Laure Calamy brilha em férias com jegue e em drama laboral
Por Maria do Rosário Caetano
A França tem uma nova estrela. Ela se chama Laure Calamy e passou a ser notada depois de interpretar divertida secretária na badaladíssima série “Dix por Cent” (10%), da Netflix. Rechonchuda, cara comum e ar alegre, Laure não tem a beleza de Catherine Deneuve, nem o perfil intelectual e frio de Isabelle Huppert, nem lembra estrelas gaulesas como Juliette Binoche, Isabelle Adjani ou Léa Seydoux.
E não se trata de uma novata. Laure Calamy já atuou em 35 filmes e muitas peças de teatro. Na internet, há registros de que ela conte já 47 anos (teria nascido em 1975) ou 45 (nascida em 1977). Estourar já quarentona não é fácil, num mundo que cultiva a beleza e a juventude. Mas a sorte dela, enfim, brilhou. Dois filmes protagonizados por ela – depois de muito papel de coadjuvante – estão causando ótima impressão.
O primeiro, “Minhas Férias com Patrick” (“Antoinette dans le Cévennes”), pode causar espanto aos espectadores. Sim, Patrick é um burro empacador. Quem é que vai assistir a um filme no qual a protagonista curte duas férias na zona rural (a campanha) francesa, em terreno montanhoso e belíssimo, muito arborizado, mas na companhia de um asno?
Deixemos o preconceito de lado e sintonizemos a plataforma MUBI. Quem assim o fizer, assistirá a uma deliciosa comédia à moda francesa, progressista do ponto de vista erótico-existencial, de direção feminina (a sensível Caroline Vignal), sem nenhuma grossura. Não se trata de um drama erótico como “A Mulher…e la Bête” (do polaco-francês Walerian Borowczyk, 1975). Mas sim de uma saborosa comédia sobre uma professora de escola infantil, apaixonada pelo amante casado e pai de uma de suas alunas. Ele promete levá-la a passeio nas montanhas, para que os dois fruam dias só deles, sem ter que fazer sexo escondido. O filme tem um clima rohmeriano. Tanto que a dona da pousada é interpretada por Marie Rivière, do belíssimo “O Raio Verde”, entre outros títulos do integrante do núcleo duro da Nouvelle Vague. Se Eric Rohmer assistisse ao filme, decerto dele gostaria.
Vladimir, o amante de Antoinette (Benjamin Laverhnhe, da Comédie Française), porém, muda de ideia e altera o programa de férias. Resolve fazer o tão sonhado passeio com a esposa e a filha. Desorientada, a professora decide ir para o mesmo lugar. Lá, os donos da pousada montanhesa definem que ela fará suas trilhas (em caminhadas de até 20 km) na companhia do burro Patrick. Por seu notável desempenho, Laure Calamy conquistou o César, o Oscar francês, de atriz protagonista em 2021.
Meses depois, Calamy chegava ao Festival de Veneza como protagonista absoluta do drama laboral “Contratempos”, de Eric Gravel. Trata-se de narrativa que lembra o germânico “Corra, Lola, Corra” (Tom Tykwer, 1999). Mesmo que este seja um adrenalinado filme policial, com pitadas de dedicação amorosa-sacrificial e de narrativas de gângster. “À Plein Temps” (“Tempo Integral” em tradução livre) é um drama social sobre o mundo contemporâneo. Sua protagonista, Julie, tem dois filhos para criar. Para não morar num apertado quarto-e-sala no centro de Paris, ela escolhe casa suburbana com quintal. Mas paga alto preço pela escolha. Depende de transporte coletivo para chegar ao hotel de luxo, onde presta serviços como camareira. Julie é um mulher instruída, com formação superior. Perdeu o emprego, agarrou-se à condição de camareira para sustentar os filhos. Mas planeja voltar ao ofício para o qual se preparou.
A camareira necessita ir aos testes em empresa que pode empregá-la durante o expediente no hotel. Com a greve geral comandada pelo Coletes Amarelos ela tem que correr como louca e arrumar artifícios para que sua ausência não seja notada por seus superiores no sofisticado cinco estrelas. A jovem mãe conseguirá com suas corridas frenéticas salvar seu emprego e sua família? Eis a questão.
Eric Gravel e sua protagonista Laure Calamy brilham neste drama social moderno, vigoroso e realista. O roteiro é de ouriversaria impressionante. Não há um furo sequer. Foram, portanto, merecidíssimos os prêmios conquistados pela dupla na Biennale di Venezia.
Por fim, vale um breve registro sobre o desempenho de Laure Calamy na série “Dix pour Cent”, na qual interpreta Noemi Leclerc, secretária-aspirante ao cargo de agente artística, que se apaixona pelo patrão, Mathias Baneville (Thibault de Montalembert). Para brilhar nas quatro temporadas, ela teve que rebolar. Afinal, a estrela da série é outra craque do humor gaulês, a nariguda e talentosíssima Camille Cottin, a influente Andrea Martel. Homoafetiva, a poderosa agente do escritório de artistas se impõe com galhardia. Ela também vem brilhando no cinema francês (e internacional, pois integrou o elenco de “Casa Gucci”, ao lado de Lady Gaga, Adam Driver e Al Pacino).
E, para acalmar os temerosos de que “Minhas Férias (com o asno) Patrick” seja um filme chegado à zoofilia, apelemos ao título francês: “Antoinette dans le Cévennes”). Ou seja, Antoinette nas (Bucólicas Montanhas) Cevenas. Está em qualquer guia turístico: “Cevenas são uma cadeia de montanhas localizada no centro-sul da França. A região abriga o Parque Nacional de Cévennes, criado em 1970, com 85 mil hectares, e o Parque Natural Regional dos Montes de Ardèche”. E foi neste lugar idílico que o escritor escocês Robert L. Stevenson (“O Médico e o Monstro”) viveu, no século XIX, experiência inesquecível, fonte de seu livro “Viagem com um Burro pelas Cevenas”. A história é evocada deliciosamente pelo filme de Caroline Vignal.
Nos dediquemos, pois, a uma maratona Laure Calamy assistindo ao excelente trabalho dela em “Minhas Férias com Patrick” (que bem podia chamar-se “Minhas Férias na Campanha Francesa”), “Contratempos” (outro nome desprovido de qualquer poder de atração) e à deliciosa série “Dix pour Cent” (valor pago pelos artistas a seus agentes).
Minhas Férias com Patrick | Antoinette dans le Cévennes
Comédia
Direção: Caroline Vignal
Elenco: Laure Calamy, Benjamin Lavernhe, Olivia Côte, Denis Mpunga, Dorothée Tavernier, Marie Rivière, Luc Palun, Louise Vidal e Matthieu Sampeur
Duração: 93 minutos
Onde: MUBE
Prêmio César de melhor atriz protagonista
Contratempos | A Plein Temps
Drama
Direção: Eric Gravel
Elenco: Laure Calamy, Anne Suarez e Geneviève Mnich. Prêmios de melhor diretor e melhor atriz na Mostra Horizonte, no Festival de Veneza 2021
Duração: 88 minutos
Estreia prevista, segundo o Boletim Filme B, para 10 de novembro (pela Bonfilm)
Dix pour Cent
Série francesa ambientada em escritório parisiense que agencia atrizes e atores. Maior sucesso do streaming gaulês, refilmado em outros países.
Participação especial: Isabelle Huppert, Juliette Binoche, Isabelle Adjani, Jean Reno, Monica Bellucci, Beatrice Dalle, Patrice Luchini, Virginie Efira, Christopher Lambert, Sandrine Kiberlain, Charlotte Gainsbourg, Nathalie Baye, Jean Dujardin, Cécile de France, Gilles Lellouch e Sigourney Weaver
Quatro temporadas
Onde: Netflix