Cinemateca e Mostra Russa apresentam, com música ao vivo, triângulo amoroso que uniu Ossip e Lilya Brik a Maiakovski
Por Maria do Rosário Caetano
A oitava edição da Mostra Mosfilm de Cinema Soviético e Russo, programada para o CineSesc, em março último, acontecerá, em versão integral, na Cinemateca Brasileira, desta quarta-feira, 14, até o dia 18 de dezembro. O evento, que tem no filme “Rua Mercantil nº 3” (foto), de Abraham Room, sua maior revelação, soma esforços da CPC-UMES Filmes à revigorada Cinemateca Brasileira. E tem entrada franca.
O cancelamento da oitava Mostra Soviética na tela do CineSesc aconteceu por causa da guerra entre a Federação Russa e a Ucrânia, iniciada em 2014, e agravada pela invasão da ex-república soviética, em fevereiro deste ano.
A distribuidora CPC-UMES Filmes, braço audiovisual do Centro Popular de Cultura da União Metropolitana de Estudantes Secundaristas de São Paulo, tem na distribuição de DVDs (com títulos clássicos e contemporâneos) sua maior vitrine. A entidade aposta, também, em seu Cineclube Digital (filmes exibidos semanalmente em canal próprio no YouTube) e na Mostra de Cinema Soviético e Russo. Mais duas de suas peças de resistência.
O festival programado para o CineSesc e transferido nove meses depois para a Cinemateca Brasileira contará com a exibição dos mesmos 16 longas-metragens inicialmente programados. E preserva a homenagem (mesmo que tardia) ao bicentenário de nascimento de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), com exibição do longa-metragem “O Idiota”, de Ivan Pyryev (1958). O passar do tempo fez o tributo ao grande escritor moscovita perder seu calor temporal (a data exata do bicentenário ocorreu em 2021). Como diz o ditado, antes tarde do que nunca.
Haverá, também, homenagem ao cineasta Yuri Ozerov (1921-2001). Dele serão exibidos cinco longas documentais sobre a Segunda Guerra Mundial. Vista pelo ponto de vista dos soviéticos, claro, pois foram eles que derrotaram os nazistas na Frente Leste, e estenderam a bandeira vermelha, com foice e martelo amarelos, no topo de altíssimo prédio da Berlim destruída.
A mais importante atração da oitava Mostra é, sem dúvida, uma pequena obra-prima da era muda: “Rua Mercantil Nº 3”, exibido nos EUA com nome marcado pela, digamos, domesticidade (“Cama e Sofá”). O título brasileiro faz jus ao original soviético, preservado pela CPC-UMES — ou seja, à rua moscovita, cuja casa modesta (um pobre cafofo) abriga um dos mais libertários triângulos amorosos da história eslava (e mundial).
O cineasta Abraham Room inspirou-se na vida amorosa (real e libertária) do poeta, ator, roteirista e cineasta amador Vladimir Maiakovski (1893-1930), da atriz Lilya Brik (1891-1978) e do escritor e crítico literário Ossip Brik (1888-1945).
Os artistas viveram convulsiva história de amor a três, numa Moscou destruída pela guerra civil, mas que desfrutava do transe revolucionário, ainda que comendo o pão que o diabo amassou. E tentando quebrar tabus morais ao buscar, mesmo que com imensas dificuldades, novas formas de amor.
O filme de 1927, portanto, mudo (o cinema sonoro só chegaria, para valer, à URSS em meados dos anos 1930), será exibido com acompanhamento musical ao vivo. Seus enquadramentos de ousadia arrebatadora e sua moral transgressora deixarão os cinéfilos em estado de encantamento e êxtase.
A seleção da Mostra Mosfilm 8 incluiu um raro filme de Grigori Aleksandrov (“Uma Banda Divertida”, 1934). O cineasta, que trabalhou com Sergei Eisenstein até a frustrada experiência de “Que Viva México!”, foi relegado ao ostracismo (no Ocidente, claro) e sua obra acabou (quase) devorada pelo Realismo Socialismo. Mas ao menos dois de seus filmes merecem atenção — “Circo” (em DVD da CPC-UMES) e essa comédia realmente muito divertida.
O genial Andrei Tarkovsky comparece com seu épico metafísico “Andrey Rublev” (1966), de mais de três horas de duração e beleza epifânica. Um mergulho na religiosidade russa em tempos medievais.
Uma comédia, com pitadas de melodrama — “Moscou Não Acredita em Lágrimas”, de Vladimir Menshov (premiada com o Oscar estrangeiro em 1979) — perdeu o frescor de outrora. Mas se deixa assistir com prazer e pode agradar nestes tempos de identitarismo. Afinal, são mulheres suas protagonistas absolutas.
Na noite inaugural, a Mostra apresentará um longa-metragem contemporâneo e inédito — “Vladivostok”, de Anton Bormatov (2021). Este filme, realizado em tempos de Covid-19, ambienta-se na cidade portuária que lhe dá nome, situada no extremo-leste da Rússia, próxima à Coreia e ao Japão (no final da Transiberiana, a 9 mil km de Moscou). Um de seus roteiristas, Karen Shakhnazarov, presidente da Mosfilm, confessa ter se inspirado em “Cais das Sombras” (1938), de Marcel Carné (com Jean Gabin e Michelle Morgan), para contar essa história de amor e violência. “Vladivostok” faz várias citações cinematográficas – inclusive ao “Acossado”, godardiano — já que sua protagonista feminina é apaixonada por cinema. O estúdio Mosfilm está preparando as comemorações de seu centenário, que acontecerá em 2024. Ele foi criado por Vladimir Lenin, para quem o cinema era “a arte do século” (XX, no caso).
O líder da Revolução Bolchevique, que morreu em janeiro de 1924, deixou os fundamentos do Mosfilm estruturados, mas não viveu para inaugurá-lo. Tendo Moscou como base, o estúdio formou com a Lenfilm, situada em São Petersburgo (ou Petrogrado, depois Leningrado, e agora, novamente São Petersburgo) os dois mais importantes focos de produção do imenso país eurasiano.
Além de assistir aos filmes da Mostra de Cinema Soviético e Russo 2022, recomenda-se ao espectador a leitura de volume escrito pelo professor da UnB e pesquisador João Lanari Bo — “Cinema para Russos, Cinema para Soviéticos” (Editora Bazar do Tempo, 2020). Trata-se de narrativa da convulsiva história do cinema russo (e soviético) dos anos pioneiros até 1957. O segundo volume trará a história dessa poderosa cinematografia do ano de 1958 até os dias atuais.
Outro livro obrigatório: “Kino”, do estadunidense Jay Leyda, editado na Inglaterra (1960), nos EUA e na vizinha Argentina. Mas inédito em língua portuguesa. Leyda, que foi aluno de Sergei Eisenstein, teve dois brasileiros como alunos em seus cursos de pós-graduação — Ismail Xavier (USP) e João Luiz Vieira (UFF).
Confira a programação da mostra:
Quarta – 14/12
19h30 – “Vladivostok”
Quinta – 15/12
16h – “Uma Banda Divertida”
18h – “Os Órfãos”
20h – “Libertação – Parte 1 e 2”
Sexta – 16/12
14h30 – “Ilia Muromets”
16h20 – “O Idiota”
18h30 – “Libertação – Parte 3”
21h – “Amor e Pombos”
Sábado – 17/12
15h – “Rua Mercantil nº 3”
16h30 – “Enfermaria nº 6”
18h15 – “Libertação – Parte 4 e 5”
21h15 – “Os Ciganos Vão para o Céu”
Domingo – 18/12
15h – “Andrei Rublev”
18h15 – “Moscou Não Acredita em Lágrimas”
21h – “Vladivostok”