Paulina García, “Glória” chilena, recebe Kikito de Cristal
Maria do Rosário Caetano, de Gramado
A atriz Paulina García recebeu, na quinquagésima edição do Festival de Gramado, o troféu Kikito de Cristal, atribuído há 15 anos a nomes de primeira linha do cinema ibero-americano.
A escolha da curadoria de Gramado foi matadora. Afinal, a protagonista do longa chileno “Glória” (Sebastián Lélio, 2013), que rendeu a ela o Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim e o Prêmio Platino, das Academias hispano-lusitanas, é mesmo uma força da natureza.
Na tarde desta quinta-feira, 18 de agosto, ela foi às oficinas da Cristais de Gramado fabricar a cabeça do Troféu Kikito de Cristal que, ano que vem, será entregue a outra estrela ibérica. O fez (com ajuda de um artesão) com empenho e seriedade ímpares. Quis saber tudo sobre o processo de fabricação, tirou fotos dos fornos quentíssimos e dos artífices das belezas fabricadas segundo técnicas que Gramado trouxe de Murano, ilha próxima a Veneza. A atriz vestia uma saia de couro verde, meias grossas e pretas e agasalho protetor. A Serra Gaúcha está gelada (temperaturas próximas de zero grau). Gramado aproveitou a ocasião para festejar a presença, nas oficinas e showroom da Cristais de Gramado, de três detentores do Kikito de Cristal, para festejá-los. A escolhida deste ano uniu-se aos colegas Soledad Villamil (protagonista com Ricardo Darín do oscarizado “O Segredo dos seus Olhos”) e o uruguaio César Troncoso (do encantador “O Banheiro do Papa”). A trinca posou para as câmaras, unindo três países da América do Sul (Chile, Argentina e Uruguai) e difundido troféu que vai ganhando cada vez mais relevo.
Depois de cumprir suas obrigações como “fabricadora” do Kikito de Cristal que será entregue em 2023, Paulina García conversou com os jornalistas, derramando simpatia e com raro poder de síntese. Aos 61 anos, ela desfruta da condição de mais conhecida estrela chilena, ao lado de Alfredo Castro, ator-fetiche de Pablo Larraín (“Tony Manero”, “Post-Morten” e “No”). Ambos foram projetados fora das fronteiras do Chile pelo cinema, embora sejam, acima de tudo atores de teatro.
À noite, Paulina subiu ao palco do Palácio dos Festivais para receber o seu Kikito de Cristal. A láurea foi entregue por Soledad Villamil, que assina a curadoria de longas-metragens de Gramado junto com a atriz Dira Paes e o crítico Marcos Santuário. Vestia traje de festa, de cor azul, mas sem brilhos espalhafatosos. “Glória” pauta-se pela discrição.
No discurso de agradecimento, Paulina García deu um show de inteligência e emoção. Falou de sua paixão pelo teatro e cinema e de seus parceiros nos palcos e sets de filmagens. Do diretor (ou diretora) ao técnico de som, do roteirista à figurinista, do diretor de fotografia à maquiadora, enfim de todos que se unem para um trabalho coletivo. Agradeceu ao marido, que não pôde acompanhá-la ao Brasil pois “está com Covid” e aos três filhos. E a Gramado pelo Kikito de Cristal.
Em breve, o público brasileiro assistirá ao novo filme de Paulina. E desta vez ela estará em cena com Alfredo Castro. Os dois são os protagonistas de “Segredos em Família”, de Jorge Riquelme Serrano, um drama dos mais duros e tensos.
O longa-metragem chileno, que será lançado pela Imovision de Jean-Thomas Bernardini, mês que vem (setembro), mostra família que dirige-se a ilha no Sul do Chile, pois lá pretende construir um hotel. Só que o marinheiro que os levou ao local desaparece com a embarcação. O casal (Paulina Garcia e Alfredo Castro), mais filha e genro se vêem isolados em casa sem água e outros itens fundamentais de sobrevivência. Começam, então, a aforar “segredos em família”, título brasileiro até suave para o original chileno (“Algunas Bestias”).
Na conversa com os jornalistas, nas oficinas da Cristais de Gramado, a atriz — que agora soma um Kikito de Cristal aos múltiplos troféus guardados em sua estante (um deles, um Kikito de melhor atriz por “Las Analfabetas”, ganho em 2014), falou do bom momento vivido pelo cinema chileno (Oscar de melhor filme estrangeiro para “Uma Mulher Fantástica” do mesmo Sebastián Lélio, de “Glória”), comentou o remake que o próprio Lélio realizou nos EUA (Julianne Moore interpretou Glória), registrou satisfeita a volta do público aos teatros, depois da pandemia, fato que não se verificou nos cinemas, e confessou conhecer poucos filmes brasileiros, pois as salas de cinema do Chile são ocupadas por produções comerciais vindas em maioria dos EUA.
Alguns trechos do diálogo da atriz com os jornalistas:
. Remake de “Glória” — “Assisti à versão gringa, com atriz maravilhosa (Julianne Moore). O filme foi realizado dentro do mais puro estilo hollywoodiano, mas tem seu valor”.
. Bom momento do Cine Chileno — “O Oscar atribuído a ‘Uma Mulher Fantástica’ foi muito importante, ajudou nossa cinematografia a conquistar certa visibilidade. Ganhamos, com “Algunas Bestias”, de Jorge Riquelme Serrano, a Conha de Ouro no Festival de San Sebastián/ Espanha. Mas temos que lembrar o trabalho de realizadores que abriram caminhos para que nossa produção rompesse as fronteiras chilenas. E não podemos esquecer de Patricio Guzman, Silvio Caiozzi, de Ricardo Larraín, de Pablo Larraín, com seus muitos filmes, de Sebastián Lélio, de Alfredo Castro, ator que vem ajudando a difundir o cinema chileno. Mesmo que façamos nossos filmes de maneira precária, com baixos orçamentos, “contra el viento e las mareas”, como dizemos em nosso país, o Oscar funciona como um estímulo. E, muitas vezes, não encontramos salas para mostrar nossos filmes. Nem nos países vizinhos, nem em nossos próprios países, pois os circuitos estão ocupados por filmes tipo “Top Gun” 1, 2 ou 7, “Velozes e Furiosos” idem. Eu não me interesso por este tipo de filme. Não os assisto. Mas, infelizmente, parece que nós, latino-americanos, não temos conseguido fazer filmes que falem a todos, que sejam universais. E quando conseguimos, a realidade econômica nos impede de alcançar grandes bilheterias”.
. A força do streaming — “A relação entre os nossos cinemas e o streaming não está bem resolvida. A força das plataformas é inegável, em especial na difusão de séries. Com a pandemia, o streaming obteve uma real e imensa difusão, tornou-se realidade inquestionável. Espero que seu triunfo não nos impeça de assistir a filmes em salas de cinema, espaço de vivência comunitária e única. Já quanto às séries, creio que o streaming tem trazido muitos ganhos para países não-hegemônicos. Eu mesma tenho assistido a séries turcas, dinamarquesas, australianas e neo-zelandesas. Ou seja, mesmo sendo países (caso dos dois últimos) de língua inglesa, eles têm historias particulares e maneiras diversas de falar o idioma de Hollywood. E quero destacar o trabalho que a Espanha vem fazendo na área de produção de séries. Um trabalho que pode colocar a língua espanhola em destaque, quebrando parte da hegemonia anglo-saxã”.
. Festival de teatro de Santiago — “Nosso festival é muito importante. Criado há 30 anos, ele segue mobilizando grandes plateias. Para a edição deste ano, vou apresentar novo trabalho, uma performance chamada ‘Verdad’, soma de verde e verdad (verdade)”.
. Prêmios — “Não podemos negar: adoramos ganhar prêmios. Eles nos reconhecem, nos estimulam, ajudam a divulgar nossos trabalhos. Estou muito feliz com o Kikito de Cristal, que recebo neste momento”.
. Cinema brasileiro — “Conheço poucos filmes brasileiros, pois como já disse, eles não encontram espaço em nosso circuito exibidor. São raras as produções brasileiras que nos chegam. Só me recordo de “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite 1 e 2”. Dos atores, conheço Sonia Braga e Wagner Moura, com quem trabalhei em “Narcos’” (Paulina interpretou a mãe de Pablo Escobar)”.