seja debelado. Inclusive porque tenho ali negativos de alguns filmes que realizei, entre eles o “Conterrâneos Velhos de Guerra”. É preciso denunciarmos mais uma vez a ação destruidora de nossa cultura por parte deste desvairado presidente”.

. João Batista de Andrade, diretor de “O Homem que Virou Suco”: “Mais uma vez o desgoverno Bolsonaro revela sua imperícia e a absoluta despreocupação com a cultura brasileira. Não será desmedida a ideia de que toda catástrofe que se abate contra o mundo da cultura é comemorada pelas autoridades como uma vitória sobre o conhecimento, a liberdade de pensamento e o progresso cultural. Pois a cultura é o alvo: o pensamento vigente nessa triste e perigosa república de agora é de que a humanidade deve se rebaixar à gula de poder e à ignorância desses falsos dirigentes, eleitos numa fenda de nossa democracia. A Cinemateca tem sido o alvo mais gritante e onde se juntam o ódio à cultura e a absurda irresponsabilidade dos que assumem os postos, mas não seus deveres enquanto governantes. Enquanto se armam ameaçadoramente, tentam nos desarmar de nosso bem maior. Eu gostaria muito de dizer “não conseguirão”, mas serei mais coerente afirmando que não desistiremos da luta pela Cinemateca e por uma verdadeira democracia em nosso país. Justiça, igualdade de direitos, liberdade, responsabilidade”.

 

“Crime Anunciado” – Em nota assinada pelos “Trabalhadores da Cinemateca Brasileira” e intitulado “Crime Anunciado!”, profissionais altamente qualificados e dispensados pelo atual comando da instituição escreveram:

“O incêndio que acometeu o edifício da Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina na noite de 29 de julho de 2021 foi um crime anunciado, que culminou na perda irreparável de inúmeras obras e documentos da história do cinema brasileiro. Essas instalações são parte fundamental e complementar em relação ao espaço da Vila Clementino, onde se encontra armazenada a maior parte do acervo da Cinemateca Brasileira. Recentemente, em fevereiro de 2020, uma enchente já havia afetado grande parte do acervo documental e audiovisual lá depositado.

Há mais de um ano denunciamos publicamente a possibilidade de incêndio nas dependências da Cinemateca pela ausência de quaisquer trabalhadores de documentação, preservação e difusão. Houve o alerta sobre a chance de o sinistro ocorrer nos acervos de nitrato da Vila Clementino, pois trata-se de material inflamável que pode entrar em autocombustão sem revisão periódica. Não foi o caso deste, o quinto incêndio na instituição. No entanto, as causas são as mesmas. Seguramente, muitas perdas poderiam ter sido evitadas se os trabalhadores estivessem contratados e participando do dia a dia da instituição.

No próximo dia 8 de agosto completará um ano do abandono da Cinemateca Brasileira pelo Governo Federal e a demissão de todo seu corpo técnico, que sequer recebeu os salários não pagos e as rescisões pela anterior gestora,

Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto – Acerp. Ainda assim foi noticiada a contratação de equipes de manutenção, bombeiros e limpeza. Apesar de serem fundamentais para o funcionamento do arquivo de filmes, não são suficientes para suas demandas específicas, como evidenciado neste dia fatídico.

A situação se torna mais crítica se pensarmos que essa ausência de equipe técnica especializada por um ano possivelmente teve consequências irreversíveis para o estado de conservação dos materiais. Certos danos são silenciosos, porém tão trágicos quanto um incêndio, e igualmente irrecuperáveis. Trata-se do tempo de vida dos diversos materiais, diminuindo drasticamente, e da perigosa deterioração dos filmes de nitrato e de acetato. Apenas com o retorno da equipe especializada será possível avaliar as extensões das perdas e danos para que então as atividades de conservação sejam retomadas.

O acervo que estava armazenado na Vila Leopoldina, apesar de em menor número, possuía igual relevância e importância ao da Vila Clementino. Abaixo listamos alguns dos materiais possivelmente perdidos ou afetados no incêndio de 29 de julho de 2021:

Do acervo documental: grande parte dos arquivos de órgãos extintos do audiovisual como parte do Arquivo Embrafilme – Empresa Brasileira de Filmes S.A. (1969-1990), parte do Arquivo do Instituto Nacional do Cinema – INC (1966 -1975) e Concine – Conselho Nacional de Cinema (1976-1990), além de documentos de arquivo ainda em processo de incorporação. Para evitar que novas enchentes atingissem o acervo, parte desses materiais foi transferida do térreo para os depósitos climatizados no primeiro andar, principal área atingida pelo incêndio. Tal medida ocorreu após uma grave enchente em fevereiro de 2020. Parte do acervo de documentos oriundos do arquivo Tempo Glauber, do Rio de Janeiro, inclusive duplicatas da biblioteca de Glauber Rocha e documentos da própria instituição.

Do acervo audiovisual: parte do acervo da distribuidora Pandora Filmes, de cópias de filmes brasileiros e estrangeiros em 35mm. Matrizes e cópias de cinejornais únicos, trailers, publicidade, filmes documentais, filmes de ficção, filmes domésticos, além de elementos complementares de matrizes de longas-metragens, todos estes potencialmente únicos. Essa parcela do acervo já havia sido parcialmente afetada pela enchente recente. Parte do acervo da ECA/USP – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo da produção discente em 16mm e 35mm. Parte do acervo de vídeo do jornalista Goulart de Andrade.

Do acervo de equipamentos e mobiliário de cinema, fotografia e processamento laboratorial: além do seu valor museológico, muitos desses objetos eram fundamentais para consertos de equipamentos em uso corrente, pois, para exibir ou mesmo duplicar materiais em película ou vídeo, é necessário maquinário já obsoleto e sem reposição no mercado.

O incêndio da noite de ontem é mais um motivo pelo qual não podemos esperar para dar um basta à política de terra arrasada e de apagamento da memória nacional! Estamos em luto, pela perda de mais de meio milhão de brasileiros, e agora pela perda de parte da nossa história. Incêndio na Cinemateca Brasileira em 2016, no Museu Nacional em 2018 e, novamente, na Cinemateca em 2021. Além de todas as mortes evitáveis, nossa história vem sendo continuamente extirpada – como um projeto. Infelizmente, perdemos mais uma parte do patrimônio histórico-cultural brasileiro.

A Cinemateca Brasileira não pode ficar à mercê de novas intempéries. A gestão da instituição por meio de terceirização via Organização Social, da forma como foi realizada, mostrou como pode ser frágil essa relação, e que tal modelo não dá conta da complexidade de um órgão cultural desse porte. O edital prometido pelo Governo Federal, sem debate, ferramentas de transparência, a participação da população, de pessoas da área de patrimônio cultural e, principalmente, do coletivo dos ex-trabalhadores da instituição, não será a solução. Alerta-se ainda que o orçamento anunciado é significativamente inferior ao necessário. É preciso estabilidade e garantia de equipe técnica a longo prazo, oferecendo à instituição um orçamento compatível com os necessários serviços de preservação e difusão do audiovisual brasileiro.

Sem trabalhadores não se preservam acervos!

Trabalhadores da Cinemateca Brasileira”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.