Incêndio na Catedral de Notre-Dame traz Annaud de volta em filme de ação e apelo religioso

Por Maria do Rosário Caetano

Em abril de 2019, a cúpula, e depois os interiores, da Catedral de Notre-Dame, construção medieval cultivada por todos os franceses e por milhões de turistas, foi devorada pelas chamas.

Três anos depois, o cineasta Jean-Jacques Annaud, que em outubro próximo fará 80 anos, lançou o filme “Notre-Dame – Desastre em Paris”. mobilizando quase um milhão de franceses nas salas de cinema. Isso num momento em que o país, um dos mais católicos da Europa, saía da quarentena de Covid-19. A França só perde para a Itália e talvez se iguale à Polônia em culto ao cristianismo. Seria, portanto, muito penoso ver o templo máximo da cristandade devorado pelas chamas.

O produtor Jérome Seydoux, avô da bela atriz Léa Seydoux, e seus parceiros tomaram, então, todos os cuidados religiosos. E Annaud e seu colega na escritura do roteiro, Thomas Bidegain, tiveram a astúcia de somar a um filme de ação – em que heróicos bombeiros fazem o possível e o quase-impossível para debelar o fogo – apelativa camada mística. Não pouparam nem os mais tradicionais e banais clichês do gênero.

Vamos por partes. Annaud chegou ao cinema em 1976, com “La Victoire en Chantant”, um longa-metragem rodado na África. Lançado na França, passou em brancas nuvens. Inscrito no Oscar, pela Costa do Marfim, sagrou-se o grande vencedor. Foi relançado na França com o título norte-americano (Preto-e-Branco em Cores) e continuou sendo um fracasso. Mas com Oscar, o cineasta caiu nas graças dos produtores. Realizou um filme sobre futebol (“Coup de Tête”), e continuou em baixa junto ao público francês. Mas cacifou-se para realizar uma super-produção, “A Guerra do Fogo”. Estouro mundial. Mais uma grande produção, “O Nome da Rosa”, com Sean Connery, a partir do best-seller de Umberto Eco. O sucesso foi tão significativo que Stanley Kubrick quis filmar “O Pêndulo de Foucault” e Eco deu-se ao luxo de não ceder os direitos autorais.

Annaud faria ainda mais dois filmes com boa distribuição internacional, “O Urso” e “O Amante” (este baseado em Marguerite Duras). Veio ao Brasil divulgá-lo e recebeu a imprensa do Brasil inteiro no Hotel Maksoud Plaza. O filme causou até certo escândalo por sua ousadia e erotismo.

Dali em diante, a carreira do realizador francês, que assinava produções com elencos internacionais e em língua inglesa sem nenhum problema, caminhou ladeira abaixo. Nem Brad Pitt salvou “Sete Anos no Tibet”.

Em 2007, ele voltou ao Brasil para integrar o júri do Amazon Film Festival, em Manaus, e seu filme, uma apimentada história erótica ambientada em tempos imemoriais – “Sua Majestade, Menor” – foi exibido na noite de encerramento, no belo Teatro Amazonas. Os jornalistas mais jovens não o festejaram. Só os mais velhos. Um gentleman, culto, capaz de formular respostas maravilhosas, de contar histórias fascinantes. “Sua Majestade” foi direto para o DVD. Aliás, poucos de seus filmes, nas últimas décadas, conseguiram lançamento comercial. E os que conseguiram, tiveram bilheterias diminutas.

Por isso, “Notre-Dame – Desastre em Paris” foi direto para o streaming. Quem quiser vê-lo, deve pagar R$14,90 na Amazon Prime Video.

O filme começa como um documentário. Turistas do mundo inteiro visitam a Catedral. Guias mostram as riquezas e relíquias contidas no templo de mais de 800 anos, utilizando para tal dos mais diversos idiomas, enquanto — já no plano da ficção — um segurança negro chega para seu primeiro dia como auxiliar da área de segurança. É recebido por um profissional indiano, que lhe dá as instruções. Um contratempo o obriga a ficar de plantão noite adentro. Obras na cúpula de Notre-Dame soltam faíscas. Dá-se início ao sinistro. O jovem segurança vê o alarme e dá o aviso. Um velho segurança crê tratar-se de alarme falso. Quando o incêndio se avoluma, há quem atribua o que se passa a um ataque do Daesh (ou Estado Islâmico).

Para prender o espectador, Annaud usa dos recursos mais apelativos possíveis. Como mangueiras que não funcionam na hora agá. Ou metrô que parte na hora que dele mais necessita o chefe-portador da chave do cofre-depósito de valiosíssima “Cruz de Espinhos”, objeto de adoração católica. Ou pneu de bicicleta que fura, também no momento de maior urgência. A música é bombástica e apelativa.

Nem parece um filme do mesmo diretor de “A Guerra do Fogo” e “O Urso”. Só a realidade não desautoriza o cineasta. Embora não tenha havido nenhuma perda humana no incêndio de Notre-Dame, as perdas estruturais-arquitetônicas foram gravíssimas. Passados quase quatro anos (a se completarem em 15 de abril próximo), a Catedral continua em obras e sem data de reabertura programada, tamanhos e tão graves foram os estragos.

 

Notre-Dame – Desastre em Paris
França, 110 minutos, 2022, ficção
Direção: Jean-Jacques Annaud
Roteiro: Thomas Bidegain e Jean-Jacques Annaud
Fotografia: Jean-Marie Dreujot
Produção: Jérôme Seydoux
Elenco: Jules Sadoughi, Jérémie Laheurte, Chloé Jouannet, Vassili Dchneider, Ava Baya, Nathan Gruffy, Dimitri Storoge, Xavier Mall
Onde: Amazon Prime Vídeo
Preço: R$14,90

 

FILMOGRAFIA
Jean-Jacques Annaud (Draveil/França, 01/10/1943)

1976 – “Preto-e-Branco em Cores” (Oscar de melhor filme estrangeiro)
1979 – “Coup de Tête” (Hothead)
1981 – “A Guerra do Fogo”
1986 – “O Nome da Rosa” (baseado em Umberto Eco)
1988 – “O Urso”
1992 – “O Amante” (baseado em Marguerite Duras)
1995 – “Asas de Coragem”
1997 – “Sete Anos no Tibet” (Com Brad Pitt)
2001 – “Inimigos no Portão”
2004 – “Era Uma Vez Dois Irmãos”
2007 – “Sua Majestade, Menor”
2011 – “Ouro Negro” (com Tahar Rahim e Antonio Banderas)
2015 – “Totem dos Lobos”
2022 – “Notre-Dame – Desastre em Paris”

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